Construção da ponte
Salvador-Itaparica ameaça terreiros históricos da Bahia
A ponte entre
Salvador e Ilha de Itaparica, na Bahia, ainda não existe. Mas mesmo sem
nenhum bloco de concreto colocado, apenas com sondagens no mar, a megaobra já
deixa um rastro de ameaças: mais de 100 terreiros de matriz africana da Ilha de
Itaparica podem ser extintos, segundo um estudo divulgado sem alarde no meio da
documentação do projeto. Pior: as comunidades afetadas, que já são alvo de
violência e especulação imobiliária, não foram ouvidas pelos responsáveis pela
obra.
O Intercept
Brasil teve acesso às 500 páginas do Relatório de Avaliação de Impacto do
Patrimônio Imaterial, que foi encomendado pelo próprio governo da Bahia como
parte do processo de licenciamento do Sistema Rodoviário Ponte Salvador-Ilha de
Itaparica.
O estudo mapeou que
há 116 terreiros na Ilha de Itaparica sob ameaça e listou 45 impactos negativos
que estão afetando ou podem afetar as comunidades tradicionais de matriz
africana, como remoções, violação de lugares sagrados, demolições e degradação
ambiental, sem contar racismo e intolerância religiosa.
Além da ponte de 12
quilômetros, o projeto compreende quatro quilômetros de um novo sistema viário
na capital baiana, incluindo quatro viadutos e dois túneis. Para a Ilha de
Itaparica, formada pelos municípios de Itaparica e Vera Cruz, está prevista a
construção de uma nova rodovia, a duplicação de trecho da rodovia BA-001 e dois
novos pedágios.
O empreendimento é
uma parceria público-privada proposta pelo governo baiano e executada
pelo consórcio Ponte
Salvador-Itaparica,
formado pelas empresas chinesas China Railway 20th Bureau Group Corporation e
China Communications Construction Company.
Esta última esteve
envolvida em caso de violação de direitos de povos tradicionais do território
Cajueiro, na zona rural de São Luís, Maranhão, durante a construção de um porto
privado, conforme noticiou o
Intercept.
Dois dos terreiros
ameaçados pela ponte são tombados como patrimônios: o Ilê Tuntun Olukotun, de 1850, e
o Omo Ilê Agbôula, de 1940. Ambos
são casas de culto aos Egunguns, ancestrais masculinos que, durante as
celebrações nos terreiros, retornam sob roupas e paramentos sagrados para
abençoar e aconselhar seus filhos e filhas.
As comunidades de
culto de matriz africana são consideradas povos tradicionais pelas legislações
federal e estadual. Por isso, devem ser consultadas previamente sempre que
tiverem seus modos de vida e as estruturas físicas de seus cultos impactados
por um empreendimento ou uma obra, como determina a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, a OIT.
Mas, desde 2021,
lideranças de terreiros, pescadores, quilombolas e indígenas vêm denunciando ao
consórcio e a órgãos do governo nas três esferas o não cumprimento da
convenção. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o
Iphan, também recomendou a realização da consulta, assim como o Ministério
Público Federal da Bahia.
“A consulta era pra
ter sido prévia. Não foi feita. Foi uma falha do procedimento de licenciamento.
O consórcio e o Inema [Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, um órgão
do governo baiano] afirmaram ter interesse em resolver essa pendência, mas eu
salientei que, embora a empresa deva prestar informações e auxiliar, esse é um
processo que precisa ser intermediado pelo poder público e realizado pelas
próprias comunidades, sem interferências externas”, disse ao Intercept o
procurador Marcos André Carneiro Silva, do 17º Ofício Estadual Resolutivo para
Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais.
O Iphan reiterou
que seguirá exigindo o cumprimento da Convenção. “O objetivo é garantir que
sejam desenvolvidas ações mitigatórias e compensatórias aos detentores, com o
acompanhamento por um coletivo do qual participem representantes dos diferentes
grupos envolvidos”, informou o órgão.
Promessa da ponte
já provoca intolerância religiosa e especulação imobiliária
Desde o anúncio do
leilão de licitação vencido pelo consórcio chinês em 2019, a especulação
imobiliária vem deixando suas marcas em terreiros da ilha.
O impacto negativo
é tamanho que, para as comunidades, é como se a obra já estivesse pronta.
Moradores da Ilha de Itaparica repetiram aos pesquisadores responsáveis pelo
relatório, feito pela A Lasca Consultoria em Arqueologia, a mesma frase: “aqui
a ponte já chegou”.
“A
especulação imobiliária é considerada o epicentro desses impactos, através do
loteamento irregular de áreas, supressão sem regulamentação de áreas verdes,
circulação de pessoas não identificadas que assediam moradores etc”, afirma o
estudo.
Em um relato
registrado pelos pesquisadores, um sacerdote do candomblé, que preferiu não se
identificar, afirma que recebeu telefonema de uma pessoa desconhecida
informando que, para o terreiro estar seguro, ele deveria pagar de R$ 3 mil a
R$ 5 mil, do contrário, “sumiriam” com as pessoas.
“Se já está
começando assim, a tendência é piorar. Outro dia, parou um carro aqui na frente
de casa, desceu um homem e me chamou. Eu estava aqui no salão e fui ver o que
era. Ele perguntou se a casa era minha, se eu queria vender, que ele dava 100
mil reais, que era bom pra fazer um hotel aqui, porque tem saída para o fundo e
para esta rua. Eu fico com medo né, não sei se estão juntos [aquele que fez as
ameaças e o que fez a oferta]”, disse o sacerdote.
Em 2022, a Casa de
Exu Lalú, assentamento de entidade cultuada por membros do terreiro Omo Ilê
Agbôula, foi destruída por um homem
que, segundo relatos, apresentou um contrato de compra e venda de uma área sem
conexão com o local do assentamento e afirmou ser o novo dono das terras. A
casa da entidade foi derrubada, e os objetos de rituais foram jogados no
lixo.
Membros do terreiro
fizeram um protesto no local onde
o assentamento foi violado. Diante de agentes do poder público municipal e de
representantes do Iphan e do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da
Bahia, o Ipac, Balbino Daniel de Paula, que é o Alapini – sacerdote supremo –
do culto aos Egunguns, falou sobre a conexão entre a especulação imobiliária
disparada pela promessa da ponte e a destruição da Casa de Exu Lalú.
“Por que foi mexido
por esses donos, que estão aí se dizendo donos agora? Por que nunca vieram
antes? Por causa da especulação imobiliária? Por causa da ponte? Olha aí o
transtorno que essa ponte está começando a fazer com a gente. Ninguém nunca
reivindicou essa área, e por que agora um ato criminoso desse?”, questionou o
sacerdote.
A perseguição
religiosa, que se agravou no contexto ponte, já vem de décadas. O Ilê Omô
Agbôula precisou mudar de lugar duas vezes, em 1942 e em 1960, para fugir da
intolerância religiosa e da especulação imobiliária. Já o Terreiro do Silêncio,
instalado há 40 anos no Quilombo do Tereré, em Vera Cruz, foi invadido em 2022
por sete pessoas que, afirmando terem sido enviadas pelo suposto novo
proprietário da área, cercaram parte do terreno.
“Aqui é uma área de
40 mil metros quadrados, com quatro nascentes e 40 pés de Pau-Brasil. É uma
área de preservação. O trator chegou na sexta-feira de Carnaval. Derrubaram
quatro pés de Pau-Brasil e assorearam duas nascentes”, relata Carlos
Encarnação, babalorixá do terreiro.
Após conflitos, os
invasores sumiram, mas parte da área segue cercada. “Essa é a especulação
imobiliária que a gente tem sentido todos os dias. E olha que ainda não foi
posto nenhum bloco da ponte”, ressalta Moisés dos Palmares, yaô – ou iniciado
no candomblé – do terreiro.
“O entorno está
loteado. Com o anúncio da ponte começaram a fazer essa especulação. Hoje a ilha
está minada de especulação imobiliária”, diz Miguel Roque Filho, do terreiro
Tuntun Olukotun, de Itaparica.
Sistema viário
rasgaria parques que são áreas sagradas
O relatório notou
avanço da especulação imobiliária em duas áreas cruciais para os cultos dos
povos de terreiro: o Parque dos Eguns, em Itaparica, e o Parque das Mangueiras,
em Vera Cruz, regiões de mata fechada, com cursos d’água e árvores sagradas
necessárias para a realização de rituais, o fornecimento de insumos aos cultos
– como madeiras e frutos – e abrigam locais para o depósito de ebós (oferendas)
e a coleta de folhas sagradas.
O sistema
rodoviário da ponte rasga ao meio o Parque das Mangueiras, interceptando locais
sagrados. No caso do Parque dos Eguns, embora seja uma área de uso exclusivo de
iniciados no culto, constam no relatório fotos de casas irregulares construídas
na reserva. O desmatamento e a ocupação indevida, segundo pessoas ouvidas pelos
pesquisadores, estão ligados ao anúncio da chegada do empreendimento.
A Ilha de Itaparica
é referência nacional para os povos de terreiro, já que o culto aos Egunguns
estabelece relação direta com homens e mulheres sequestrados em países do
continente africano. “A gente cultua [os ancestrais] nas nossas casas, mas lá
[na Ilha] é como se fosse a morada deles”, explica Gersonice Ekedy Sinha
Brandão, conhecida como Ekedy Sinha, sacerdotisa da Casa Branca do Engenho
Velho, terreiro de candomblé mais antigo do Brasil.
A megaobra vem
sendo questionada não apenas pela ameaça aos terreiros, mas também por diversas
irregularidades, sejam jurídicas, ambientais ou financeiras, e também por falta
de transparência.
Entre as mais
graves, está o fato de não ter sido feita uma consulta prévia obrigatória às
comunidades, como já mencionado. Mesmo sem a consulta, a licença prévia do
empreendimento foi concedida pelo Inema em 2016 e renovada em 2022 por mais
cinco anos. Agora, o consórcio busca uma outra licença, a de instalação. Para
isso, o Iphan precisa dar seu parecer favorável ao relatório de avaliação de
impactos. Mas isso está longe de acontecer.
Em maio de 2022, o
órgão já havia considerado o relatório parcial insuficiente, “desaconselhando
sua aprovação para fins de emissão de licença de instalação”. Segundo um
documento assinado no início de novembro ao qual o Intercept
Brasil teve acesso, o Iphan considerou a versão final do estudo
insuficiente e deu um parecer desfavorável. O órgão aponta uma série de
descumprimentos de recomendações feitas anteriormente à A Lasca Antropologia,
responsável pelo relatório, incluindo a necessidade de ampliá-lo para outros 12
municípios da região.
O parecer ainda
questiona o argumento de que o empreendimento seria “um novo vetor de
desenvolvimento regional da Bahia”.
“Desenvolvimento
para quem? O relatório demonstra que a maioria dos detentores de bens culturais
entrevistados se apresentam bastante reticentes quanto à instalação e operação
do empreendimento, compreendendo uma radical reconfiguração de seus modos de
vida, no sentido negativo, prevendo, conforme experiências prévias, uma série
de impactos, tais como: o aumento da violência, do trânsito de veículos e
pessoas; nova instalação de habitantes exógenos na região, provocando por sua
vez o aumento da especulação imobiliária (já sentido desde o anúncio da
instalação do empreendimento na mídia)”, cita o documento.
O Iphan avaliou que
a maneira como os povos de terreiro foram procurados por profissionais da A
Lasca não foi inclusiva, com datas estipuladas que não levavam em conta o
calendário dos terreiros e sem a antecedência necessária.
“Assim, as
lideranças preferiram se retirar do processo, pois entenderam que o diálogo
proposto não era respeitoso e que poderia ser utilizado para forjar uma
anuência que não necessariamente teria sido dada por essas lideranças”, aponta
o documento do Iphan.
O órgão faz
recomendações de complementação dos estudos, incluindo a escuta de segmentos
sociais importantes para a pesquisa, como os terreiros de Itaparica.
Procurado, o
governo da Bahia afirmou que a realização da consulta determinada pela
Convenção 169 é uma condicionante da renovação da licença prévia e disse que “o
Inema já emitiu algumas notificações no processo de obtenção da licença de
instalação para que a concessionária realize as oitivas”. Ou seja: o governo já
havia expedido a licença prévia sem consulta, o que, pela Convenção 169 da OIT,
não poderia ter acontecido. Na renovação dessa licença, feita em 2022, a
consulta – que já não seria mais prévia –, foi apresentada como condicionante.
E novamente não foi feita.
Contrariando o MPF,
o Iphan e o próprio governo do estado, o consórcio chinês afirmou que as
consultas foram, sim, realizadas, por meio de oficinas e reuniões. “Lideranças
locais, representantes da concessionária, governo do estado e municipal, além
dos próprios órgãos intervenientes e licenciador, participaram desses eventos”,
afirmou o consórcio.
Em reunião
realizada em novembro com representantes do consórcio e do Inema, o procurador
federal reiterou que “audiências públicas, reuniões e oficinas não suprem a
ausência de consulta”. Questionamos o MPF se foi cogitada a possibilidade de
suspensão da licença prévia já expedida ou de barrar o novo pedido de licença –
a de instalação – enquanto a consulta não é realizada. O procurador disse que
não. As prefeituras de Vera Cruz e Itaparica foram procuradas para comentar,
mas não retornaram.
Atualmente, a
travessia de pessoas e veículos entre Salvador e a Ilha de Itaparica é feita em
ferry boat e barcos de passageiros que operam diariamente em um trajeto que
dura entre 45 minutos a uma hora. A ponte, segundo o Estudo de Impacto
Ambiental, conectaria a capital baiana a Vera Cruz, facilitaria o fluxo de
mercadorias e serviços e integraria a região metropolitana ao sul e oeste do
estado. A ponte seria a segunda maior da América Latina em extensão, atrás da
Rio-Niterói, com 13,29 quilômetros, e seu custo atual é de R$ 9
bilhões.
Desse total, o
poder público estadual deve aportar R$ 2,05 bilhões até o fim da construção,
prevista para ser concluída em 2028. Outros R$ 2,29 bilhões serão pagos pelo
governo da Bahia ao longo de 30 anos – R$ 76,6 milhões por ano –, a título de
contraprestações. Até agora, segundo a Secretaria de Infraestrutura da Bahia,
foram gastos R$ 22,6 milhões em consultorias de gestão e engenharia e
supervisão ambiental. O período de concessão do empreendimento aos chineses é
de 35 anos.
Apesar da violação
à Convenção 169 da OIT cometida pelo governo da Bahia e o consórcio, este ano o
governo federal habilitou o grupo
estrangeiro em
um programa de incentivos no qual ficam isentos de pagar PIS e Cofins sobre receitas
decorrentes das compras de equipamentos e materiais, além da prestação de
serviços e locação de máquinas. Em outubro, o Senado autorizou a Bahia a tomar
empréstimo internacional de 150 milhões de dólares – cerca de R$ 800 milhões –,
com garantia do governo
federal,
para a construção da ponte.
Desde 2013, ao
longo de três gestões do PT – Jaques Wagner, Rui Costa e agora Jerônimo
Rodrigues –, o governo da Bahia figura, ao mesmo tempo, como proponente do
projeto, contratante dos consórcios que executaram o projeto básico e o estudo
de impacto ambiental e também como expedidor das licenças, além de parceiro do
consórcio chinês.
Para o engenheiro
civil e ambiental Joselito Oliveira Alves, especialista em infraestrutura de
saneamento, essa sobreposição de atribuições do governo “causa estranheza”,
especialmente porque a mesma Secretaria do Meio Ambiente fez a avaliação do
projeto, os estudos de impacto e o licenciamento, via Inema.
“É o estado sendo
empreendedor e fiscal de si mesmo. Há claro conflito de interesses e, no caso,
em prejuízo da defesa do interesse público”, disse. O governo baiano afirmou
ao Intercept que as secretarias e autarquias estatais envolvidas são
autônomas.
Outra
irregularidade apontada por especialistas está na titularidade das licenças,
inicialmente concedidas a órgãos do governo, mas depois transferidas ao
consórcio sem passar pelos procedimentos necessários. Os chineses também
solicitaram uma licença de alteração para incluir a construção de uma nova
rodovia, construção de trevos rodoviários, entre outras obras.
Fonte: Por Fernando
Sabrina, em The Intercept
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