Cobranças não autorizadas,
'pedágio' em doações: as denúncias de clientes da Enel no Ceará
Depois de muito
tempo sem conferir a conta de energia, a professora de estatística aposentada
Zélia Holanda, moradora de Fortaleza, resolveu olhar a letra miúda da fatura de
forma mais detida.
Tomou um susto.
Reparou que tinha pago no início de agosto, sem perceber, R$ 20 em duas doações
e dois seguros que nunca tinha autorizado à Enel, a concessionária
de energia no Estado do Ceará. Foi direto buscar os boletos dos meses
anteriores e viu que vinha sendo cobrada desde 2022.
Correu para o
WhatsApp e compartilhou um relato colérico sobre sua experiência, e não demorou
até que conhecidos e familiares respondessem, surpresos, que também estavam
pagando por seguros e doações sem consentimento.
Zélia foi
pessoalmente a uma loja da Enel para exigir a suspensão das cobranças e o
pagamento retroativo dos valores recolhidos indevidamente. A empresa abateu R$
119 na conta de setembro, mas até agora não devolveu tudo o que ela pagou
indevidamente.
Sua irmã, Edna
Holanda, de 88 anos, que também vinha sendo cobrada indevidamente, pediu ajuda
a uma das filhas para tentar resolver o problema.
"Liguei para a
Enel e eles disseram que eu deveria ligar diretamente para a ONG pra cancelar a
cobrança. Mas o telefone que aparece na conta simplesmente não funciona",
relata Tany Holanda.
Após reiterados
contatos com o call center da Enel, que insistia que a consumidora deveria
exigir à ONG o cancelamento da cobrança, Tany conseguiu que a distribuidora
excluísse o valor da doação, de R$ 3.
Na fatura seguinte,
entretanto, ele apareceu novamente. "Liguei mais uma vez e tiveram a
audácia de me dizer que eu teria que ligar todo mês pra tirar a cobrança da
conta. Respondi que isso era impraticável, fiz uma confusão e acabaram
cedendo."
Relatos parecidos
têm sido compartilhados com frequência no Reclame Aqui, com denúncias de
consumidores que dizem terem sido surpreendidos com doações das quais não
tinham ciência e enfrentado uma sucessão de obstáculos para suspender as
cobranças e obter ressarcimento. O mesmo problema não foi identificado pela
reportagem em São Paulo e Rio de Janeiro, onde a Enel também presta serviço.
A arrecadação de
doações por meio das contas de energia está prevista em lei e é regulamentada
pela resolução normativa
nº 1.000 da Aneel.
Ela deve, contudo, ser comprovadamente autorizada pelos clientes, que podem, ao
contrário do que tem acontecido no Ceará, "a qualquer tempo, solicitar a
exclusão das cobranças à distribuidora", conforme o artigo 331 da norma.
Em setembro, o
Ministério Público do Estado do Ceará (MP-CE) instaurou um procedimento para
apurar a responsabilidade da empresa na cobrança de doações nas contas de luz
sem autorização dos titulares, depois de ter sido procurada pela BBC News
Brasil com os relatos de consumidores e de ter recebido um ofício do Ministério
Público Federal repassando outras denúncias recebidas de clientes.
"Existe outra
questão muito perigosa também, que é a do funcionamento e até da real
existência dessas associações", comenta o promotor Hugo Xerez,
secretário-executivo do Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor do
Ceará (Decon/CE).
Ele se refere à
dificuldade que alguns dos clientes enfrentam para entrar em contato com as
entidades que aparecem como receptoras das doações. Em muitas das que
protagonizam as queixas mais frequentes do Reclame Aqui, os consumidores sequer
conseguem e reclamam que ninguém atende os números de telefones que aparecem
nas contas de luz.
Representantes de
outras entidades filantrópicas que também participam do convênio e conversaram
com a reportagem ressaltaram que as doações por meio das contas de energia elétrica,
desde que arrecadadas com a anuência dos consumidores, como determina a
regulamentação, são uma fonte de receita importante para muitas entidades
sérias do terceiro setor.
"As doações
são também um vínculo importante que a instituição mantém com a
sociedade", acrescenta Marcílio Maia, vice-presidente da Aquasis, que há
30 anos se dedica a proteger espécies ameaçadas de extinção no Ceará.
A ONG participa do
convênio com a Enel desde 2015 e também capta recursos inscrevendo projetos em
editais, fonte da maior parte do financiamento para as ações de conservação de
espécies.
·
'Pedágio'
de 10%
Além das
reclamações em relação às doações sem anuência, a BBC News Brasil apurou que,
apesar de a regulamentação indicar que a arrecadação para entidades filantrópicas
deve ser feita pela concessionária de energia de forma gratuita, há alguns anos
a Enel passou a ficar com 10% do total.
Questionada pela
reportagem, a empresa afirmou que, dos 10% que retém sobre os valores, 60% são
destinados "à modicidade tarifária", sem detalhar como o recurso é
aplicado, e o restante "é usado para suprir os custos operacionais que a
atividade demanda".
A multinacional
argumenta que a prática não está em desacordo com a regulamentação, afirmando
que no texto da resolução "não há vedação em relação à cobertura de custo
operacional para viabilização de projetos de contribuições e de doações para
atividades beneficentes".
A reportagem
questionou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que confirmou que a
arrecadação para as filantrópicas deve ser feita sem ônus para as entidades,
fazendo referência ao artigo 639 da resolução normativa: "A distribuidora
pode viabilizar a arrecadação de contribuições e de doações para atividades
beneficentes de forma gratuita para as entidades sem fins lucrativos de
filantropia ou assistência social que sejam legalmente reconhecidas".
Em 2019, a soma das
doações arrecadadas em contas de luz no Ceará, em São Paulo e no Rio de Janeiro
chegou a R$ 38 milhões, conforme os dados contidos no Relatório de
Sustentabilidade divulgado pela empresa naquele ano. Desde então, as
informações referentes ao programa, batizado de "Conta Contigo", não
aparecem mais nos demonstrativos anuais.
Questionada pela
reportagem, a Enel informou que, só no Ceará foram arrecadados R$ 21,03 milhões
em doações em 2023.
A empresa declarou
ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que os clientes que desejem
cancelar qualquer tipo de doação na conta de energia podem procurar seus canais
de atendimento e que, nos casos de cobranças indevidas, efetuará
automaticamente o cancelamento e o ressarcimento na própria fatura.
E afirmou que, após
tomar conhecimento da notificação do Ministério Público, está realizando uma
avaliação em toda a base de parceiros que arrecadam doações, fazendo revisão
nos controles e adotando medidas preventivas adicionais.
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CPI
recomendou cassação da concessão em maio
A questão das
doações é mais um item em uma longa lista de problemas relacionados à prestação
de serviços da concessionária.
Só neste ano, a Enel
foi objeto de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), uma no Ceará e
outra em São Paulo. Em ambos os casos, a recomendação foi de encerramento da
concessão.
No caso do Ceará, o
relatório final da CPI, divulgado em maio, enumera uma série de irregularidades
e práticas abusivas cometidas pela distribuidora na prestação dos serviços de
fornecimento de energia elétrica no Estado.
A lista inclui
desde a cobrança recorrente de valores indevidos e reajustes abusivos (como o
aumento de 24,35% nas contas de luz em abril de 2022) a "inúmeros
incidentes de apagões e falta de energia recorrente de maneira difusa em todas
as regiões do Estado nos últimos feriados" e a não realização de
investimentos previstos no contrato de concessão.
Segundo o texto, há
pelo menos 81 obras do Plano Anual de Investimento Especial em atraso, algumas
com obras pendentes de execução há mais de 10 anos. Uma delas é a instalação de
rede elétrica para atender à construção e operação do campus da Fiocruz no
Ceará, no pólo industrial e tecnológico do município do Eusébio.
A CPI verificou uma
gradativa piora na qualidade do serviço prestado pela Enel no Estado de 2017
para cá. Em 2021, último dado divulgado pela análise, a Enel passou a ocupar a
47ª posição entre 52 concessionárias no ranking que avalia o tempo que a
empresa leva para solucionar reclamações.
Assim como em São
Paulo, onde a empresa virou alvo de críticas após levar mais de cinco dias para
restabelecer completamente a energia após um temporal no último dia 11 de
outubro, no Ceará o tempo de espera para retorno da luz após interrupções no
fornecimento também tem aumentado.
Cássio Tersandro,
coordenador de energia da Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce), reitera
que o número de reclamações de consumidores contra a empresa continua
crescendo. Entre 2021 e 2023, o volume de queixas registradas por falta de
energia pela ouvidoria da Arce saltou de 1.415 para 2.580, aumento de 82,5%.
Nos últimos três
anos, diz o técnico, a estratégia da Arce para tentar reverter a piora na
qualidade do serviço no Estado vinha sendo centrada em um plano de resultados
pactuado com a Enel: a agência apresentava os pontos que deveriam melhorar e a
distribuidora se comprometia a trabalhar para melhorar os indicadores.
"Claramente
não funcionou aqui. A gente agora está partindo para outra abordagem, aumento a
dureza na nossa atuação, e aí vamos ver como a empresa se comporta",
afirma Tersandro.
Depois da CPI, a
Arce deu início a uma série de fiscalizações distribuídas em 6 temas. A
primeira, centrada na qualidade do serviço prestado pela empresa, resultou em
uma multa de R$ 28,5 milhões. Uma das fiscalizações em andamento tem como foco
o faturamento da Enel, e deve analisar também os convênios para arrecadação de
doações para entidades filantrópicas.
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Calendário
para 2025
O contrato de
concessão da Enel no Ceará, assim como em São Paulo, é de 30 anos e se encerra
em 2028. Caso a empresa quisesse prorrogá-lo, teria que fazê-lo 36 meses antes
do fim do prazo de vigência, em maio de 2025, portanto.
A empresa italiana
assumiu a distribuição no Ceará em 2009. Tem cerca de 1,4 mil funcionários no
Estado e atende 4,4 milhões de unidades consumidoras. Em 2023, o lucro líquido
da operação no Estado foi de R$ 315,4 milhões.
O professor do
Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Raphael Amaral avalia ser pouco provável a quebra do contrato de concessão,
como recomendou a CPI da Alece. "Cassar uma concessão é quase como demitir
um funcionário público. É algo complexo, um processo político que tem que
envolver o governo federal, já que a concessão é federal", diz ele.
"A Enel só
saiu de Goiás porque houve envolvimento direto do governador", emenda o
professor. Em 2022, a Enel vendeu sua operação no Estado após pressão do então
governador Ronaldo Caiado, que chegou a defender em diversas ocasiões a
cassação da concessão.
Um caminho possível
para o Ceará, ele acrescenta, seria deixar a concessão caducar e buscar outra
empresa para assumir a operação em 2028.
Fonte: BBC News
Brasil
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