A luta por reparação
de povoado que sumiu do mapa no Brasil
Cabeço, em Sergipe,
foi inundado pela construção da Usina Hidrelétrica de Xingó. Três décadas após
tragédia, moradores conseguem vitória histórica na Justiça ao provar impacto
ambiental da barragem.
Uma das memórias
mais marcantes da infância de Jandilma Santos, de 44 anos, é o dia em que o mar
invadiu a casa onde ela morava com a família. A pedagoga foi acordada pelos
gritos da mãe e, ao descer da cama, percebeu a água salgada já na altura da
canela. Aquela não era a primeira vez, nem seria a última. Ao longo da vida,
Santos viu quatro casas serem submersas pelo oceano.
Todas elas estavam
localizadas no Cabeço, um povoado de pescadores na região do Baixo São
Francisco, em Sergipe, que desapareceu do mapa brasileiro no fim dos anos de
1990. Mais de duas décadas depois de sumir, o povoado e sua população
conseguiram neste ano uma indenização histórica em relação ao impacto
socioambiental das barragens na paisagem nacional.
Juntos, os 220
moradores receberam R$ 40 milhões da Companhia Hidrelétrica do São Francisco
(Chesf) depois de provar que o povoado foi engolido pelo mar devido à construção
da barragem da Usina Hidrelétrica (UHE) de Xingó, na divisa entre Alagoas e
Sergipe, em Canindé de São Francisco, que provocou uma erosão costeira na foz
do rio.
Os moradores
lutavam desde 2003, quando abriram um processo na Justiça Federal. A indenização
foi obtida por meio de um acordo, celebrado em maio, e garantiu a cada um dos
moradores o valor líquido, já retirando os honorários advocatícios, de R$ 153
mil. O valor é quatro vezes maior do que as indenizações individuais previstas
no acordo homologado em novembro,
no Supremo Tribunal Federal (STF), para reparação dos danos causados pelo
rompimento da barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais, em 2015.
O acordo do Cabeço
foi proposto pela Chesf, diante da privatização da Eletrobras, então maior
acionista da companhia, ocorrida em 2022. "Temos pessoas que moravam no
Cabeço, nasceram lá e hoje têm 90 e poucos anos. Então, quando pensamos num
acordo, pensamos nessas pessoas", afirmou a advogada Jane Tereza Fonseca,
que defendeu com uma equipe de advogados os moradores do povoado desde o início
da ação.
"Esse processo
é histórico para todo o pessoal que é impactado com barragem no Brasil, porque
ele abriu uma jurisprudência única", acrescenta Carlos Eduardo Ribeiro,
cocriador do Info São Francisco.
Quando a
indenização do Cabeço chegou, 39 pessoas que entraram com a ação inicialmente
já haviam morrido. Outras três morreram entre a decisão e o pagamento. Nestes
casos, o dinheiro foi destinado aos herdeiros. De todos indenizados, apenas
três ainda não receberam os valores, por questões documentais.
·
Impacto
ambiental da barragem
O Cabeço era um
povoado de 120 casas localizado no lado sergipano da foz do São Francisco, na
cidade de Brejo Grande. Não se sabe ao certo quando começou o povoamento, mas
estima-se que a comunidade se formou em torno de um farol, erguido entre os
anos de 1870 e 1873, o único resquício ainda visível da localização original.
Perícias produzidas
para a ação na Justiça Federal mostraram que a construção do reservatório de
Xingó provocou a redução da vazão do rio, que contribuiu para o aumento da
erosão costeira e da salinização da água. A partir de documentos produzidos
desde o século 19 até 2015, conseguiu-se mostrar que a erosão costeira foi
impulsionada para além da dinâmica natural.
Isso aconteceu
porque o fluxo de sedimentos depositados no delta do rio diminuiu, o que
enfraqueceu a capacidade dele de conter o avanço da maré, deixando o povoado
vulnerável. A dinâmica de cheias também foi afetada, limitando a formação de
lagoas que alimentavam o plantio de arroz e o uso das águas como berçário de
espécies nativas e crustáceos.
O processo mostrou
ainda que o estudo de impacto ambiental referente à hidrelétrica de Xingó mediu
impactos a até 100 quilômetros de distância da barragem, omitindo os efeitos na
foz do rio. Em 2022, a responsabilidade da Chesf foi reconhecida pela 2ª Vara
Federal da Seção Judiciária de Sergipe.
Antes de fechar o
acordo, a Chesf chegou a alegar que havia cumprido todos os procedimentos
legais, incluindo a obtenção das licenças ambientais, para a construção da
hidrelétrica e que a erosão já existia antes da obra, sendo causada por fatores
climáticos e geológicos. A advogada das vítimas ressalta, no entanto, que ficou
claro no processo que Xingó foi fundamental para a destruição do povoado.
Além da ação
individual, há outras duas ações coletivas relacionadas ao Cabeço. Uma delas é
movida pela Associação Comunitária do povoado, pela destituição do povoado e
seu patrimônio, como igrejas, escola, delegacia e cemitério. A outra é da
Associação de Pescadores, pelo impacto na produção pesqueira. Cada uma delas
garantiu R$ 10 milhões, cujo destino será definido em audiência pública a ser
realizada no dia 12 de fevereiro do próximo ano.
·
Os
impactos afetivos da migração forçada
Quando os imóveis
do Cabeço foram engolidos pelo mar, parte dos moradores passou a ocupar casas
em um conjunto habitacional de uma zona mais afastada da costa, conhecida como
Saramém. Contudo, foram disponibilizadas apenas 80 casas, o que não contemplava
todas as famílias, e ficou a cargo da própria comunidade a adaptação, sem
considerar os efeitos psicossociais da mudança.
Lá, apesar de
passarem a ter água encanada e energia elétrica, o que não existia no povoado,
os moradores alegam terem sido destituídos dos seus modos de vida e da harmonia
anterior. "Eu não tenho o lugar que eu morei na infância porque o mar
engoliu. Não tenho um lugar para eu voltar e dizer: ‘aqui eu fiz isso',
entendeu?", explica Santos.
Segundo Santos, o
mar invadia as casas e os bens públicos, como o cemitério e a igreja, retirando
das covas restos mortais dos antigos moradores. Há um vizinho dela que chegou a
enterrar a mãe duas vezes, depois de resgatar os ossos na água.
"Quando o
cemitério foi atingido pelo mar, as ondas chegavam altas e cavavam as covas. No
dia seguinte, os pescadores iam jogar a rede no mar e traziam as cabeças, os
pedaços", lembra, por sua vez, Fonseca.
Ex-morador do
povoado na infância, o doutor em Sociologia pela Universidade Federal de
Sergipe (UFS) Wellington Bomfim pesquisou os impactos e migração da comunidade
do Cabeço para o Saramém. "A mudança mais significativa para os moradores
foi o fato de terem que deixar a região para outro lugar, a um quilômetro da
foz, onde criou-se uma comunidade com pessoas de outras localidades", diz.
Segundo ele, a
sociabilidade foi impactada, pois até a década de 1980 o Cabeço era uma
comunidade tutelada pela Marinha, que definia inclusive quem poderia construir
as casas lá. "Geralmente eram pessoas das famílias que estavam ali. Então,
pessoas de fora dificilmente viravam moradores. Havia uma organização interna,
um conselho formado por moradores mais antigos", explica Bomfim.
·
Legado
de apagamento das barragens hidrelétricas
O laudo pericial
que culpabilizou a Chesf no caso Cabeço diz que Xingó foi o último elemento de
uma cascata de barragens no rio São Francisco que levou ao desaparecimento do
Cabeço. Considerado um dos mais importantes cursos d'água brasileiros, o rio é
um exemplo de como as barragens
trouxeram danos socioambientais que ainda permanecem.
Um relatório
produzido pelo então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana estima
que em 40 anos 1 milhão de brasileiros foram expulsos das suas terras para a
construção de 2 mil barragens. No país, há barragens para geração de
eletricidade, como as localizadas no rio São Francisco; abastecimento de água;
acumulação de rejeitos industriais, como as que romperam em Mariana e
Brumadinho; e para usos múltiplos.
Hoje existem 27,8
mil cadastradas na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), sendo
que 14% delas de alto risco em caso de ruptura. Do total de barragens, 1,3 mil
são hidrelétricas e 71 estão na bacia hidrográfica do São Francisco.
Ocupando 8% do
território nacional e atravessando sete estados, o São Francisco é sede de oito
das doze hidrelétricas que a Chesf mantém no Nordeste. O rio vem sofrendo
intervenções que comprometeram a sua intensidade de vazão desde 1913, com a
construção da usina Angiquinho, em Alagoas, a primeira hidrelétrica da região.
O Cabeço não foi o
único povoado que desapareceu nesse caminho. Em 1988, a cidade de Petrolândia,
em Pernambuco, foi inundada durante a construção da hidrelétrica Luiz Gonzaga e
40 mil pessoas foram deslocadas involuntariamente para outra área, a maioria
delas indígenas Tuxá.
Na Bahia, as
cidades de Casa Nova, Pilão Arcado, Sento Sé e Remanso também desapareceram
durante a construção da hidrelétrica de Sobradinho, na década de 1970, que se
converteu em um dos maiores lagos artificiais do mundo. Doze mil pessoas foram
deslocadas, e as ruínas das cidades voltaram a aparecer em 2015.
"Barragens
podem criar desaparecimentos de lugares que vão ser alargados ou lugares que
vão desaparecer por secar, como alguns no Baixo São Francisco. Antes, nesses
lugares você tinha tudo, agora precisa comprar tudo, até água", afirma
Ribeiro.
Para Jandilma
Santos, depois de duas décadas de espera, a indenização é apenas um consolo.
"Nada que essa indenização ou a Chesf ou esse acordo fizesse poderia
cobrir, tapar ou sarar nossa mente, nosso coração e tudo que a gente viveu
lá."
Em nota, a Eletrobras
afirmou que tem buscado a conciliação em diversos processos desde a
privatização, contexto em que se deu o acordo com os ex-moradores do povoado
Cabeço. A empresa afirmou que as oito usinas que mantém no curso do São
Francisco são responsáveis, juntas, por uma potência instalada de 9.971,501 MW.
"Todas as
diretrizes dos órgãos ambientais são respeitadas pela empresa, monitorando e
mitigando eventuais impactos, de acordo com as regras e legislações em
vigor", afirmou.
Fonte: DW Brasil
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