"A história do capitalismo é a história também da luta
pela redução da jornada de trabalho", diz sociólogo
O professor Sidartha Soria,
do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ficou positivamente surpreso com
toda a discussão em torno da redução da jornada de trabalho e do fim da escala
6×1. De autoria da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) que faz essas alterações já conseguiu o mínimo de
assinaturas e vai tramitar no Congresso.
“Essa discussão toda gerada
pela PEC é importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos
negar: o direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o
que a gente não quer. Eu acho que proposta já teve um ponto positivo, só de ter
acendido uma lâmpada na cabeça de muita gente: ‘é realmente necessário que eu
trabalhe seis dias? Não dá para ser diferente?’. Isso já é alguma coisa, e não
é pouca coisa”, afirma o sociólogo.
Coordenador do Grupo de
Estudos em Sociologia do Trabalho e dos Ofícios (Gesto), Sidartha Soria
conversou com a Marco
Zero sobre os impactos que essas medidas podem ter na vida
dos trabalhadores e das trabalhadoras e quais são os obstáculos para a
concretização dessas mudanças.
LEIA A ENTREVISTA
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O sociólogo Ricardo Antunes falou recentemente aqui
no Recife que o tema do trabalho passou um tempo sem ser tão
discutido e, de uns anos para cá, tinha voltado a entrar em pauta, estar mais
na mídia. Por que aconteceu isso?
SIDARTHA SORIA – Nos anos 1990, houve uma discussão entre os pesquisadores que
diziam que o trabalho como dimensão analítica, como dimensão fundante da vida
social e econômica, não era mais tão importante, por conta do avanço
tecnológico. Normalmente quem traz essa discussão da perda de centralidade, da
perda da importância da dimensão do trabalho, está tentando puxar para o lado
de um passado que não volta mais, um passado em que havia muitos empregos,
empregos sobrando e que hoje não teria mais.
E o que o Ricardo Antunes
sempre tenta contextualizar é o seguinte: não, o trabalho nunca sai de pauta, a
importância dele nunca deixa de estar colocada. Primeiro, porque, numa
sociedade capitalista, a maior parte das pessoas vive do trabalho. É uma
sociedade do trabalho. Se você tem um volume maior ou menor de empregos, ou a
qualidade desses empregos está variando, você está gerando ocupações precárias
em maior quantidade do que ocupações com qualidade melhor, protegidas, com
remuneração melhor, isso é uma outra questão.
Mas o fato é que a
centralidade do trabalho está sempre colocada, a importância dele, inclusive na
definição da vida, das agendas das políticas públicas, da saúde e das condições
de vida das pessoas.
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A maior automação do trabalho pode ajudar a diminuir
a jornada do trabalhador?
Nos últimos 10, 15 anos,
temos uma escalada das inovações tecnológicas indo em direção à automação.
Automação é algo que já existe no capitalismo desde o século XIX, só que vai se
expandindo para outros setores, na forma primeiro da robótica e, mais
recentemente e principalmente, na forma da inteligência artificial.
O tamanho real dessa
escalada é algo que eu creio que não devemos tomar como um dado, e sim como
algo a ser também problematizado, algo discutido. A IA existe, está se
expandindo, mas a gente tem sempre que tentar dar o verdadeiro peso a isso.
Seja como for, é uma questão que a gente tem que enfrentar. E faz parte do
processo de automação do trabalho que vai implicar também não só no volume de
ocupações disponíveis, como também no tipo de ocupações.
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Por enquanto, as facilidades que essa automação cada
vez mais refinada traz ainda não impactam uma grande massa de trabalhadores,
como os que estão na escala, por exemplo, de trabalhar seis dias e folgar só
um?
Sim, sim. É uma boa pergunta
porque permite que a gente destaque onde é que a Inteligência Artificial
está entrando. Vamos dividir de modo bem grosseiro as ocupações em três níveis.
Primeiro, aquelas ocupações que têm um elevado grau de qualificação no sentido
da capacidade de criatividade humana, inventividade, a capacidade de dar
respostas originais para os problemas que vão surgindo. Esse perfil é pouco
afetado pela automação informatizada.
Outro setor que é pouco
afetado — e que inclusive no Brasil concentra grande parte das ocupações — são
as ocupações mais manuais, que exigem menos qualificação. A IA vai pegar
mais nesse miolo que é um trabalho já de escritório, mas é um trabalho mais
repetitivo. O trabalho no setor administrativo, na contabilidade. Sempre que a
rotina do trabalho da pessoa envolver rotinização de procedimentos, um
pensamento mais mecânico, mais repetitivo, essa área está ameaçada pela entrada
da Inteligência Artificial.
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Então como é que você vê a retirada da escala 6×1
para os trabalhadores do setor de serviços, como bares, restaurantes, transportes?
A discussão da redução da
jornada de trabalho é tão antiga quanto o próprio capitalismo. Desde que o
capitalismo surgiu, existe essa questão colocada, sempre antecedida por uma
intensidade grande de trabalho. Jornadas de trabalho imensas geram uma reação
por parte da classe que trabalha, da classe assalariada. A história do
capitalismo é também a história da luta pela redução da jornada de trabalho.
Sempre aquele cabo de guerra
em que o empregador procura ampliar a intensidade e a quantidade de horas, ou
manter elevadas, e a classe assalariada tentando diminuir. No que diz
respeito à discussão atualmente colocada, o que é importante destacar é que é
normal acontecer isso da parte de quem defende a manutenção do sistema atual. A
ideia de aterrorizar, de assustar, de chamar a atenção para o fato de que isso
pode devastar a economia, pode gerar muita crise, gerar desemprego, porque
aumenta o custo do trabalho para o empregador, você tem que contratar mais
gente, enfim.
Outro ponto nessa discussão
é que tem que ver como ficaria o sistema das horas extras, porque você tem
sempre a possibilidade de reduzir a jornada legal, mas, ao manter também a
legalidade da hora extra, isso atenua o impacto da medida. Em um contexto em
que os salários são mais baixos, o trabalhador também fica sensível a querer
trabalhar mais tempo.
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Há quem defenda que a redução de jornada é benéfica
também para os empresários. Como você vê isso?
Do ponto de vista da
economia como um todo, a redução de jornada é quase sempre benéfica para todo
mundo, para quem trabalha e para quem emprega. A questão do empregador que fica
temeroso em relação a isso é porque tem uma visão fragmentada. O empresário tem
um campo visual que é somente do negócio dele. Então, ele bota tudo no papel,
faz a contabilidade e fala “isso aqui vai me custar tanto”.
Mas, do ponto de vista da
economia como um todo — e aí é que entra a importância de uma gestão que tenha
uma visão macroeconômica e que não compre a perspectiva micro do empresário —,
se considera que, se você diminui a jornada, embora num primeiro momento
aparentemente você vai ter uma pressão em cima dos empregadores, isso logo é
compensado. Isso acontece porque aquele tempo disponível maior da força de
trabalho corresponde à dinamização de outros serviços, que vão gerar outros
empregos e vão aumentar a massa salarial.
A redução da jornada de trabalho aumenta o número de pessoas empregadas e
aumenta assim a massa salarial como um todo, o que beneficia todo mundo que
vende nessa economia, todo mundo que produz e vende, que é o caso do comércio,
dos serviços, da indústria. A economia brasileira ainda tem, em grande medida,
um dinamismo tecnológico baixo. Ou seja, ela é muito intensiva na mão de obra,
como serviços de atendimento, do comércio, de apoio à indústria, etc. Tudo isso
é mão de obra intensiva. Ao diminuir a jornada, aumentando a entrada de pessoas
no mercado de trabalho, dinamiza como um todo a economia. A tendência no médio
e longo prazo é o salário médio aumentar.
·
Diminuir a jornada pode ser uma medida para se
diminuir também o desemprego?
Sim, porque você facilita a
absorção de uma massa maior de pessoas. Quando você diminui o desemprego, a
tendência, como você tem uma oferta menor de mão de obra ociosa no mercado, é o
valor da mão de obra ir subindo. Por quê? Porque, se eu emprego você sabendo
que tem 10 pessoas lá fora querendo o seu lugar, a tendência é eu diminuir o
salário. Agora, se tem pouca disponibilidade de força de trabalho lá fora, aí
você quem está com a bola, você fica mais valorizado. Porque, inclusive, você
não precisa se submeter às más condições de trabalho.
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Isso ajuda os trabalhadores a terem mais poder nessa
barganha, não é?
Sim, você não precisa se
submeter às condições que eu coloco para você unilateralmente. Você pode sair
porque tem oferta de trabalho em outros lugares. Ou seja, isso favorece quem
vive de salário, a classe trabalhadora. E talvez seja aí um ponto delicado que
explica a resistência dos empresários à redução da jornada. Porque, veja, eu
disse agora mesmo que, do ponto de vista do giro da economia, isso favorece a
todo mundo no médio prazo. Você vai vender mais porque tem mais gente com renda
para consumo.
Então, o capitalista deveria
gostar disso. O empresário deveria gostar disso. Por que ele não gosta? Porque,
não só no início que ele fica temeroso de ter que gastar mais com contratação,
mas principalmente porque, se o emprego está muito alto, o desemprego está
baixo, o poder dele sobre os seus funcionários no âmbito da sua empresa, do seu
negócio, tende a diminuir. Porque a classe trabalhadora fica mais fortalecida
quando você tem um desemprego baixo.
Ou seja, a resistência à
diminuição da jornada é mais de natureza política, de natureza disciplinar do
capitalista, do que propriamente econômica. Porque economicamente vai aumentar
no médio prazo o número de vendas, o volume de vendas e de lucro do
capitalista. Mas vai diminuir essa ingerência do capitalista sobre a gestão da
força de trabalho dele, porque o trabalhador vai ficar mais fortalecido em
termos estruturais.
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Pelo outro lado, o trabalhador na escala 6×1,
cansado, também favorece o capitalismo? Porque esses trabalhadores tão cansados
não vão ter nem forças pra tentar lutar pelos seus direitos.
De fato, fica todo mundo
exausto, estressado. A escala 6×1 massacra todo mundo em geral, deixa todo
mundo cansado, extenuado. Mas em particular, mulheres, e mulheres negras, que
acumulam, muitas vezes, com o trabalho do cuidado e o trabalho doméstico. As
pessoas ficam mais preocupadas em descansar no pouco tempo disponível que têm.
A sociedade do trabalho que temos é uma sociedade do trabalho adoecida. Física
e, principalmente, mentalmente.
O alto consumo de
psicotrópicos e de medicamentos psiquiátricos é para dar conta das demandas,
para conseguir suportar. Então, não deixa de ser uma forma de manter as coisas
estabilizadas através de você manter todo mundo exausto o tempo todo. E eu acho
que é por isso mesmo que você tem esse movimento grande na luta pela mudança
dessa escala. Porque o pessoal está cansado de estar cansado.
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Em 1988, a Constituição reduziu o tempo máximo de
trabalho de 48 para as atuais 44 horas semanais. Em alguns países ricos, está
se adotando a semana 4×3. Isso pode virar uma tendência mundial?
Bom, aqui é mais difícil por
algumas razões. É mais fácil nos países desenvolvidos, primeiro, porque os
salários médios são mais altos. O que diminui, por exemplo, a tentação entre os
trabalhadores de pegar hora extra não é tão necessário. O salário baixo daqui é
o primeiro obstáculo. O segundo obstáculo é a resistência patronal, que é mais
forte aqui do que lá. Porque, assim, ela é proporcional à resistência da classe
trabalhadora, falando aqui da força do movimento sindical.
Esse é um fator que pode
dificultar: quão forte ou quão enfraquecido está o nosso movimento sindical
para poder levar essa luta adiante? Esses seriam os principais obstáculos para
o sucesso dessa medida. Entre os próprios trabalhadores pode ter uma
resistência porque, como o salário é baixo, ele fica mais tentado a adotar a
hora extra para aumentar o rendimento, ainda que a médio prazo com a redução da
jornada a tendência geral é o salário médio aumentar.
Temos no Brasil ainda um
outro fator, que é a informalidade muito elevada no nosso mercado de trabalho.
A lei atenderia quem está no mercado formal. Ou seja, entre 40% e 50% da
população que está economicamente ativa ficaria de fora disso, porque é uma
massa que trabalha à revelia da lei trabalhista.
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E poderia até gerar mais informalidade? Ao invés de
contratar como CLT, as empresas poderiam contratar como PJ?
O aumento da informalidade é
um risco, sim, principalmente nos setores econômicos e nos estabelecimentos
econômicos menores. Nas grandes indústrias, nas grandes empresas, a
informalização é mais difícil de acontecer. No capitalismo, a tendência é
sempre ir aumentando o tamanho das empresas. E a empresa maior fica mais
obrigada a obedecer vários tipos de normas e regulamentos. Tem mais
fiscalização.
Temos que também ter em
mente que essa pejotização, essa MEIização da
força de trabalho já é um processo que marcha há bastante tempo. Esse é um
obstáculo sério, mas a gente também pode ver por um outro lado. Uma vez que
você tem uma quantidade significativa de pessoas no mercado de trabalho que são
celetistas, se a redução de jornada virar lei, os efeitos benéficos passam a
ser percebidos socialmente. Na verdade, eu acho que isso poderia gerar um
movimento de contrafluxo em relação à tendência anterior, de pejotização.
Os trabalhadores começariam a pressionar para voltar para o sistema anterior,
para o sistema celetista.
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Como é que esse enfraquecimento dos sindicatos,
principalmente depois da reforma de Temer, influencia na garantia dos direitos
dos trabalhadores?
O movimento sindical sempre
foi, na história do capitalismo, um fator de defesa dos interesses imediatos da
classe trabalhadora e que, inclusive, tem impactos econômicos. Porque se o
sindicato está lá para defender uma remuneração mínima ou então um aumento da
remuneração, há um efeito econômico. Isso não afeta positivamente só a vida do
trabalhador individual, mas afeta também positivamente a economia como um todo.
O movimento sindical tem
essa dupla dimensão. No Brasil, historicamente, o sindicalismo é dificultado no
seu processo de fortalecimento. Primeiro, porque a nossa economia tem um dinamismo
muito baixo. Então, são muitas ocupações precárias. E onde você tem ocupação
precária, você vai ter também uma dificuldade maior de construção de movimentos
operários, movimentos trabalhadores organizados. Estou dizendo que é difícil
sim, impossível não. Tanto é que a gente vê já, por exemplo, nos segmentos de
pessoas que trabalham com aplicativos de entrega, de transporte passageiro, uma
organização surgindo. Isso é uma tendência, o pessoal leva aquela lapada do
capital, aí sofre, depois vai se organizando para resistir.
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Você está otimista com esse movimento agora dessa
PEC, com essas questões de trabalho voltando a serem discutidas?
Eu primeiro fiquei surpreso
com a repercussão. Aliás, positivamente surpreso. E também serve como um
indicador de que, como falamos aqui no início, a questão do trabalho no mundo
moderno está sempre colocada, a importância dele não pode ser nunca minimizada
e uma prova está aí, que as pessoas estão entrando nessa discussão. Me parece
que tem muita gente a favor da medida, justamente porque não é necessário você
trabalhar tanto, nem mesmo do ponto de vista da produção da riqueza, porque, se
você aumenta a produtividade da economia, você produz mais ou tanto quanto
produzia antes em menos tempo, o que libera mais tempo para você poder
descansar, tomar conta das outras esferas da vida, ficar com a família, se
divertir, etc.
Ou inclusive se informar, se
instruir, porque o avanço dos sistemas informatizados uma hora chegará em todo
lugar. Isso nos coloca um desafio: temos que ir atrás daquilo que não pode ser
substituído por uma máquina, ou por um algoritmo, ou por um sistema de
inteligência artificial. O que é humano no processo e que realmente não pode
ser reproduzido? A nossa capacidade como artífices, a nossa capacidade inventiva,
a nossa capacidade criativa, aquilo que faz a humanidade ser o que é. Nós somos
uma espécie que inventa e se reinventa o tempo todo. Robô nenhum vai fazer
isso. Nenhum sistema de inteligência artificial é capaz de pensar como nós
somos capazes de pensar.
A despeito dos obstáculos
para a PEC passar, eu acredito que, em algum momento, vai acabar passando,
porque o mundo anda, as economias mais desenvolvidas seguem avançando e as
influências disso chegam para nós. Temos razões para ficarmos otimistas, pelo
menos em relação a ter jogo. Está sendo discutido e repercutido, e isso é
importante para pensar o que essa sociedade do cansaço procura nos negar: o
direito de ficar refletindo sobre a vida, sobre o que a gente quer e o que a
gente não quer. Eu acho que essa PEC já teve um ponto positivo, só de ter
acendido uma lâmpada na cabeça de muita gente: “é realmente necessário que eu
trabalhe seis dias? Não dá para ser diferente?”. Isso já é alguma coisa e não é
pouca coisa.
Fonte:
Marco Zero Conteúdo
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