Como é
viver com doença que impede de sentir dor: 'Luto para sobreviver'
Fraturar
um osso e não perceber, ou colocar a mão no fogo e não sentir o calor e a dor —
situações incomuns para a maioria das pessoas, mas não para Kaylany Corrêa de
Lima.
A
jovem de 19 anos, que vive em Palhoça (SC), tem uma doença rara que faz com que
ela não sinta dores físicas, chamada da neuropatia hereditária sensitiva e
autonômica tipo 5 (NHSA5).
A
doença é caracterizada por uma mutação genética, ou seja, Kaylany já nasceu com
a doença, que não tem cura.
“Quando
eu tinha uns 10 meses e já tinha alguns dentes, minha mãe conta que eu comecei
a morder o dedo e precisava enrolar tecido nas minhas mãos para evitar as
mordidas”, conta Kaylany.
"Depois,
passei a morder a língua constantemente, machucando tanto que eu ficava com a
roupa toda suja de sangue. Essa situação fez com que minha língua ficasse toda
irregular."
Com
o passar dos anos, os pais notaram que ela não chorava ao cair ou ao se
machucar, como as outras crianças. Até mesmo fraturas não eram sentidas.
Apesar
de insistirem com os pediatras que havia algo de errado com a filha, os médicos
não davam nenhum diagnóstico, conta Kaylany.
“Aos
4 anos, trinquei o fêmur e continuei andando sem notar. Dois dias depois, a
fratura já estava mais grave. Foi quando meus pais perceberam o inchaço e a
vermelhidão”, lembra ela.
"Também
tive uma fratura na coluna e, mesmo assim, andava normalmente, até
dançava."
Na
tentativa de descobrir o que a filha tinha e levar algumas hipóteses aos
médicos, a mãe de Kaylany passou a pesquisar sobre doenças raras.
Foi
quando uma geneticista ouviu a mulher, solicitou um exame genético e encontrou
uma mutação. Nessa época, Kaylany já tinha 13 anos.
“O
sonho da minha mãe era descobrir o que eu tinha, e conseguir o diagnóstico foi
libertador, pois tivemos a confirmação de que não era coisa da nossa cabeça e
começamos a lidar melhor com a condição", diz.
"Não
é bom. Eu digo isso, porque muitos acham que por não sentir dor sofro menos,
mas a dor serve para o corpo avisar que tem algo errado.”
Por
ter tido uma infância com restrições, como não poder fazer as aulas de educação
física e nem brincar de correr como as outras crianças, Kaylany conta que
sofreu bullying na escola: "Isso acabou me excluindo da sociedade".
Aos
18 anos, Kaylany também recebeu o diagnóstico de autismo. Para cuidar da saúde
mental, ela faz acompanhamento com psicólogos e psiquiatra.
Por
conta da doença rara, ela diz que precisou deixar de lado o sonho de cursar
faculdade e não consegue emprego. “Agora, luto para sobreviver", diz
Kaylany.
"Em
agosto, fiz duas cirurgias na coluna que me fizeram perder o movimento nas
pernas por um tempo, mas com a fisioterapia os movimentos voltaram",
acrescenta.
"Sei
que não poderei mais viver e trabalhar como uma pessoa comum, terei que ficar
mais em casa e me mover menos do que antes, porque o que tenho tende a piorar.”
Kaylany
destaca que a expectativa de vida para quem tem a NHSA5 é mais baixa do que na
população geral, o que foi endossado por especialistas entrevistados pela BBC
News Brasil.
"Vivi
desde a infância achando que eu iria morrer cedo. Foi pesado, mas me sinto uma
guerreira de estar aqui ainda."
• O que é a neuropatia
hereditária sensitiva e autonômica
A
neuropatia hereditária sensitiva e autonômica tipo 5 (HSAN5) é uma condição
genética rara que afeta os nervos sensoriais e autonômicos do corpo.
Esses
nervos são os responsáveis por oferecer sensações como dor e temperatura, além
de controlar funções automáticas do corpo humano, como a pressão arterial e a
produção de suor.
Pessoas
com essa mutação genética têm capacidade reduzida ou ausente de sentir dor e
temperatura, o que pode fazer com que elas se machuquem e não percebam.
A
doença é considerada ultrarrara, ou seja, é registrado menos de um caso a cada
50 mil pessoas.
“A
HSAN5 acontece devido a mutações em um gene específico, o NGF ou o NTRK1, que
são responsáveis pela formação e funcionamento adequado dos nervos sensoriais e
autonômicos”, explica Luiz Severo, neurocirurgião e membro da Sociedade
Brasileira de Estudo da Dor.
"Essas
mutações prejudicam o desenvolvimento ou o funcionamento dos nervos."
A
doença é hereditária e se manifesta desde cedo — o principal sinal é quando o
bebê não reage a estímulos dolorosos.
Neuton
Magalhães, neurocirurgião e especialista em dor pela Universidade de São Paulo
(USP), aponta que a condição pode afetar uma variedade de atividades
cotidianas.
“A
perda da sensibilidade à dor interfere no mecanismo de proteção do corpo, no
sono, na mobilidade e nutrição”, diz Magalhães, professor de neurologia do
curso de medicina do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
"A
parte autonômica interfere em disfunções básicas como, por exemplo, a micção,
evacuação e, consequentemente, afeta o estado emocional, bem-estar e qualidade
de vida dos pacientes."
Para
o diagnóstico da doença, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, é
necessário realizar uma combinação de exames clínicos e genéticos.
Durante
a avaliação clínica, o médico investigará a história dos sintomas e examinará a
capacidade do paciente de sentir dor e temperatura.
Testes
genéticos são essenciais para confirmar a mutação nos genes responsáveis pela
condição, o que oferece um diagnóstico mais preciso. Em alguns casos, uma
biópsia de pele pode ser realizada para avaliar o funcionamento dos nervos.
No
Sistema Único de Saúde (SUS), a investigação de um possível diagnóstico de
doença rara começa pela saúde primária, ou seja, o posto de saúde municipal.
Após
o atendimento, o paciente pode ser encaminhado para um centro especializado em
doenças raras.
Segundo
o Ministério da Saúde, 36 centros de saúde do país estão habilitados para fazer
esse atendimento aos pacientes com doenças raras.
Apesar
de ser uma condição hereditária, a NHSA5 segue um padrão autossômico recessivo.
Isso significa que tanto o pai quanto a mãe precisam ser portadores da mutação
genética para que o filho nasça com a condição.
Se
apenas um dos pais for portador, o filho não terá a doença, mas pode ser um
portador e passar a mutação para as futuras gerações.
“Quando
um casal tem um filho com a doença, há um risco de 25% de outro filho também
apresentar”, acrescenta Roberto Giugliani, especialista em genética médica e
coordenador de do setor dedicado a doenças raras no laboratório Dasa Genômica.
"Isso
reforça a importância do diagnóstico preciso e do aconselhamento
genético."
Fonte:
BBC News Brasil
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