segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Num país de poucos e para poucos, pode a negra intelectual falar? Ou só a branquitude, tudo pode?

Fabiane Albuquerque é uma socióloga e escritora refinada, uma das mais talentosas a se destacar no cenário intelectual nacional. Militante, negra, feminista popular, antirracista e defensora dos direitos humanos, ela aprendeu desde cedo a ler e interpretar as dores do mundo que atravessam os corpos e almas das populações historicamente minorizadas em seus direitos e cidadania. Não é uma pessoa que foge de embates — muito menos que se envolve em brigas tolas —, além de ser uma sonhadora incansável por um futuro social transformador, acreditando na possibilidade de uma sociedade brasileira mais justa. Para isso, contribui diariamente para a realização desse sonho, por meio de seu trabalho como intelectual e de seu combate incessante ao racismo e ao machismo estrutural, bem como ao nosso arcaísmo social sistêmico e implacável.

Por essas e outras, não precisa ter sua práxis intelectual defendida e nem justificada. Portanto esse texto se dá no sentido de apoio e solidariedade ante a um ataque desmedido e irracional, que revela muito do quanto somos hipócritas, além de seletivos, em nossa solidariedade. Como nossos afetos e parcimônia, se dão de maneira enviesada e predeterminados, mesmo que de maneira inconsciente, para somente alguns de nossa sociedade.

Fabiane, ao desenvolver sua crítica sobre o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, intitulada “Um olhar negro, feminista e periférico sobre o filme Ainda Estou Aqui, estabeleceu um recorte de análise baseada em raça e classe, mediada por uma inflexão feminista, com a qual pontifica divergência com a interpretação de “dor universal” que se imputou ao longa-metragem. Você podendo concordar ou discordar com essa análise, mas não justificando uma ocorrência de ataques racistas e sexistas. Pondo em dúvida a capacidade intelectual de quem você não compactua a mesma opinião. Além disso, tal discordância não deveria dar margem para rotular Fabiane como insensível ou indiferente à dor alheia, nem para impor a ela o que pode ou deve escrever ou como deve se portar. Esse tipo de comportamento é não apenas ruim, mas também covarde, e está sendo direcionado a ela pelo simples fato de contrariar o senso comum que se estabeleceu em torno do filme. Fabiane está sendo julgada moralmente por algo que não disse nem escreveu, sofrendo ataques pessoais baseados no que as pessoas interpretaram que ela teria dito ou, pior, no que acham que ela quis dizer.

Ataques oriundos de pessoas que se intitulam progressistas, libertários e defensores dos direitos humanos, mas que se calam diante das barbáries cotidianas das periferias sociais e urbanas que moldam o Brasil e seus rincões de desumanidade. Não emitem nem mesmo uma mísera linha digital de solidariedade, mas se mostram implacáveis quando se sentem racial e socialmente interpelados, especialmente quando tal situação ocorre por alguém de fora de suas ‘bolhas de convivência’ ou de reconhecimento social valorativo.

Em outras palavras, ela está sendo vilipendiada por estabelecer uma crítica social e política — fundamentada em fatos históricos — em relação à construção imagética do filme. Ao romper e não aceitar a estética narrativa do filme, que considera centrada em um viés burguês, branco e de classe média, Fabiane questiona a forma como esses elementos são sempre colocados como referência padrão universal e incontestada de sofrimento. Enquanto isso, as dores e os terrores impostos secularmente aos pobres, especialmente aos indígenas e afrodescendentes, são minimizados, descontextualizados ou, quase sempre, ignorados, sem gerar nenhuma empatia ou emoção por parte daqueles que agora a acusam de pretensa insensibilidade moral ou falta de empatia.

E, deve-se, em boa verdade, estabelecer que a sua crítica não desmerece, por nenhum instante, a qualidade do filme, nem a sua importância, mas tensiona o caminho optado pelo cineasta na sua construção estética e discursiva. Ao sofrimento da família Paiva, toda e inconteste solidariedade, a mesma que não ocorre em relação às dores de tantas mães não brancas e pobres, que derramam rios de lágrimas por seus esposos, filhos, irmãos e pais, diariamente sequestrados, torturados e — para sempre — assassinados pela nossa violência estatal, pelo nosso genocídio civilizatório, que sempre atinge os mesmos alvos desumanos e não cidadãos. Como tão bem foi, didaticamente, explicado por ela, quando discorre em seu texto de análise

“Não estou desqualificando o sofrimento e as mortes das famílias das classes médias e da burguesia durante este período, mas sublinhando que o filme é um olhar sobre uma realidade específica, que não é da maioria de brasileiros. O que tem de novo na Ditadura Militar, que durou 21 anos, é que a violência do Estado, presente no aparato militar, se voltou contra corpos brancos e com dinheiro, o que era exceção até então. A população negra sempre, repito, sempre, conviveu com a truculência, as torturas em delegacias e prisões, o desaparecimento forçado, a alteração de provas e da cena do crime, enfim, com o genocídio.  Neste mesmo período, por exemplo, os empresários do ramo imobiliário, em conluio com os militares, intensificaram a expulsão da população das favelas com o intuito de alocar as famílias das classes médias. A luta pela liberdade de expressão ainda era um sonho distante quando a grande massa estava lutando por comida, moradia, trabalho e a própria sobrevivência, luta esta que começou com a abolição da escravidão, em 1888, e continua até hoje.” [ALBUQUERQUE, 17/12/2024]

O que nos resta indagar é se houve alguma inverdade no que constitui o cerne de sua crítica ao filme. Houve alguma ofensa ou insensibilidade ao sofrimento familiar que foi mostrado? Existe alguma inverdade no que ela se propôs a abordar e refletir? Há alguma proibição ou barreira que possa ser imposta ao teor de sua análise, em relação ao seu desacordo com a ótica narrativa do filme? Ao estabelecer publicamente que não pode haver um monopólio de classe ou raça sobre a dor, e ao expressar uma divergência direta com o autor, ela deve ser desqualificada e desumanizada em sua condição intelectual? Sua fala deve ser impedida ou silenciada?

Se tais considerações, insistimos, historicamente e socialmente articuladas a partir de fatos, incomodaram a tantos, só nos resta pontuar, num primeiro momento, o quanto a interpretação textual e discursiva de alguns é falha. Mas, de fato, sejamos sinceros, o que a reação tão hostil ao texto de Albuquerque nos revela é como a branquitude não tolera ter seus privilégios atemporais de raça e classe questionados, em nenhuma hipótese ou maneira. Unindo tanto conservadores/reacionários quanto progressistas/libertários em torno de uma autodefesa visceral contra aquilo que se considera danoso à sua existência.

Se uma crítica pública e qualificada sobre a escolha artística de um cineasta causa tanta celeuma, ao ponto de ser desvirtuada como se fosse um ataque ao sofrimento humano trabalhado em tela, ela nos revela, de fato, a existência de outras tensões e intenções que estão por trás dessas críticas.

Uma histeria desmedida se manifestou quando a fala intelectual de uma mulher negra, feminista e negra foi interpelada por fatores diferentes daqueles que ela realmente manifestou em público. Ela foi desqualificada ou desvalorizada por aquilo que não disse ou não abordou, por pessoas que se sentiram atingidas ou aviltadas, por aqueles que nunca admitem, nem se aventuram, a se colocar no lugar dos historicamente e socialmente marginalizados, como os outros.

Branquitude — que não consegue abstrair seus privilégios, nem de seus pontos de vista consolidados — aversa-se a qualquer tipo ou forma de olhar, de fala analítica que não reproduza nossa normativa racista, socialmente hierárquica e conservadora de cada um no seu lugar. Realidade que ainda hoje se reproduz em meio aos nossos conjuntos de relações sociais e culturais. Como tão bem evidencia essa grita chorosa e desmedida que se dá diante da análise de Fabiane Albuquerque, revelando muito mais as nuances ideológicas que de fato movem o existir social de quem se sentiu atingido pelos próprios demônios internos. Da incapacidade dessas pessoas em lidar de fato com os males estruturantes de uma sociedade construída e moldada para a manutenção e reprodução de uma hegemonia racista e machista, à qual se sentem incapazes, ou não possuem interesse, em superar.

Qualquer análise que ocorra longe dessa recepção se dá enquanto vitimismo de quem não sabe lidar com seus privilégios de raça e classe. De quem não sabe, ou não consegue conviver, além de não aprender, com as diferentes e diversas narrativas que existem fora e para além de seu mundo existencial limítrofe e alienante.

Pode a negra intelectual falar? Na verdade, intelectual ou não, a mulher negra sempre falou, constituinte primordial que é, desde sempre, das histórias e resistências populares do Brasil… Deve e precisa falar, discursar, escrever, cantar, poetar, dançar, pintar… Cada vez mais e mais… Como quiser, quando quiser… Por diferentes perspectivas e sentidos… Por diversas circulações e recepções…

E que todos, em meio a esse processo de aprendizado, aprendamos cada vez mais e nos tornemos melhores com isso, em meio a tudo isso!

A negra intelectual falou! Que saibamos, de fato, ouvi-la, interpretá-la e aprender com ela…

Sem nos importar com a mediocridade cognitiva ou socialmente torpe daqueles que se incomodam — por outros interesses — diante dessa geração de insurgentes potências! Que se manifestam sempre pela perspectiva de que, se apague o apagamento, se silencie o silêncio, se ignore a ignorância e se invisibilize o invisível, tudo isso enquanto tentam se impor as historicidades que não são compreendidas ou aceitas pelos nossos cânones civilizatórios hegemônicos.

 

Fonte: Por Christian Ribeiro, no Le Monde

 

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