Num país de poucos e para
poucos, pode a negra intelectual falar? Ou só a branquitude, tudo pode?
Fabiane Albuquerque é uma socióloga e escritora
refinada, uma das mais talentosas a se destacar no cenário intelectual
nacional. Militante, negra, feminista popular, antirracista e defensora dos
direitos humanos, ela aprendeu desde cedo a ler e interpretar as dores do mundo
que atravessam os corpos e almas das populações historicamente minorizadas em
seus direitos e cidadania. Não é uma pessoa que foge de embates — muito menos
que se envolve em brigas tolas —, além de ser uma sonhadora incansável por um
futuro social transformador, acreditando na possibilidade de uma sociedade
brasileira mais justa. Para isso, contribui diariamente para a realização desse
sonho, por meio de seu trabalho como intelectual e de seu combate incessante ao
racismo e ao machismo estrutural, bem como ao nosso arcaísmo social sistêmico e
implacável.
Por essas e outras, não precisa ter sua práxis intelectual
defendida e nem justificada. Portanto esse texto se dá no sentido de apoio e
solidariedade ante a um ataque desmedido e irracional, que revela muito do
quanto somos hipócritas, além de seletivos, em nossa solidariedade. Como nossos
afetos e parcimônia, se dão de maneira enviesada e predeterminados, mesmo que
de maneira inconsciente, para somente alguns de nossa sociedade.
Fabiane, ao desenvolver sua crítica sobre o filme Ainda
Estou Aqui,
de Walter Salles, intitulada “Um
olhar negro, feminista e periférico sobre o filme Ainda Estou Aqui”, estabeleceu um
recorte de análise baseada em raça e classe, mediada por uma inflexão
feminista, com a qual pontifica divergência com a interpretação de “dor
universal” que se imputou ao longa-metragem. Você podendo concordar ou
discordar com essa análise, mas não justificando uma ocorrência de ataques
racistas e sexistas. Pondo em dúvida a capacidade intelectual de quem você não
compactua a mesma opinião. Além disso, tal discordância não deveria dar margem
para rotular Fabiane como insensível ou indiferente à dor alheia, nem para
impor a ela o que pode ou deve escrever ou como deve se portar. Esse tipo de
comportamento é não apenas ruim, mas também covarde, e está sendo direcionado a
ela pelo simples fato de contrariar o senso comum que se estabeleceu em torno
do filme. Fabiane está sendo julgada moralmente por algo que não disse nem
escreveu, sofrendo ataques pessoais baseados no que as pessoas interpretaram
que ela teria dito ou, pior, no que acham que ela quis
dizer.
Ataques oriundos de pessoas que se intitulam
progressistas, libertários e defensores dos direitos humanos, mas que se calam
diante das barbáries cotidianas das periferias sociais e urbanas que moldam o
Brasil e seus rincões de desumanidade. Não emitem nem mesmo uma mísera linha
digital de solidariedade, mas se mostram implacáveis quando se sentem racial e
socialmente interpelados, especialmente quando tal situação ocorre por alguém
de fora de suas ‘bolhas de convivência’ ou de reconhecimento social valorativo.
Em outras palavras, ela está sendo vilipendiada por
estabelecer uma crítica social e política — fundamentada em fatos históricos —
em relação à construção imagética do filme. Ao romper e não aceitar a estética
narrativa do filme, que considera centrada em um viés burguês, branco e de
classe média, Fabiane questiona a forma como esses elementos são sempre
colocados como referência padrão universal e incontestada de sofrimento.
Enquanto isso, as dores e os terrores impostos secularmente aos pobres,
especialmente aos indígenas e afrodescendentes, são minimizados,
descontextualizados ou, quase sempre, ignorados, sem gerar nenhuma empatia ou
emoção por parte daqueles que agora a acusam de pretensa insensibilidade moral
ou falta de empatia.
E, deve-se, em boa verdade, estabelecer que a sua
crítica não desmerece, por nenhum instante, a qualidade do filme, nem a sua
importância, mas tensiona o caminho optado pelo cineasta na sua construção
estética e discursiva. Ao sofrimento da família Paiva, toda e inconteste
solidariedade, a mesma que não ocorre em relação às dores de tantas mães não
brancas e pobres, que derramam rios de lágrimas por seus esposos, filhos,
irmãos e pais, diariamente sequestrados, torturados e — para sempre —
assassinados pela nossa violência estatal, pelo nosso genocídio civilizatório,
que sempre atinge os mesmos alvos desumanos e não cidadãos. Como tão bem foi,
didaticamente, explicado por ela, quando discorre em seu texto de análise
“Não estou desqualificando o sofrimento e as mortes das
famílias das classes médias e da burguesia durante este período, mas
sublinhando que o filme é um olhar sobre uma realidade específica, que não é da
maioria de brasileiros. O que tem de novo na Ditadura Militar, que durou 21
anos, é que a violência do Estado, presente no aparato militar, se voltou
contra corpos brancos e com dinheiro, o que era exceção até então. A população
negra sempre, repito, sempre, conviveu com a truculência, as torturas em
delegacias e prisões, o desaparecimento forçado, a alteração de provas e da
cena do crime, enfim, com o genocídio. Neste mesmo período, por exemplo,
os empresários do ramo imobiliário, em conluio com os militares, intensificaram
a expulsão da população das favelas com o intuito de alocar as famílias das
classes médias. A luta pela liberdade de expressão ainda era um sonho distante
quando a grande massa estava lutando por comida, moradia, trabalho e a própria
sobrevivência, luta esta que começou com a abolição da escravidão, em 1888, e
continua até hoje.” [ALBUQUERQUE, 17/12/2024]
O que nos resta indagar é se houve alguma inverdade no
que constitui o cerne de sua crítica ao filme. Houve alguma ofensa ou
insensibilidade ao sofrimento familiar que foi mostrado? Existe alguma
inverdade no que ela se propôs a abordar e refletir? Há alguma proibição ou
barreira que possa ser imposta ao teor de sua análise, em relação ao seu
desacordo com a ótica narrativa do filme? Ao estabelecer publicamente que não
pode haver um monopólio de classe ou raça sobre a dor, e ao expressar uma
divergência direta com o autor, ela deve ser desqualificada e desumanizada em
sua condição intelectual? Sua fala deve ser impedida ou silenciada?
Se tais considerações, insistimos, historicamente e
socialmente articuladas a partir de fatos, incomodaram a tantos, só nos resta
pontuar, num primeiro momento, o quanto a interpretação textual e discursiva de
alguns é falha. Mas, de fato, sejamos sinceros, o que a reação tão hostil ao
texto de Albuquerque nos revela é como a branquitude não tolera ter seus
privilégios atemporais de raça e classe questionados, em nenhuma hipótese ou
maneira. Unindo tanto conservadores/reacionários quanto progressistas/libertários
em torno de uma autodefesa visceral contra aquilo que se considera danoso à sua
existência.
Se uma crítica pública e qualificada sobre a escolha
artística de um cineasta causa tanta celeuma, ao ponto de ser desvirtuada como
se fosse um ataque ao sofrimento humano trabalhado em tela, ela nos revela, de
fato, a existência de outras tensões e intenções que estão por trás dessas
críticas.
Uma histeria desmedida se manifestou quando a fala
intelectual de uma mulher negra, feminista e negra foi interpelada por fatores
diferentes daqueles que ela realmente manifestou em público. Ela foi
desqualificada ou desvalorizada por aquilo que não disse ou não abordou, por
pessoas que se sentiram atingidas ou aviltadas, por aqueles que nunca admitem,
nem se aventuram, a se colocar no lugar dos historicamente e socialmente
marginalizados, como os outros.
Branquitude — que não consegue abstrair seus
privilégios, nem de seus pontos de vista consolidados — aversa-se a qualquer
tipo ou forma de olhar, de fala analítica que não reproduza nossa normativa
racista, socialmente hierárquica e conservadora de cada um no seu lugar.
Realidade que ainda hoje se reproduz em meio aos nossos conjuntos de relações
sociais e culturais. Como tão bem evidencia essa grita chorosa e desmedida que se
dá diante da análise de Fabiane Albuquerque, revelando muito mais as nuances
ideológicas que de fato movem o existir social de quem se sentiu atingido pelos
próprios demônios internos. Da incapacidade dessas pessoas em lidar de fato com
os males estruturantes de uma sociedade construída e moldada para a manutenção
e reprodução de uma hegemonia racista e machista, à qual se sentem incapazes,
ou não possuem interesse, em superar.
Qualquer análise que ocorra longe dessa recepção se dá
enquanto vitimismo de quem não sabe lidar com seus privilégios de raça e
classe. De quem não sabe, ou não consegue conviver, além de não aprender, com
as diferentes e diversas narrativas que existem fora e para além de seu mundo
existencial limítrofe e alienante.
Pode a negra intelectual falar? Na verdade, intelectual
ou não, a mulher negra sempre falou, constituinte primordial que é, desde
sempre, das histórias e resistências populares do Brasil… Deve e precisa falar,
discursar, escrever, cantar, poetar, dançar, pintar… Cada vez mais e mais… Como
quiser, quando quiser… Por diferentes perspectivas e sentidos… Por diversas
circulações e recepções…
E que todos, em meio a esse processo de aprendizado,
aprendamos cada vez mais e nos tornemos melhores com isso, em meio a tudo isso!
A negra intelectual falou! Que saibamos, de fato,
ouvi-la, interpretá-la e aprender com ela…
Sem nos importar com a mediocridade cognitiva ou
socialmente torpe daqueles que se incomodam — por outros interesses — diante
dessa geração de insurgentes potências! Que se manifestam sempre pela
perspectiva de que, se apague o apagamento, se silencie o silêncio, se ignore a
ignorância e se invisibilize o invisível, tudo isso enquanto tentam se impor as
historicidades que não são compreendidas ou aceitas pelos nossos cânones
civilizatórios hegemônicos.
Fonte: Por Christian
Ribeiro, no Le Monde
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