sábado, 1 de abril de 2023

Ditadura debochava de suas vítimas

O Superior Tribunal Militar (STM), onde desaguavam os recursos judiciais dos presos políticos, se viu diante de uma saia-justa em dezembro de 1977, quando uma greve de fome eclodiu nos presídios brasileiros em solidariedade à situação desumana imposta a dois detentos no Recife. Publicamente, os ministros do STM concordaram em receber uma comissão e discutir o assunto. Porém, nas sessões secretas, a postura foi outra, marcada pela irritação e pelo deboche com o protesto: “Devia ser estimulada a greve de fome. A princípio, liberava mais vagas nos presídios”, disse um ministro.

O conteúdo desta sessão, ocorrida no dia 1º de dezembro de 1977, está disponível ao público, desde esta sexta-feira, no portal “Voz Humana – Os arquivos sonoros de presos políticos”, que reúne mais de 10 mil horas de gravações de julgamentos de presos políticos de 1975 a 1979, no STM. Embora tivesse concordado em receber uma comissão parlamentar no dia seguinte, o tribunal entendia que a situação carcerária dos presos políticos era problema dos estados, responsáveis pelos presídios, e não da Justiça Militar.

“Voz Humana”, fruto do trabalho do advogado Fernando Augusto Fernandes pela abertura dos arquivos até então secretos, será lançado em ato na OAB-RJ. O portal permite o acesso de pesquisadores, estudantes e interessados a informações sobre o julgamento de presos políticos. Há um vasto conteúdo, por exemplo, no qual fica expresso o conhecimento dos 15 ministros que formam o tribunal sobre a prática de tortura contra presos políticos.

Os áudios da 91ª sessão do STM, onde se discutiu o tema, são marcados por frases de chacota com a greve dos presos. As citações não têm autoria identificada. Depois de ouvir o colega dizer que greve de fome deveria ser estimulada, um dos ministros complementou: “Greve de fome repentina para poder abrir mais vagas”. Um terceiro ministro, igualmente não identificável, acrescentou: “Greve de fome é voluntária. Quer fazer greve de fome, abre vaga no presídio. É até melhor”. Alguns riem, capta a gravação.

O então presidente do STM, almirante Hélio Ramos, que publicamente se dizia a favor da apuração das denúncias de abusos nas prisões, naquela sessão revelou sua irritação com a crescente pressão de entidades internacionais em defesa dos direitos humanos: “Eu por dia recebo cerca de 10 ou 15 ofícios, cartas, e Anistia Internacional, e não sei o que da Dinamarca, e não sei o que dos presos. Eu diariamente recebo um monte. Agora eu nem leio mais. Mando botar em um envelope. Abro um envelope e boto essas coisas, diariamente”. Um ministro não identificado faz piada e pergunta se colecionava selos. E é respondido por outro: “é bom guardar os selos para a coleção.

O historiador Leandro Ribeiro de Lacerda, autor da tese de doutorado “Legalidade autoritária, conflitos na caserna e repressão à oposição: os julgamentos secretos no Superior Tribunal Militar entre 1975 e 1979” (Universidade Salgado de Oliveira), disse que o conteúdo das sessões secretas questiona a ideia de que o STM tinha postura benevolente com os presos políticos, reduzindo as penas na maior parte dos recursos. Para ele, as gravações revelam uma posição mais conservadora e até dura, vendo as greves como estratégia de desestabilização do sistema e se eximindo de agir frente às denúncias.

Naquele momento, greves de fome se espalhavam por presídios do Brasil. Meses antes, presas da Penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, pararam de se alimentar para exigir a transferência para o Presídio da Frei Caneca, no Estácio (RJ), onde poderiam ficar mais próximas de seus parentes. No dia 1º de dezembro de 1977, em reportagem publicada pelo GLOBO, o juiz-auditor da 7ª Circunscrição Judiciária Militar (PE), Antônio da Silveira Pereira Rosa, denunciou que o isolamento imposto pela penitenciária aos presos políticos Carlos Alberto Soares e Rholine Sonde Cavalcante, condenados à prisão perpétua, era inconstitucional.

Assim como já havia ocorrido da greve das presas do Rio, a situação da dupla provocou uma reação em presídios espalhados pelo Brasil, chegando a reunir 84 presos políticos em 27 dias de greve de fome. As reivindicações, iniciadas por maus tratos nas carceragens, foi evoluindo até assumir grandes pautas, como a luta por anistia. O presidente do STM, Hélio Ramos, chegou a sustentar que “se (os presos) morrerem é porque querem”. Ele citou a greve das presas no Rio: “Salvar a vida humana acontece como nas moças daqui (…). Na hora que elas ficaram com fome mesmo. Elas trataram de comer”.

— Fiz greve de fome em 1977, com outras presas do Talavera, para pedir a nossa transferência para a Frei Caneca. Queríamos ficar mais perto das famílias. Eu tinha uma filha pequena e meu marido também estava preso, na Frei Caneca. Minha filha ficava com a minha sogra, que morava em Niterói e, de 15 em 15 dias, vinha com ela para me visitar — se recorda a ex-presa política e historiadora Jessie Jane, viúva de Colombo Vieira de Souza.

O advogado Fernando Fernandes, responsável pelo portal, disse que ainda luta pela divulgação de áudios ainda secretos de sessões do STM. Ele aguarda o julgamento de uma reclamação sobre o tema sob a relatoria da ministra Carmen Lúcia no Supremo Tribunal Federal (STF), na qual alega que, no material entregue a ele pelo STM, por determinação do Supremo, “faltam gravações classificadas como secretas: pautas de julgamento e atas disponibilizadas possuem anotações com a indicação de julgamentos para os quais o áudio não é encontrado”.

— O projeto do portal Voz Humana deveria ser sobre um passado de ditadura, tortura e desaparecimento, mas é um trabalho de consolidação da democracia de hoje e com olhar no futuro – disse Fernandes.

 

       Lula recria investigação sobre vítimas da ditadura

 

O governo federal decidiu reconduzir ao cargo antigos integrantes da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, extinta pelo governo Jair Bolsonaro no apagar das luzes de 2022. A procuradora federal Eugênia Gonzaga, destituída da presidência do colegiado em 2019, deve voltar ao posto.

Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, também voltarão Vera Paiva e Diva Santana, representantes dos familiares de desaparecidos políticos durante o regime militar, e o procurador Ivan Marx, que representa o Ministério Público Federal.

“A comissão está formada, mas houve dois imprevistos”, diz Nilmário Miranda, assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade da pasta.

“Primeiro, demorou a indicação da Câmara dos Deputados, porque demoraram a definir as comissões. Segundo, o previsto era que o presidente Lula fizesse um despacho [reinstalando a comissão] nesta sexta-feira (31), mas ele pegou pneumonia. Íamos apresentar para as famílias, mas tem que ter um decreto já publicado.”

Eugênia Gonzaga deixou o cargo depois de um imbróglio com o então presidente Jair Bolsonaro.

A comissão tinha determinado a correção do atestado de óbito de Fernando Santa Cruz, que desapareceu junto com o amigo Eduardo Collier Filho em 1974, depois de serem presos por agentes da repressão. O objetivo da medida era que o atestado dissesse que Santa Cruz foi vítima da violência de Estado.

Como resposta, Bolsonaro trocou 4 dos 7 integrantes do grupo. No lugar de Gonzaga, entrou Marco Vinicius Pereira de Carvalho, ligado a Damares Alves, hoje senadora e à época ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

O argumento oficial foi que os trabalhos do grupo teriam acabado e não havia mais como avançar.

“Isso é bobagem. Não há mais casos para [a comissão] julgar há muito tempo, mas a busca por restos mortais precisa continuar”, diz Nilmário de Miranda.

Santa Cruz e Collier Filho fazem parte de uma lista de 243 desaparecidos políticos feita pela Comissão Nacional da Verdade. A busca pelo paradeiro dos corpos ainda não localizados tem várias frentes inconclusas —inclusive por entraves que antecedem a gestão Bolsonaro.

“A comissão foi criada em 1995 sem verbas e sem estrutura técnica”, diz Eugênia Gonzaga. “Quando assumi, parlamentares passaram a destinar recursos de emendas para nossos trabalhos. Foi assim que conseguimos avançar.”

O colegiado pode enfrentar o mesmo problema quando for recriado. Nilmário diz que, como o grupo foi extinto, não havia previsão de verbas para ele no Orçamento: “Vamos ter que ver como resolver isso”.

Uma das principais frentes de trabalho ainda aberta é o caso da vala clandestina de Perus, descoberta no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, nos anos 1990 –desde então, apenas cinco desaparecidos foram identificados, os últimos dois em 2018.

O conjunto encontrado em Perus é composto por 1.049 caixas com ossadas, hoje sob os cuidados do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) da Unifesp, que capitaneia as pesquisas. Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier Filho são dois dos procurados ali.

De acordo com o médico Samuel Ferreira, coordenador científico da comissão, já foi analisado o material genético de 750 pessoas. Há ainda um conjunto de 151 casos com resultado previsto para até o fim de abril.

“Desse conjunto todo, existem amostras degradadas que talvez precisem de novas análises, porque são ossadas muito antigas”, diz Ferreira.

Uma vez finalizada essa etapa, ainda faltarão as pesquisas envolvendo as caixas com ossos de diferentes pessoas misturados, que são 26% do total. Além disso, também é preciso investigar quais vítimas da ditadura podem ter sido sepultadas em Perus, mas fora da vala.

“Estimo que tenhamos entre três a cinco anos de trabalho pela frente”, diz o professor Edson Telles, coordenador do Caaf.

Telles conta ainda que a universidade recebeu, no ano passado, ossos que podem ser de até oito pessoas e estavam em Petrópolis, onde funcionou a Casa da Morte, um dos mais terríveis centros de tortura do regime militar.

Além disso, a universidade detém hoje restos mortais exumados em outros cemitérios, como o de Vila Formosa, também em São Paulo –há a suspeita de que os corpos de 12 vítimas da ditadura ainda possam estar lá.

Também há outros cemitérios a serem alvo de investigações fora de São Paulo. A Comissão da Verdade apontou que os corpos de pelo menos 15 militantes de esquerda podem ter sido sepultados em uma vala clandestina em Ricardo Albuquerque, no Rio de Janeiro, onde foram encontradas 2.000 ossadas.

Outro ponto crucial são as apurações envolvendo a Guerrilha do Araguaia. Ao longo dos anos, o governo federal realizou expedições à região e encontrou várias ossadas, mas as identificações de restos mortais precisam prosseguir –e há novas buscas a ser realizadas.

É um trabalho que envolve não só viagens para escavações. Além da busca por testemunhas, há toda uma pesquisa histórica a ser feita: no caso dos cemitérios, por exemplo, os números em livros e guias antigos raramente batem com o número atual de sepulturas. Por isso, é preciso fazer um mapeamento desses espaços.

Para Eugênia Gonzaga, o trabalho seria mais fácil com a colaboração das Forças Armadas.

“Ao longo de todos esses anos, os governos nunca deram ordens claras para que os militares apresentassem informações sobre o destino dos corpos”, diz a procuradora. “As Forças Armadas alegam que não têm essas informações, mas isso não se sustenta. Acredito que essas informações existem, mas estão guardadas a sete chaves.”

A questão das ossadas jogadas em valas comuns tampouco se esgota com os militantes de esquerda vitimados pela ditadura. Na Vala de Perus, por exemplo, as pesquisas indicaram que a maior parte dos mortos é composta por pobres da periferia paulistana, cujas famílias também merecem respostas.

Por casos como esse, existe a defesa de que a Comissão de Mortos e Desaparecidos possa ampliar o seu escopo.

“A comissão poderia cumprir um papel muito importante ao ampliar a noção de quem foram as vítimas da ditadura”, diz o historiador Lucas Pedretti, da Coalizão por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia.

“Ela não se debruçou sobre as violações aos povos indígenas, aos camponeses ou às vítimas dos esquadrões da morte nas periferias urbanas.”

 

       Mourão afronta sociedade com defesa de regime criminoso

 

O senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS) elogiou hoje o golpe de Estado de 1964, que exatamente há 59 anos instaurou a ditadura militar que matou, torturou e sequestrou centenas de brasileiros.

Mourão chama golpe de “Revolução de 31 de março”. “Somam-se ataques às Forças Armadas desfechados nesta semana em mais um aniversário da Revolução de 31 de março de 1964”, escreveu ele em texto publicado pelo jornal Correio Braziliense.

Para ele, ditadura deixou legado positivo. “É praticamente impossível não encontrar os traços e antecedentes das reformas empreendidas naquele período, que dinamizaram sua sociedade e, principalmente, fortaleceram a democracia brasileira, que, pela primeira vez, teve um regime inaugurado sem golpe de Estado.” Ex-vice-presidente criticou Lula por “desatinos”, e governo por “omissões em relação à segurança pública”. “Os militares brasileiros conhecem muito bem o seu papel nessa democracia”, disse. “Quem parece não conhecer são os que, achando-se donos da história, querem dirigir o país com os olhos no retrovisor.” Exército ameaçou punir oficiais que comemorassem aniversário do golpe militar. Reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que o comandante do Exército orientou oficiais-generais a não comemorarem ou participarem de eventos comemorativos.

Em 31 de março de 1964, militares contrários ao governo de João Goulart (PTB) destituíram o presidente eleito e assumiram o poder por meio de um golpe. O governo comandado pelas Forças Armadas durou 21 anos e implantou um regime ditatorial. A ditadura restringiu o direito do voto, a participação popular e reprimiu com violência todos os movimentos de oposição. Relatório da Comissão Nacional da Verdade confirmou que ao menos 434 brasileiros morreram ou desapareceram durante o período. Quase cinco mil representantes eleitos foram destituídos, e mais de 20 mil pessoas foram torturadas. Os números são da Human Rights Watch.

 

Fonte: O Globo/FolhaPress/UOL

 

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