Como a crise hídrica sufoca o Brasil
2023 foi o ano mais quente já registrado em 174 anos de
coleta de dados da Organização Meteorológica Mundial (WMO, na sigla em inglês).
A temperatura média global da superfície ficou 1,45 °C acima dos níveis
pré-industriais. Esse aquecimento leva a eventos climáticos extremos, como
ondas de calor, inundações, tempestades e secas, mudanças que causam impactos
na biodiversidade, com a perda de hábitats e espécies por causa das mudanças
nos ecossistemas e da acidificação dos oceanos, o que pode alterar a cadeia
alimentar marinha e afetar a pesca.
Entretanto, dizer que a temperatura do planeta corre o
risco de subir 2 °C pode não significar nada para as pessoas em geral. É
preciso explicar o que isso representa, qual é o impacto na vida delas e, dessa
forma, buscar engajar o conjunto da sociedade em ações e na cobrança de medidas
por parte de governos.
No Brasil, o impacto da seca severa pode ser sentido em
diversos setores e afeta diretamente a vida das pessoas. Já é possível observar
consequências no setor elétrico, na navegação, no abastecimento de água, na
saúde pública e na produção de alimentos.
No caso da energia elétrica, com menos água nos
reservatórios, o sistema gasta mais na geração, o que leva a Agência Nacional
de Energia Elétrica (Aneel) a acionar a bandeira vermelha do sistema tarifário,
onerando ainda mais o consumidor.
Na navegação, a seca reduz os níveis dos rios, o que
pode dificultar a passagem de embarcações, especialmente em áreas onde o
transporte fluvial é crucial para a circulação de alimentos, remédios e
pessoas. Na Amazônia, a seca está isolando algumas comunidades ribeirinhas. Com
isso, algumas cidades sofrem com a escassez de alimentos e com a falta de
outros suprimentos necessários para a sobrevivência, provocando um impacto
econômico especialmente para os mais pobres.
O aumento das temperaturas e da umidade pode afetar a
saúde, causando problemas como desidratação e doenças respiratórias, e criando
condições ideais para a proliferação dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes
albopictus, que são os principais transmissores da dengue. Isso resulta em
aumento dos casos da doença em várias regiões do mundo. Além disso, podemos
passar a conviver com a expansão de áreas em que proliferam os mosquitos Anopheles,
que transmitem a malária.
Já as secas prolongadas e as inundações podem
prejudicar o desenvolvimento das plantas, dificultando o enchimento dos grãos e
o crescimento dos frutos, e causando redução na produção agrícola e na
qualidade dos alimentos. Algumas áreas que antes eram adequadas para certas
culturas podem se tornar inviáveis em razão das mudanças climáticas, forçando os
agricultores a mudar suas práticas de cultivo e a buscar novas áreas para o
plantio. O aumento das temperaturas e a redução da disponibilidade de água e
pastagens podem afetar negativamente a saúde e a produtividade dos animais,
levando a uma menor produção de carne, leite e outros produtos de origem
animal. A combinação desses fatores pode acarretar uma maior insegurança
alimentar, afetando especialmente as populações vulneráveis que dependem da
agricultura para sua subsistência. Um relatório da Comissão Global sobre a
Economia da Água (GCEW, na sigla em inglês) mostra que mais da metade da
produção mundial de alimentos pode ser comprometida até 2050 caso não sejam
tomadas medidas urgentes contra a crise global de água. Segundo o relatório,
cerca de 3 bilhões de pessoas vivem atualmente em áreas onde o armazenamento de
água está em declínio. Certamente os mais afetados pela crise hídrica serão as
populações mais pobres e em processo de vulnerabilização social e econômica;
porém, o relatório adverte que nenhuma comunidade será poupada.
Ainda com relação à água, em 2022 o relator especial da
ONU sobre os Direitos Humanos à Água Potável e ao Esgotamento Sanitário, Pedro
Arrojo Agudo, produziu três relatórios sobre mudanças climáticas e os direitos
humanos à água e ao esgotamento sanitário. Em um deles, ele afirma que é
“amplamente compreendido e reconhecido que as mudanças climáticas surgem como
consequência da emissão massiva de gases de efeito estufa e, portanto, ninguém
duvida que as estratégias de mitigação devem ser lideradas pela transição
energética. No entanto, raramente se explica que os principais impactos
socioeconômicos são gerados em torno da água. Portanto, as estratégias de
adaptação devem ser baseadas em uma transição hidrológica que fortaleça a resiliência
ambiental e social diante das mudanças climáticas. Por um lado, é urgente
recuperar a saúde das zonas úmidas e dos aquíferos subterrâneos – verdadeiros
pulmões naturais do ciclo da água – que podem e devem ser reservas estratégicas
para secas cada vez mais severas”.
·
Direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário
O conteúdo normativo dos direitos humanos à água e ao
esgotamento sanitário engloba cinco pilares. Disponibilidade significa que o
abastecimento de água para cada pessoa deve ser suficiente e contínuo para uso
pessoal e doméstico. Esses usos normalmente incluem bebida, esgotamento
sanitário, lavagem de roupas, preparação de alimentos e higiene pessoal e
doméstica. Qualidade significa que a água necessária para cada uso pessoal ou
doméstico deve ser segura e livre de contaminantes que ameacem a saúde. A água
deve ter cor, odor e sabor aceitáveis para cada uso pessoal ou doméstico.
Acessibilidade física significa que as instalações e os serviços de água devem
ser acessíveis a todos, sem discriminação. A acessibilidade tem quatro
dimensões sobrepostas: acessibilidade física, acessibilidade econômica, não
discriminação e acessibilidade à informação. Acessibilidade econômica significa
que o acesso a instalações e serviços de esgotamento sanitário, incluindo
construção, operação (esvaziamento) e manutenção, deve estar disponível a um
custo acessível para todas as pessoas, sem limitar sua capacidade de acessar
outros direitos humanos. Aceitabilidade significa que os serviços de água e
esgotamento sanitário devem ser culturalmente aceitáveis. Isso inclui que eles
devem ser seguros e garantir privacidade e dignidade.
As mudanças climáticas impactam o acesso à água de
diversas formas. Com relação à disponibilidade, esta será ameaçada pelo aumento
da escassez e pela competição por recursos; a qualidade será comprometida na
medida em que há diminuição por causa da superexploração das águas subterrâneas
e do aumento da concentração de poluentes. A acessibilidade dos serviços de
água e esgotamento sanitário será ameaçada por danos generalizados e
infraestrutura em razão das inundações e eventos extremos. A acessibilidade
econômica dos serviços de água pode diminuir à medida que o aumento da disputa
e concorrência entre os usos da água leva ao aumento dos custos. Sob crescente
estresse, é provável que a aceitabilidade cultural dos serviços de água e
esgotamento sanitário não seja priorizada e, em alguns casos, seja ignorada.
Segundo Pedro Arrojo, prevê-se que os períodos de seca, durante os quais a
precipitação é muito reduzida e as fontes de água se esgotam, se tornem mais
longos e frequentes em certas regiões do mundo que já enfrentam condições
gerais de seca e estações secas.
Em 2024, o Brasil enfrentou a seca mais intensa e
abrangente desde 1950, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de
Desastres Naturais (Cemaden). Entre 2023 e 2024 foram mais de 5 milhões de
quilômetros quadrados afetados, o que representa mais da metade do território
nacional. Em 2024, 3.978 municípios estiveram em estado de seca com diferentes
intensidades, desde fraca até extrema. Isso significa que mais de 70% dos
municípios do país estavam em condição de seca, e, destes, 201 encontravam-se
em situação de seca extrema.
Ações do governo federal
Em setembro, o governo federal anunciou várias ações
para combater os impactos da seca e das queimadas por meio da edição de medidas
provisórias que liberaram crédito extraordinário de R$ 514 milhões destinado a
diversos órgãos. Assim, Ibama e ICMBio puderam adquirir materiais e equipamentos
e contratar novos serviços especializados de combate ao fogo, como brigadistas,
locação de viaturas e aeronaves; a Polícia Federal pôde custear despesas de
equipe em diligências, investigação, análise de imagens de satélite e perícias
que ajudam a identificar a origem dos incêndios; e o Fundo Nacional de
Segurança Pública recebeu recursos para mobilizar 180 novos profissionais da
Força Nacional durante cem dias para atuar no combate a incêndios. O governo
ainda prorrogou as operações de crédito rural para agricultores afetados pela
seca e criou uma Força Nacional de Emergência para lidar com questões
relacionadas à estiagem. Na área de Assistência Social, o governo está
fornecendo cestas básicas e alimentos para famílias afetadas pela emergência
climática, especialmente na região Norte.
Em que pesem essas importantes iniciativas, é preciso
destacar que se trata de medidas emergenciais que não enfrentam de forma
estrutural o problema da seca, e o tempo tem nos ensinado que “lutar contra a
seca” com medidas emergenciais não resolve o desafio.
A crise urbana
E nossas cidades? Estão preparadas para enfrentar os
desafios impostos pela emergência climática? Pesquisa realizada pela
Confederação Nacional dos Municípios (CNM), no primeiro semestre de 2024,
revela que não. Dos 3.590 municípios que responderam à pesquisa, 810 (22,6%)
afirmaram estar preparados para enfrentar o aumento da ocorrência de eventos
climáticos extremos, como secas, inundações ou outros desastres naturais, e
2.443 (68,1%) responderam que não. Além disso, 215 (6%) responderam desconhecer
as previsões de eventos climáticos extremos que poderão afetar seu município e
122 (3,4%) não responderam a essa questão.
Os municípios brasileiros precisam estar preparados,
com capacidade técnica e financeira, para elaborar planos de contingência e
mitigação para lidar com eventos extremos. É necessária uma grande cruzada que
envolva o poder público municipal, os governos federal e estadual, entidades
municipalistas, agências de fomento nacionais e internacionais, universidades,
Ministério Público, Defensoria Pública e sociedade civil.
No âmbito nacional, foram várias as iniciativas para o
enfrentamento da emergência climática, como as já citadas; porém, além de
“apagar incêndios” e construir grandes obras, é preciso combinar ações
estruturais com ações estruturantes, como dar centralidade às políticas de
combate aos desmatamentos e à invasão de terras indígenas por madeireiros,
garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais – enfrentar a violência contra os
povos das águas, dos campos e das florestas que continuam sendo mortos por
lutar contra invasões de suas terras. É necessário também combater as
desigualdades, garantindo ao conjunto da população acesso a políticas
inclusivas de crescimento econômico e conhecimento científico e tecnológico; e
fortalecer e valorizar os espaços de participação e controle social, eliminando
a assimetria do conhecimento e envolvendo a população em todas as etapas de
iniciativas propostas, sejam obras, demarcação de terras etc., desde a
concepção de projetos, a elaboração, construção e implementação, de forma a
respeitar as origens, as culturas e os laços familiares e de amizade das
comunidades dos territórios envolvidos.
Para enfrentar e possibilitar a convivência com as secas
é necessário que os investimentos sejam planejados com foco na sustentabilidade
ambiental e social, garantindo-se o acesso pleno à água em quantidade e
qualidade adequadas. Para isso é fundamental, por exemplo, desengavetar o
Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR) para evitar a insegurança hídrica
e promover a saúde das populações e, dessa forma, assegurar a segurança
alimentar. É preciso reforçar e promover segurança, apoio e fortalecimento das
comunidades rurais e quilombolas, estimular a agricultura familiar, incluir
mulheres e jovens nos processos de desenvolvimento, aplicar tecnologias e
metodologias adaptadas aos vários ecossistemas brasileiros, conservar e
regenerar os recursos naturais e buscar meios de financiamento adequados.
Nos últimos acordos internacionais, os países se
comprometeram a agir de forma a limitar o aquecimento global, e os países ricos
assumiram compromissos financeiros para ajudar os países em desenvolvimento.
Porém, isso precisa ser colocado em prática de fato. Esses compromissos estão
expressos no Acordo de Paris (2015), na COP26 (2021) e na COP29 (2024), mas não
vêm sendo cumpridos.
Em 2025, o Brasil sediará a COP30, em Belém. Será uma
grande oportunidade de o país mostrar sua força e capacidade de avançar no
enfrentamento da emergência climática e cobrar dos países ricos sua cota de
contribuição e responsabilidade conforme os acordos anteriores.
A existência da humanidade depende da vida do planeta
Terra. Com certeza ele sobreviverá, mas, caso não haja mudanças radicais no
modo de produção e consumo, a humanidade não resistirá. Como disse Ailton
Krenak, “a Terra não pertence a nós; nós pertencemos à Terra”.
Fonte: Por Edson
Aparecido da Silva, em Outras Palavras
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