sábado, 21 de dezembro de 2024

Ladislau Dowbor: A atualidade radical da Renda Básica

O ponto de partida óbvio é que o que produzimos no mundo, o chamado PIB global, é suficiente para garantir uma vida digna e próspera para todos. Também podemos usar a Renda Nacional Líquida ou acrescentar a infraestrutura já construída – casas, estradas, eletricidade, sistemas de água, ruas e tantas outras melhorias herdadas -, mas o fato básico é que o que temos e produzimos é suficiente. Para se ter uma referência, o PIB mundial, de 110 trilhões de dólares, para uma população de 8 bilhões, equivale a 4.600 dólares por mês para uma família de quatro membros. Mesmo no Brasil, com um PIB per capita de 10 mil dólares por ano, o que produzimos equivale a 3,3 mil dólares por mês por família de quatro membros. Podemos brincar com os números, mas o fato básico é que nosso problema não é econômico, mas de organização social e política.

É claro que teríamos de ajustar o que produzimos. Os EUA gastaram 2,3 trilhões em 20 anos na guerra do Afeganistão. Isso equivale a 315 milhões por dia, uma quantia que nos permitiria construir 8 mil casas por dia, escolas, casas, sistemas de esgoto, o que for. Teria sido mais popular. Você poderia ter feito isso no Paquistão, para criar integração política. Certamente teria sido mais inteligente do que bombardear, se considerarmos os resultados. E construir escolas, tirar as pessoas da pobreza e gerar empregos é politicamente mais poderoso do que gerenciar centenas de bases militares em todo o mundo.

Esse é apenas um exemplo, mas há muitos absurdos. Produzimos alimentos suficientes para todos, mas perdemos 30% deles por má administração. Certamente, os lucros financeiros e o setor militar aumentam o PIB, mesmo que sejam custos líquidos para a sociedade, mas será que o objetivo é esse “crescimento”? A questão não é o crescimento, mas o ajuste do que fazemos às necessidades sociais e aos desafios ambientais. Temos os recursos, as tecnologias e sabemos onde estão os dramas.

Um segundo ponto é que uma renda básica é extremamente necessária. Temos 750 milhões de pessoas passando fome e mais de 2 bilhões em situação de insegurança alimentar. Será que eles merecem? Será que cerca de 180 milhões de crianças que passam fome merecem isso? Na verdade, nem os pobres merecem sua pobreza, nem os bilionários das empresas financeiras merecem suas riquezas. Não estamos discutindo mérito aqui, mas humanidade básica. Desde quando a economia pode ser isenta de uma abordagem ética? Estamos falando de uma grande parte da humanidade em situações desesperadoras, quando a solução da questão das necessidades básicas custa uma ninharia.

Veja um número simples: dados do Crédit Suisse/UBS mostram que a riqueza do 1% dos adultos mais ricos do mundo chega a aproximadamente 250 trilhões de dólares. A metade inferior tem 5 trilhões. Isso significa simplesmente que uma transferência de 2% do 1% mais rico dobraria a riqueza da metade inferior. Em termos sociais, um dólar na base da sociedade é radicalmente mais produtivo do que no topo. A utilidade marginal do dinheiro é maximizada quando você o distribui. Coloco isso nesses termos porque soa muito científico, para os economistas. Mas é uma questão de bom senso e de respeito à dignidade humana.

E, por favor, não me venha com a conversa fiada de que se você der dinheiro aos pobres eles vão parar de trabalhar. No Brasil, o programa Bolsa Família do governo Lula, iniciado em 2003, alcançou mais de 50 milhões de pessoas e aumentou radicalmente o emprego. Não é um maná que cai do céu, é um piso sobre o qual os pobres podem se apoiar para construir suas vidas. Sim, a renda básica como um piso. O Banco Mundial fez amplos estudos sobre a armadilha da pobreza e, atualmente, temos muitos detalhes sobre isso no World Inequality Database (WID), nas publicações da Oxfam, nos estudos da equipe de Thomas Piketty e em muitos outros. As luzes estão acesas, depois de tanta Economia de Lixo [Junk Economics], como Michael Hudson a chama.

O que vimos no Brasil é que o dinheiro na base estimula a demanda – ele não se transfere para paraísos fiscais nem alimenta a dívida pública – o que, por sua vez, estimula a produção e a criação de empregos. E estamos falando de empregos úteis, como a construção de casas, a compra de móveis ou de alimentos melhores e coisas do gênero. E não gera inflação, pois esses são produtos cuja oferta pode se expandir rapidamente, garantindo o equilíbrio entre oferta e demanda. À medida que a economia se expande, mais dinheiro é arrecadado em impostos, equilibrando o orçamento. Não há mistério aqui. Durante a década de 2003-2013, tivemos uma redução drástica da pobreza e do desemprego, bem como um forte investimento e um crescimento do PIB de 3,8%. Mas o mundo financeiro odiou: era a prosperidade baseada na produção, não na extração financeira.

O que temos até agora com relação à questão da renda básica? Temos o dinheiro, podemos torná-lo útil (não na guerra contra o Afeganistão ou nas finanças). Ela é extremamente necessária, é útil tanto em termos de crescimento econômico quanto em termos éticos, e temos toda a economia necessária, uma vez que deixamos de lado a economia de baixo nível. E temos uma implementação em larga escala ao longo de muitos anos que mostra que funciona. E os custos? No Brasil, ajudar todas essas pessoas custou entre 0,5% e 1,5% do PIB, de acordo com os períodos. Na verdade, esses custos foram supercompensados: o estudo do IPEA mostrou que cada 1 real investido no Bolsa Família aumentou o PIB em 1,78 real.

É simplesmente o efeito multiplicador: o dinheiro na base gera consumo, demanda, empregos e impostos. O dinheiro no topo gera poder político e a devastação social e ambiental que estamos enfrentando – e o discurso de fachada de que eles são executivos responsáveis e preocupados com a austeridade. Sua austeridade é comovente, já que seu salário médio é, nos EUA, 350 vezes maior do que o salário médio de um funcionário. A quem estamos enganando?

Mas o que contraria muitas pessoas é o fato de que, enquanto elas trabalham para ganhar cada centavo, esse dinheiro chegaria a todos “de graça”. Uma primeira questão sobre esse argumento é que todos nós recebemos muitas coisas de graça. A terra, a água, as praias, a natureza, os chamados bens comuns. Elinor Ostrom recebeu o prêmio Nobel de Economia do Banco da Suécia por seu estudo sobre Governing the Commons [Governando os bens comuns, em tradução livre]. No Brasil, este ano, a privatização do acesso às praias está sendo discutida no Congresso Nacional. A privatização da água está crescendo em muitas regiões. O livre acesso aos bens comuns provou sua utilidade. Mas há muito mais. Na maioria dos países europeus, assim como no Canadá ou na China, o acesso aos serviços de saúde é gratuito e universal. Em muitos países, a educação também é gratuita, assim como o acesso a parques em uma cidade ou o uso de ruas, calçadas e estradas. E isso funciona. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, grandes grupos financeiros assumiram o controle da educação e da saúde. É um desastre.

Os serviços básicos universais representam custos, mas nós os temos “de graça”, o que significa que os custos foram cobertos pelos impostos que pagamos. Nenhum argumento moral é levantado aqui: os sistemas públicos de acesso universal gratuito são simples e radicalmente mais eficientes em várias áreas. Compare os custos dos serviços de saúde nos EUA: 11 mil dólares por pessoa por ano, com os custos de 5 mil dólares no Canadá, sendo que o Canadá está muito à frente dos EUA em termos de longevidade e saúde geral da população. O mesmo vale para a educação: com acesso universal público, ou pelo menos unidades sem fins lucrativos, o sistema é mais eficiente, enquanto a privatização leva a uma espécie de indústria ineficiente de diplomas.

De acordo com o relatório Schutter da ONU, os serviços básicos universais funcionam melhor quando são gratuitos. “Quanto mais as necessidades básicas forem atendidas pelos serviços básicos universais, menos as diferenças de renda serão importantes e menos as famílias de baixa renda serão penalizadas. A deliberação democrática deve assegurar que os recursos disponíveis sejam dedicados principalmente a garantir níveis adequados de prestação de serviços públicos (em áreas como saúde, educação, transporte público, fornecimento de energia e moradia) e proteção social, em vez de atender à demanda expressa pelos grupos com maior poder aquisitivo.” (págs. 9 e 15)

Portanto, de fato, muitos bens e serviços básicos são gratuitos para o uso de todos, mesmo que tenham custos. Como ordem de grandeza, podemos considerar que dois terços do bem-estar econômico das famílias resultam de ter dinheiro no bolso, para usar em lojas ou para pagar o aluguel, enquanto um terço resulta do acesso ao que chamamos de bens de consumo coletivo, ou um salário não direto, já que é pago pela administração pública, mas certamente representa uma parte do nosso conforto material. Viver em uma rua pavimentada certamente faz parte do nosso conforto. Os bens comuns, os serviços públicos e a infraestrutura são gratuitos, independentemente de se e quanto você paga de impostos. Será que não podemos considerar que alguma renda poderia ser adicionada a isso? Certamente não é uma questão moral, considere-a parte das necessidades básicas. E, como visto, certamente é produtivo para a economia. A ganância é estúpida. Um pouco de dinheiro sem custos não é muito diferente de outras formas de acesso à riqueza social.

Portanto, algumas coisas certamente precisam ser consertadas. Garantir uma renda básica é certamente a maneira mais eficaz e barata de reduzir o sofrimento e estimular a economia. Tom Malleson apresenta um argumento básico: Assim como é absurdo uma criança passar fome ou ficar doente e não ser atendida, porque seus pais não têm dinheiro, o apoio básico para uma vida próspera deve ser fornecido a todos, simplesmente porque são seres humanos: “Todos os seres humanos têm o mesmo valor moral. A razão final, e talvez a mais forte, para ser um igualitário é a razão prática: uma sociedade com mais igualdade seria, considerando todas as coisas, um lugar imensamente melhor para se viver.” (253)

Uma questão importante é que fornecer uma renda básica é tecnicamente muito mais fácil com o dinheiro virtual moderno e a conectividade global. Nossa experiência no Brasil mostra que isso pode funcionar se você fizer a lição de casa: um registro básico – ao construí-lo, descobrimos que muitas pessoas simplesmente não existiam formalmente, por não terem uma certidão de nascimento ou qualquer documento de identidade – e definir os valores e as condições. Ao fornecer um cartão de crédito específico para cada família, de preferência para as mães, o dinheiro transferido chega às famílias imediatamente – basta pressionar “Enter” no banco gestor. Baixo custo e sem intermediários.

O gerenciamento de rede do sistema é simples. Você pode começar com valores baixos, para que os ricos não fiquem muito desesperados com o fato de outras pessoas receberem dinheiro de graça em vez de eles mesmos, e aumentar e ajustar esses valores progressivamente. Em escala mundial, o imposto de 2% sobre os bilionários certamente ajudará. A renda básica não apenas aumentará a Felicidade Interna Bruta e estimulará a economia, mas também nos colocará em um caminho moral correto. Nossa atual prosperidade global é uma construção social, e a sociedade deve se beneficiar.

 

¨      Paulo Nogueira: "O quadro econômico se complicou e pode trazer dificuldades para o governo Lula"

O cenário econômico brasileiro enfrenta uma nova fase de instabilidade, marcada pela deterioração da confiança dos mercados e pela pressão crescente sobre a política fiscal e monetária. Conforme analisado pelo economista Paulo Nogueira Batista Junior, na TV 247, os desafios econômicos enfrentados pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva se intensificaram nos últimos meses, mesmo diante de avanços em indicadores sociais.

Nogueira destacou que, embora o desemprego tenha caído e o Produto Interno Bruto (PIB) esteja em contínua revisão para cima — com previsões de crescimento que podem atingir 3,5% em 2024 —, os mercados financeiros mantêm uma postura pessimista. "O quadro macroeconômico brasileiro se complicou de maneira bastante clara nos últimos tempos", pontuou.

<><> Entraves Fiscais e Reação do Banco Central

Um dos principais motivos para o nervosismo é a recepção negativa ao pacote fiscal apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O projeto encontrou resistência tanto no Congresso quanto no mercado financeiro, alimentando dúvidas sobre a solidez das contas públicas. A reação veio rapidamente: o Banco Central elevou a taxa básica de juros em 1 ponto percentual e anunciou mais dois aumentos na mesma magnitude nas reuniões seguintes, acumulando um aumento total de 3 pontos percentuais.

Essa decisão sinaliza um compromisso rigoroso com o controle inflacionário, mas também agrava o custo da dívida pública. "A taxa de juro que já vinha muito alta se tornou ainda mais onerosa para o país", alertou Nogueira. O impacto nas contas públicas ameaça comprometer o equilíbrio fiscal que o governo busca construir.

<><> Metas Ambiciosas e Ajustes Necessários

O Banco Central justificou sua postura mais agressiva pela percepção de que a economia teria se aquecido além do esperado, colocando em risco a meta de inflação. Contudo, essa política monetária contrasta com os esforços do governo para estimular o crescimento econômico e reduzir a pobreza.

"Melhorou a economia, temos que segurar o crescimento para evitar o descontrole da inflação", analisou o economista, destacando o dilema enfrentado pelas autoridades econômicas. O governo, por sua vez, está pressionado a ajustar sua política fiscal de maneira convincente e flexível para evitar que o Banco Central seja levado a interromper a recuperação econômica.

<><> Cenário de Incertezas

Com uma meta fiscal ambiciosa e uma inflação que ainda preocupa, o governo Lula enfrenta um teste crucial. Manter a credibilidade junto aos mercados, sem comprometer o crescimento econômico e os ganhos sociais obtidos até agora, é o maior desafio desta gestão. As próximas decisões serão determinantes para definir se a recuperação econômica será mantida ou comprometida por uma política de juros mais restritiva e um ambiente fiscal cada vez mais complexo.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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