terça-feira, 3 de dezembro de 2024

As ilusões da esquerda liberal

O que o Partido dos Trabalhadores buscou em todo esse tempo foi se mostrar como um gestor competente do sistema econômico capitalista brasileiro

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·        A contra-revolução

Apesar de não ser o único momento e nem sequer o mais importante, as eleições burguesas são uma oportunidade para refletir sobre os caminhos políticos escolhidos, seus sucessos ou suas falhas, além de mobilizar para determinadas pautas. A questão fundamental não é analisar somente os votos, mas compreender a tendência interna do movimento político que os votos manifestam na superfície. Nesse sentido, as eleições de Outubro de 2024 são absolutamente vitais para fazer uma reflexão teórica sobre a estratégia e tática da esquerda brasileira.

A teoria, há muito tempo abandonada pela maioria dos partidos desse campo político, não é um diletantismo intelectual sem relevância, mas, ao contrário, permite analisar o real e, a partir disso, estabelecer o caminho de uma práxis política coerente. Refletir teoricamente é estabelecer caminhos concretos práticos. Assim, a teoria é uma necessidade que se impõe a qualquer partido político de esquerda. As últimas eleições permitem estabelecer alguns pontos fundamentais a esse respeito.

O resultado da votação do último mês de outubro marcou um avanço a largos passos da direita e da extrema direita. Houve vitória de partidos nesse espectro político em 25 das 26 capitais brasileiras. O avanço da contra-revolução da direita encontra um terreno fértil na capacidade de mobilização da população, reforçando uma tendência que já havia se apresentado nas últimas eleições. Existem, então, duas possibilidades de reflexão para se fazer. De um lado, é possível indagar: como a direita e a extrema-direita conseguem vencer de forma avassaladora a esquerda? Por outro lado, seria também plausível questionar: como a esquerda consegue perder de uma maneira tão retumbante?

A primeira pergunta envolve menos pensar sobre o que é um partido de esquerda, sua estratégia e tática, e mais sobre como analisar a conjuntura. A direita e a extrema-direita se apresentam como antissistema, ou seja, contra o sistema político burguês existente. Mas, afinal, que sistema é esse? É o sistema que explora os trabalhadores, cria longas filas em hospitais, amplia o medo e a insegurança diante dos mais variados crimes cometidos, intensifica o trânsito e degrada o transporte público, dificulta o acesso a bens de consumo necessários, transforma a educação pública em algo do qual todos querem fugir, polui e desmata a natureza, acaba com o lazer gratuito e diverso e deixa a arte nacional em completo esquecimento e descrédito.

Qualquer trabalhador brasileiro reconhecerá facilmente uma, duas ou mais características dessas citadas acima, além de outras, em suas cidades. Cada um dos milhões de trabalhadores brasileiros sabe o que essa situação é e quais são seus efeitos práticos na luta da vida cotidiana.

A direita captura, dessa forma, uma insatisfação do povo brasileiro em relação ao sistema político totalmente apodrecido, composto por um conjunto de políticos a serviço de frações do capital (latifundiários, banqueiros, industriais) e também em relação ao sistema econômico-social que existe no Brasil, isto é, um capitalismo dependente que gera o subdesenvolvimento. Há, portanto, uma compatibilidade entre a insatisfação generalizada da população brasileira e aquilo que é propagandeado pela direita, não somente durante as eleições, mas durante praticamente todo o tempo restante. É essa compatibilidade que permite o avanço ininterrupto da direita e a consolidação da sua força de mobilização política.

Contudo, essa ideia que a direita dissemina é antissistema apenas na aparência, pois, na realidade, ela é uma validação ultrassistema, ou seja, a direita só pode manter e aprofundar todas as mazelas que os trabalhadores brasileiros sentem em sua pele cotidianamente. Na aparência, como crítica do sistema e redentora dos trabalhadores; na prática, como agente de intensificação da exploração dos trabalhadores. Aqui está a vitalidade política da direita.

Diante desse cenário, qual tem sido o papel da esquerda brasileira? Quais são os caminhos que ela traçou para combater um inimigo tão astuto, quanto potente? Para isso, é necessário pensar na estratégia e tática dessa dita esquerda.

·        Estratégia e tática da esquerda liberal

Para discutir a estratégia e tática da esquerda liberal, é importante analisar as eleições da cidade de São Paulo. Essa cidade é significativa não somente por ser o maior município brasileiro, mas também porque ela representou a nacionalização das eleições. De um lado, Jair Bolsonaro apoiou, juntamente com Tarcísio de Freitas, o candidato Ricardo Nunes do MDB. Por outro, Lula apoiou o candidato Guilherme Boulos do PSOL. Assim, ambas candidaturas representavam uma disputa política nacional.

O primeiro elemento que chama a atenção no segundo turno foi a quantidade de abstenções: 2,8 milhões de pessoas deixaram de votar, um total de aproximadamente 31% da população paulistana. Junto com as abstenções, os 665 mil votos nulos ou brancos superaram inclusive em número o candidato Ricardo Nunes que venceu e ficou com 3,3 milhões de votos. Isso é uma manifestação clara do descrédito do povo em relação ao sistema político, o que reforça a completa impossibilidade desse mesmo sistema de resgatar sua credibilidade e sua funcionalidade. O candidato Guilherme Boulos ficou com 2,3 milhões de votos, um milhão de votos abaixo de Ricardo Nunes.

Guilherme Boulos foi o candidato apoiado por Lula e o PT, uma vez que esse partido abriu mão de uma candidatura própria para apoiar o PSOL. Portanto, Guilherme Boulos foi o representante da esquerda liberal em São Paulo, tendo em sua campanha praticamente uma imitação da forma lulista de agir politicamente: dialogar com todos e rebaixar o nível de consciência crítica da campanha. Em seu programa, Guilherme Boulos colocou como ponto importante o estímulo ao empreendedorismo periférico (!).

Nada podia ser mais distante de um programa de esquerda. Ao tentar angariar mais votos, o PSOL adotou pautas da direita, o que só poderia constituir um fracasso, pois não se pode adentrar a disputa no campo ideológico do adversário, mas, ao contrário, é necessário elevar a consciência e fazer a crítica sem concessões àquilo que é ideologia e que reforça concepções disseminadas pelos grandes veículos de comunicação.

Contudo, Guilherme Boulos e o PSOL apenas continuaram uma prática política que o Partido dos Trabalhadores pavimentou ao longo de mais de duas décadas. É necessário voltar a análise para esse partido, sua estratégia e tática.

Para fazer uma crítica coerentemente ao PT, partiremos de um pressuposto que já foi válido para o partido, inclusive em seus congressos, que é o seguinte: o partido busca alcançar o socialismo no Brasil. Fazermos a análise inicialmente dessa forma para não interferir em conclusões sobre o problema proposto. Em seguida, introduziremos elementos concretos para conseguirmos nos aproximar da realidade.

A partir do pressuposto de que o PT procura alcançar o socialismo no Brasil, segue-se a pergunta: como? Nos últimos 20 anos, o partido obteve uma consistência eleitoral significativa, elegendo prefeitos em grandes capitais, governadores em estados significativos e dos últimos 22 anos, governou o país praticamente por 15 anos. Essa consistência eleitoral não está desvinculada de sua tática, mas sim organicamente a ela articulada.

Para se alcançar o socialismo, o PT procura ganhar cargos políticos (englobando tanto os de caráter executivo acima descritos como os de caráter legislativo, como vereadores, deputados estaduais e federais e também senadores) e através do aumento do número desses cargos gerar um acúmulo de forças que poderia fazer a situação política pender para seu lado e, assim, gerar uma quantidade de reformas que transformariam a sociedade brasileira capitalista em uma sociedade brasileira socialista.

Essa transformação teria um amplo apoio da base da população e de um intenso trabalho de agitação política, mas consistiria fundamentalmente na possibilidade se ocupar o sistema político e, a partir de dentro, reformá-lo progressivamente até se chegar ao acúmulo tão significativo de forças políticas que seria possível alterá-lo de maneira radical. Em primeiro lugar, há um problema, porque pode-se advogar que ainda não há o acúmulo suficiente para se alterar o sistema econômico e político, isto é, pode-se postergar indefinidamente o “momento correto” para tal transição.

Em segundo lugar, trata-se de uma tática voltada para legitimar o sistema político que se procura abolir. É possível utilizar o sistema político burguês como meio para agitação e para disputa de determinadas causas, como já apontava Lênin. Contudo, querer transformar a realidade a partir de um sistema político que visa perpetuar as condições econômicas e sociais do capitalismo dependente é pura ingenuidade, má-fé ou incompetência teórica para formular uma práxis política correta.

O que se pode ver é que se trata de um reformismo, que procura acumular forças progressivamente para transformar a realidade. (Essa perspectiva fica clara ao se ler vários documentos do PT e obras de pensadores do partido, como André Singer e seu livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador).

Ora, o fracasso dessa perspectiva já mostrou seus resultados históricos como, por exemplo, o Chile de Salvador Allende, que, a despeito do avanço de consciência e das formas de organização e mobilização da classe trabalhadora, falhou e acabou com um golpe e uma longa ditadura. Como Ruy Mauro Marini apontou em seu livro O reformismo e a contrarrevolução: estudos sobre o Chile, o reformismo é incapaz de resolver o problema de um país capitalista e muito mais de um país capitalista dependente e subdesenvolvido. Esse reformismo é a própria causa do posterior fracasso dessa tática política. Dessa forma, mesmo em condições imaginadas e hipotéticas, isto é, que o PT desejaria alcançar o socialismo, sua tática e estratégia constituem um erro que só pode levar a uma derrota tanto eleitoral, quanto – e essa mais importante – política.

Entretanto, para compreendermos a realidade, é necessário agora inserir as determinações fundamentais que a mudam para que consigamos chegar mais próximo daquilo que de fato ocorre. Somente assim a análise passa de uma abstração simples (como feito nos parágrafos anteriores) para uma abstração complexa, ou seja, que incorpora as determinações concretas da realidade. Do abstrato ao concreto, como Karl Marx nos ensina.

E, na realidade, o Partido dos Trabalhadores deixou, há muito tempo, de reivindicar qualquer ideia estratégica e tática para se atingir o socialismo. O que esse partido tem feito exatamente pelos últimos 20 anos (o mesmo período de seu sucesso eleitoral) é abdicar de qualquer transformação radical, permanecendo como um administrador do capitalismo dependente brasileiro e seu subdesenvolvimento. A economia política do PT manteve a mesma essência daquele formulada a partir do Plano Real em 1994. Petistas e tucanos não são polos opostos nesse sentido e tampouco a atual presidência de Lula, com Fernando Haddad à cabeça do Ministério da Economia, rompe com esse paradigma. O que o Partido dos Trabalhadores buscou em todo esse tempo foi se mostrar como um gestor competente do sistema econômico capitalista brasileiro, o que o legitimaria, simultaneamente, a estar governando o país.

As poucas medidas, como programa Bolsa Família, cotas e semelhantes, apesar de momentaneamente contribuírem em alguma medida, não tocam no fundamental. O fundamental, aliás, é o que o PT não enfrenta. Portanto, do que adianta expandir o Bolsa Família se a estrutura de produção de riqueza do capitalismo dependente brasileiro sequer é tocada? O que adianta falar de novas matrizes energéticas se a Petrobrás está orientada para repartir seus dividendos em vez de baixar os preços dos combustíveis para a população e expulsar toda interferência estrangeira aqui?

O que adianta criar um programa como o “Luz para todos” sem reverter as privatizações criminosas das estatais brasileiras, como a Eletrobrás, por exemplo? O que adianta criar cotas, quando o sistema universitário deveria acabar com essa prova nefasta que é o vestibular (algo feito na Argentina, aliás)? Como tornar o país independente se Ciência e Tecnologia não são uma prioridade? Como, enfim, gerir algo que perpetua aquilo que se alega combater?

O PT, e principalmente Lula, são os líderes dessa esquerda liberal e, nessa condição, ditam aquilo que deve ser o caminho. Para eles, a história encontrou seu fim, pois o que nos cabe agora seria administrar esse sistema que explora e degrada os trabalhadores diuturnamente. Lula renuncia a qualquer tipo de mobilização que não seja eleitoral. Não há uma convocatória para a população se mobilizar, não há qualquer tipo de programa para elevação da consciência de classe trabalhadora. Nessa perspectiva de administrador não é necessário fazer nada disso, mas apenas procurar gastar menos do que se recebe. O que importa é o teto de gastos.

A única consciência que se procura incentivar é a eleitoral, essencialmente contra a direita e a extrema direita representadas por Jair Bolsonaro. Em 2022, Lula advogou que sua campanha era a única forma de acabar com o neoliberalismo de Paulo Guedes e a ameaça de fascismo. Em 2026, essa propaganda, muito mais desgastada e com muito menos efetividade, voltará. Foi falso em 2022 e será novamente em 2026. Não havia e não há no Brasil qualquer coisa parecida com o fascismo. E mesmo que houvesse, Lula e o PT não são a solução.

Não se combate o fascismo eleitoralmente, como querem o próprio Lula e o PT. A eleição de Lula não serviu para barrar o liberalismo exacerbado de Paulo Guedes, mas, ao contrário, deu um contorno novo apenas na retórica, pois em vez de se chamar de “teto de gastos”, chamou-se de “arcabouço fiscal”. Uma diferença apenas na nomenclatura, pois na prática são iguais.

Entretanto, a esquerda liberal constitui não só um problema, mas uma efetiva limitação que paralisa toda a esquerda, pois ela procura se apresentar como a única esquerda existente. E, como num passe de mágica, não existe possibilidade de ruptura não só com essa esquerda, mas também com o sistema político. O horizonte da esquerda liberal, o de administração da ordem burguesa, é o horizonte final da política e de tudo aquilo que é possível fazer. É, simultaneamente, uma resignação passiva e mudança de campo político.

Mas, para a decepção de Lula, do PT e do restante dessa esquerda liberal, a História brasileira não acabou e tampouco acabaram a luta política e a transformação radical da realidade que se fazem presentes e necessários. Esse é o caminho da Revolução Brasileira.

·        A Revolução Brasileira

Há 7 atrás, pouco se falava de revolução. Essa palavra, aliás, havia sido deixada em um passado longínquo, há muito esquecido. Foi com a criação dessa organização política “Revolução Brasileira”, inicialmente dentro do PSOL e agora independente, que a palavra “revolução” tem voltado, devagar, mas consistentemente ao vocabulário político da esquerda, até mesmo em setores da esquerda liberal. A Revolução Brasileira teve suas mais altas formulações teórico-políticas nas décadas de 1950 e 1960, mas foi abruptamente interrompida com o golpe de 1964. Longe de amargar uma derrota teórica, a discussão em torno da Revolução Brasileira sofreu uma derrota política com uma longa ditadura de 21 anos e até mesmo a redemocratização não retomou esse debate.

Muitas décadas depois, a organização Revolução Brasileira tem realizado um esforço militante para tematizar a ideia da revolução brasileira – algo por si só fundamental para a criação de um novo horizonte político e social – mas a própria possibilidade e necessidade dessa revolução. Apesar da tentativa da esquerda liberal de hegemonizar esse campo político e se apresentar como a única esquerda existente, a Revolução Brasileira mostra que uma crítica radical e socialista ao capitalismo dependente brasileiro é necessária e possível.

Como um movimento de vanguarda, a Revolução Brasileira atua como organização que procura elevar a consciência dos trabalhadores ali onde a sua luta já existe e também onde ela está nascendo e crescendo progressivamente. Nesse sentido, a teoria se mostra extremamente vital, pois, afinal, como é possível agir politicamente sem compreender teoricamente não só as bases econômicas, mas também a disputa política da luta de classes?

Assim, a Revolução Brasileira apoia-se em uma tradição crítica do pensamento brasileiro (e que depois se espalhou para a América Latina) que é a teoria marxista da dependência (TMD). Tendo como expoente três brasileiros – Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e principalmente Ruy Mauro Marini – a teoria marxista da dependência foi capaz de captar a especificidade do capitalismo brasileiro, contrapondo-se à ideia do desenvolvimentismo, isto é, de que poderia haver saída para as mazelas do país através de uma intensificação e aperfeiçoamento do capitalismo aqui estruturado.

Ao contrário dessa ideologia desenvolvimentista, a teoria marxista da dependência mostrou que o capitalismo que existe no Brasil não tem resquícios de outro modo de produção, mas é o próprio capitalismo desenvolvido a partir de condições específicas. Dada a condição de periferia, o país entra na divisão internacional do trabalho produzindo e vendendo mercadorias de menor valor que países do centro e com uma produção que atende necessidades externas – alimentos e matérias-primas, por exemplo – e não internas.

Dessa desigualdade no intercâmbio surge uma transferência de valor da periferia para o centro, fazendo com que os países da periferia precisem compensar, de alguma forma, essa transferência de valor. Daí, então, que o capitalismo brasileiro produz a superexploração da força de trabalho. Superexploração significa superutilizar a mercadoria força de trabalho para se extrair um mais-valor excedente ainda maior, de forma a compensar aquela transferência de valor.

A superexploração, categoria fundamental do capitalismo brasileiro, pode ser feita de três formas que atuam tanto separadamente, quando simultaneamente: aumento da jornada de trabalho, aumento da intensidade do trabalho e consumo de parte dos salários dos trabalhadores (isto é, o salário que é pago é menor do que aquele necessário para sobreviver). A superexploração do trabalhador é uma condição indispensável ao funcionamento do capitalismo brasileiro e jamais pode dele ser separada. Dessa forma, o capitalismo brasileiro é um capitalismo dependente do centro capitalista precisamente porque está a ele condicionado, sendo que sua expansão ou retração são sempre reflexo da expansão e retração daquele centro.

A conclusão que se tem desse processo econômico é que os trabalhadores brasileiros vivem um verdadeiro inferno na Terra, pois a superexploração não só produz uma brutal desigualdade, mas transforma a vida da quase totalidade da população em um verdadeiro esforço de sobrevivência cotidiana. A luta de classes é aqui uma guerra constante de classes. Nenhuma medida desenvolvimentista pode acabar com isso, mas apenas atenuar algumas características e isso ainda de forma conjuntural, quando a economia mundial está em uma fase de expansão.

A compreensão teórica dessa situação econômica pela teoria marxista da dependência permite à Revolução Brasileira estabelecer sua estratégia e tática de forma coerente, pois a análise não está pautada apenas em uma eleição, mas em algo muito mais profundo e estrutural. A análise teórica abre as portas para uma práxis política coerente, que estabelece os problemas e as possibilidades de enfrentá-los e que não titubeia para saídas fáceis. É necessário fazer uma luta dentro da ordem contra a ordem. A Revolução Brasileira é, em suma, o oposto da esquerda liberal.

Essa esquerda liberal já encontrou seu limite histórico e agora não pode mais oferecer alternativas para a crise econômica e política do país. A utopia consiste justamente em acreditar que programas sociais podem redimir e salvar a classe trabalhadora. Nem sempre a marcha teórica bem definida será popular nos primeiros momentos e muitas vezes pode-se amargar uma certa solidão. Mas, assim como a dependência é uma situação e por isso tem um fim, a convicção teórica e política dará seus frutos para a superação da condição de superexploração e de dependência. À esquerda liberal, só podemos contrapor as palavras de Lênin em O que fazer?:

“Pequeno grupo compacto, seguimos por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados de inimigos por todos os lados e temos de marchar quase sempre debaixo do seu fogo. Unimo-nos em virtude de uma decisão livremente tomada, precisamente para lutar contra os inimigos e não cair no pântano vizinho, cujos habitantes, desde o início, nos censuram por nos termos separado num grupo à parte e por termos escolhido o caminho da luta e não o da conciliação. E eis que alguns de nós começam a gritar: «Vamos para o pântano!» E quando procuramos envergonhá-los replicam: “Que gente tão atrasada sois! Como é que não tendes vergonha de nos negar a liberdade de vos convidar a seguir um caminho melhor!” Oh!, sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, mas também de ir para onde melhor vos parecer, até para o pântano; até pensamos que o vosso verdadeiro lugar é precisamente o pântano e estamos dispostos a ajudar-vos, na medida das nossas forças, a mudar-vos para lá. Mas nesse caso largai-nos a mão, não vos agarreis a nós e não mancheis a grande palavra liberdade, porque nós também somos «livres» para ir para onde melhor nos parecer, livres para combater não só o pântano como aqueles que se desviam para o pântano!”

 

Fonte: Por Flávio Magalhães Piotto Santos, em A Terra é Redonda

 

Lixo eletrônico, a nova e perigosa fonte de riqueza para organizações criminosas internacionais

É possível ver, a quilômetros de distância, nuvens de fumaça espessas saindo do lixão de Agbogbloshie.

O ar no vasto depósito de resíduos a céu aberto, a oeste da capital de Gana, Acra, é altamente tóxico. Quanto mais perto você chega, mais difícil fica respirar — e sua visão começa a ficar embaçada.

Ao redor dessa fumaça, há dezenas de homens esperando os tratores descarregarem pilhas de cabos para atear fogo nelas. Outros sobem em uma montanha de lixo tóxico e derrubam aparelhos de televisão, computadores e peças de máquinas de lavar, e os incineram.

Eles estão extraindo metais valiosos, como cobre e ouro, do lixo elétrico e eletrônico — conhecido como e-waste (em inglês) —, grande parte do qual chegou a Gana vindo de países ricos.

"Não estou bem", diz o jovem trabalhador Abdulla Yakubu, cujos olhos ficam vermelhos e lacrimejantes enquanto queima cabos e plástico.

"O ar, como vocês podem ver, está muito poluído, e tenho que trabalhar aqui todos os dias, então isso definitivamente afeta a nossa saúde."

Abiba Alhassan, mãe de quatro filhos, trabalha perto do local de incineração separando garrafas plásticas usadas — e tampouco é poupada da fumaça tóxica.

"Às vezes, é muito difícil até respirar, meu peito fica pesado e me sinto muito mal", diz ela.

O lixo eletrônico é o fluxo de resíduos que mais cresce no mundo, com 62 milhões de toneladas geradas em 2022, um aumento de 82% em relação a 2010, de acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU).

É a "eletronização" das nossas sociedades que está principalmente por trás do aumento do lixo eletrônico — desde smartphones, computadores e alarmes inteligentes até automóveis com dispositivos eletrônicos instalados, cuja demanda está em constante crescimento.

As remessas anuais de smartphones, por exemplo, mais do que dobraram desde 2010, atingindo 1,2 bilhão em 2023, de acordo com um relatório da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento deste ano.

<><> Item apreendido com mais frequência

A ONU diz que apenas cerca de 15% do lixo eletrônico mundial é reciclado — por isso, empresas inescrupulosas estão tentando descarregá-lo em outros lugares, muitas vezes por meio de intermediários que, em seguida, traficam os resíduos para fora do país.

Esses resíduos são difíceis de reciclar devido à sua composição complexa, incluindo substâncias químicas tóxicas, metais, plásticos e elementos que não podem ser facilmente separados e reciclados.

Mesmo os países desenvolvidos não possuem uma infraestrutura adequada de gerenciamento de lixo eletrônico.

Os investigadores da ONU afirmam que estão observando um aumento significativo no tráfico de lixo eletrônico de países desenvolvidos e economias emergentes em rápida ascensão. O lixo eletrônico é agora o item apreendido com mais frequência, sendo responsável por um em cada seis de todos os tipos de apreensão de resíduos a nível mundial, segundo a Organização Mundial de Alfândega.

Autoridades do porto de Nápoles, na Itália, mostraram ao Serviço Mundial da BBC como os traficantes declaravam incorretamente e escondiam o lixo eletrônico, que, segundo eles, representava cerca de 30% de suas apreensões.

Eles mostraram o escaneamento de um contêiner com destino à África, que transportava um carro. Mas quando os funcionários do porto abriram o contêiner, havia peças quebradas de veículos e lixo eletrônico empilhado dentro dele, com óleo vazando de alguns deles.

"Você não empacota seus bens pessoais desta forma, grande parte disso é destinada ao despejo", diz Luigi Garruto, investigador do Escritório Europeu de Combate à Fraude (Olaf), que colabora com autoridades portuárias em toda a Europa.

<><> Táticas de tráfico sofisticadas

No Reino Unido, as autoridades dizem que também estão observando um aumento no tráfico de lixo eletrônico.

No porto de Felixstowe, Ben Ryder, porta-voz da Agência Ambiental do Reino Unido, afirmou que os resíduos eram muitas vezes declarados erroneamente como reutilizáveis — mas, na realidade, eram "decompostos para a obtenção de metais preciosos e, na sequência, queimados ilegalmente após chegarem ao destino" em países como Gana.

Segundo ele, os traficantes também tentam esconder o lixo eletrônico triturando-o e misturando-o com outras formas de plástico que podem ser exportadas com a documentação correta.

Um relatório anterior da Organização Mundial de Alfândega mostrou que houve um aumento de quase 700% no tráfico de veículos motorizados fora de uso — uma enorme fonte de lixo eletrônico.

Mas os especialistas dizem que tais apreensões e casos registrados são apenas a ponta do iceberg.

Embora não haja um estudo global abrangente que rastreie todo o lixo eletrônico traficado para fora do mundo desenvolvido, o relatório de lixo eletrônico da ONU mostra que os países do Sudeste Asiático ainda são um destino importante.

Mas, como alguns desses países agora estão reprimindo o tráfico de resíduos, os investigadores e ativistas da ONU dizem que mais lixo eletrônico está chegando aos países africanos.

Na Malásia, as autoridades apreenderam 106 contêineres de lixo eletrônico perigoso de maio a junho de 2024, de acordo com Masood Karimipour, representante regional do Escritório da ONU de Combate às Drogas e ao Crime no Sudeste Asiático e no Pacífico.

Mas os traficantes muitas vezes enganam as autoridades com novas táticas de contrabando, e os governos não conseguem alcançá-los suficientemente rápido, dizem investigadores da ONU.

"Quando os navios que transportam resíduos perigosos, como lixo eletrônico, não conseguem descarregá-los facilmente em seu destino habitual, eles desligam seu farol quando estão no meio do mar para não serem detectados", conta Karimapour.

"E a remessa ilegal é despejada no mar como parte de um modelo de negócio de atividade criminosa organizada."

"Há um número enorme de grupos e países lucrando com esse empreendimento criminoso a nível global."

<><> Substâncias químicas muito preocupantes

Quando o lixo eletrônico é queimado ou descartado, o plástico e os metais que ele contém podem ser muito perigosos para a saúde humana e ter efeitos negativos no meio ambiente, afirmou um relatório recente da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A OMS adverte que em muitos países receptores também há reciclagem informal de lixo eletrônico, o que significa que pessoas não treinadas, incluindo mulheres e crianças, estão fazendo o trabalho sem equipamentos de proteção e sem a infraestrutura adequada, e estão expostas a substâncias tóxicas como o chumbo.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a OMS estimam que milhões de mulheres e crianças que trabalham no setor informal de reciclagem podem ser afetadas.

As organizações também alertam que a exposição durante o desenvolvimento fetal e a infância pode causar distúrbios relacionados ao neurodesenvolvimento e ao neurocomportamento.

A partir de janeiro de 2025, o tratado global sobre resíduos, a Convenção da Basileia, vai exigir que os exportadores declarem todo o lixo eletrônico — e obtenham permissão dos países destinatários. Os investigadores esperam que isso acabe com algumas das brechas que os traficantes têm usado para transportar esse tipo de resíduo pelo mundo.

Mas há alguns países, incluindo os EUA — um grande exportador de lixo eletrônico — que não ratificaram a Convenção da Basileia —, uma das razões pelas quais os ativistas dizem que o tráfico de lixo eletrônico continua.

"Enquanto começamos a reprimir, os EUA estão enviando cada vez mais caminhões pela fronteira com o México", afirma Jim Puckett, diretor executivo da Basel Action Network, organização que faz campanha para acabar com o comércio de produtos tóxicos, incluindo o lixo eletrônico.

Enquanto isso, no lixão de Agbogbloshie, em Gana, a situação está piorando a cada dia.

Abiba diz que gasta quase metade do dinheiro que ganha com a coleta de resíduos em medicamentos para lidar com as condições resultantes do trabalho no lixão.

"Mas ainda estou aqui porque este é o meu meio de sobrevivência e da minha família."

A Autoridade Tributária e o Ministério do Meio Ambiente de Gana não responderam a vários pedidos de comentários.

 

Fonte: Por Navin Singh Khadka, correspondente de meio ambiente do Serviço Mundial da BBC

 

PER-SUS: financiamento é um dos desafios de nova fase de expansão anunciada pelo Ministério da Saúde

A radioterapia desempenha um papel fundamental no tratamento do câncer, ao lado da quimioterapia e da cirurgia, com mais de 60% dos pacientes oncológicos contando com essa modalidade em seu tratamento. Apesar de ser um direito assegurado a todos os cidadãos brasileiros pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a realidade é desafiadora: a escassez de equipamentos, os longos períodos de espera para o início do tratamento e o subfinanciamento dos serviços ainda representam barreiras significativas ao acesso a essa terapia essencial.

Segundo a Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), a cada ano, aproximadamente 73 mil pacientes que precisam de radioterapia não recebem o tratamento pelo SUS. Esse cenário se torna ainda mais preocupante, considerando que cerca de 75% da população brasileira depende integralmente da assistência do sistema público de saúde.

Para avançar no cuidado à saúde nessa área, o Ministério da Saúde lançou, em 2012, o Plano de Expansão da Radioterapia no Sistema Único de Saúde (PER-SUS). A meta inicial era instalar 100 máquinas novas em todo o país até o final de 2022. Até julho deste ano, 92 soluções estavam previstas, com 61 concluídas e 28 em execução. Agora, o Ministério da Saúde dá início a uma nova fase do PER-SUS, com o objetivo de ampliar e qualificar o acesso ao tratamento do câncer no Brasil. Por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), está prevista a substituição de 56 equipamentos obsoletos de radioterapia em diversos hospitais habilitados ao longo do território nacional. O programa tem previsão de encerramento para a metade de 2025.

Especialistas ouvidos pela reportagem alertam que, apesar da iniciativa refletir a preocupação do Ministério em expandir o acesso ao tratamento ao câncer no país, ainda persistem desafios que requerem maior atenção, entre eles, o subfinanciamento. “Reconhecemos que é um programa positivo”, destaca Gustavo Nader Marta, presidente da SBRT. “[No entanto], o principal ponto é que não se tem uma ação estruturada para se garantir a sustentabilidade econômica da radioterapia no país” que, de acordo com Marta, não se resolve somente com a distribuição de equipamentos. Essa perspectiva, segundo ele, foi comunicada ao Ministério da Saúde em diversas oportunidades.

A falta de um olhar para a sustentabilidade econômica pode ser observada no próprio valor projetado do ticket médio de reembolso por paciente, congelado há mais de dez anos. O reembolso, que deveria ser suficiente para cobrir os custos operacionais mínimos, não cobre nem 50% do custo total do tratamento de radioterapia, segundo mostra o estudo Projeto RT2030, da SBRT.

Em 2012, o valor reembolsado era de US$ 1.567 por paciente, mas caiu para US$ 831 em 2022, representando uma redução de 43% ao longo de dez anos. Essa queda ocorreu mesmo diante de uma inflação acumulada de 80% e uma desvalorização cambial de 150%. Para atender à recomendação internacional de tratar 600 pacientes anualmente por acelerador linear, o valor ideal de reembolso deveria ser de R$ 12,5 mil, enquanto o valor atual é de apenas R$5,5 mil.

•                        Plano de Expansão da Radioterapia (PER-SUS)

“O programa PER-SUS é importantíssimo para o país, na promoção de importantes avanços, porém precisa ser mais ofensivo e garantir maior volume de recursos em menor tempo para reduzir o tempo de início de tratamento e produzir melhores desfechos”, afirma Marlene Oliveira, fundadora e presidente do Instituto Lado a Lado pela Vida. Para ela, o PER-SUS deve garantir não apenas a aquisição de novos equipamentos, mas também possibilitar a atualização dos já existentes, aumentando a capacidade produtiva e aprimorando o tratamento do câncer com maior precisão e eficácia.

Dados do Câncer Brasil feito pelo Instituto Lado a Lado Pela Vida com informações do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e do Ministério da Saúde mostram que, do total investido em tratamentos oncológicos no Brasil em 2023, apenas 14% foi alocado para a radioterapia. O percentual cresceu em relação a 2017, quando a radioterapia representava 10% do investimento total, mas é ainda pequeno em comparação aos 2,7 bilhões de reais despendidos, em 2023, em quimioterapia no país.

Em relação ao avanço da nova fase do PER-SUS, o Ministério da Saúde informou, no final de novembro, que 64 soluções de radioterapia haviam sido implementadas, e 26 obras estavam em execução, ampliando o atendimento em 25 estados e 76 municípios brasileiros. Concluído, o projeto permitirá pelo menos 18 mil novos tratamentos oncológicos, segundo a nota do MS. O detalhamento das obras já concluídas, assim como das que estão em andamento, pode ser acompanhado por meio de documento, atualizado pelo MS.

A substituição de equipamentos de radioterapia é importante porque essas máquinas têm vida útil de cerca de 15 anos. Ainda assim, Gustavo Marta, da SBRT, comenta que “é mais uma ação focada exclusivamente na substituição de parque, o que não resolve o grande gargalo dessa sustentabilidade econômica”. Para ele, outro ponto que merece atenção é a utilização de equipamentos doados pelo governo por serviços que atendem pacientes fora da rede pública. Seria preciso, neste caso, redirecionar esses recursos para que sejam utilizados exclusivamente pelo SUS, diante dos gargalos significativos no atendimento.

Segundo ele, a falta de um suporte econômico contínuo para a radioterapia pode comprometer a qualidade dos serviços prestados, já que muitos estabelecimentos são forçados a operar em turnos excessivos para se manterem.

Além dos equipamentos, outra novidade do PER-SUS é a estruturação de uma parceria público-privada na construção do novo campus do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e de dois novos Centros Especializados do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Em nota, o Inca disse a parceria entre os dois entes “vai ampliar a capacidade de investimento em novos aparelhos de saúde, bem como qualificar a prestação do serviço, especialmente na construção e na operação de áreas não assistenciais na saúde”.

Ainda segundo o instituto, a concessão administrativa é adotada no Campus Inca, focada na prestação de serviços compartilhados que operam de forma interdependente para atender o usuário final. Conforme a concessão, a operação dos serviços não assistenciais e a manutenção do complexo, chamados de Bata Cinza, são delegados ao setor privado. Já os serviços relacionados à assistência aos pacientes, conhecidos como Bata Branca, permanecem sob responsabilidade do Inca.

Para Helena Esteves, gerente de Advocacy do Instituto Oncoguia, a nova fase do PER-SUS representa um esforço para melhorar a situação da radioterapia no Brasil, com a expectativa de que as ações relacionadas ao diagnóstico precoce comecem a apresentar resultados mais claros no próximo ano.

•                        Gargalos ainda permanecem

Diversos fatores afetam o tratamento de radioterapia no país, especialmente a regulação na saúde, como comenta Esteves. “Os pacientes enfrentam longas esperas e, muitas vezes, acabam se desencontrando no sistema de saúde”. Ela destaca a desconexão entre os sistemas de regulação municipal e estadual como um fator complicador, que dificulta o fluxo e a agilidade no atendimento. Além disso, os chamados ‘vazios assistenciais’ obrigam muitos pacientes a viajarem longas distâncias para encontrar centros com tratamento adequado, o que pode significar deslocamentos diários ou até mudanças temporárias para cidades com mais recursos.

Na prática, há uma disparidade significativa no acesso ao tratamento entre as diversas regiões do Brasil. As regiões Norte e Nordeste enfrentam um grande déficit de equipamentos de radioterapia. Na Região Norte, por exemplo, o Estado do Amapá recebeu seus primeiros equipamentos de radioterapia para tratamento de pacientes com câncer somente neste ano, com um investimento de 16 milhões de reais provenientes do Plano de Expansão da Radioterapia do Ministério da Saúde (PER-SUS). Em Roraima, o Centro de Radioterapia ainda não foi inaugurado, e as autoridades políticas já expressaram preocupação de que o PER-SUS, contratado antes de 2015, pode resultar na entrega de um equipamento com uma década de defasagem tecnológica. Por sua vez, em Rondônia, até recentemente, havia equipamentos operando com cobalto que, em vez de tratar, causavam mais danos aos pacientes, resultando em lesões e até óbitos. A desativação da máquina de radioterapia ocorreu em 2019.

“Prioritariamente é necessário ação mais ofensiva por parte da União e dos Estados em suas responsabilidades de oferta de integralidade de assistência aos pacientes”, defende Marlene Oliveira, do Instituto Lado a Lado pela Vida. Para ela, já se conhece quais são os vazios assistenciais no território brasileiro. “A necessidade de upgrade nos equipamentos é sabida, porém, requer investimento, e se houver interesse por parte dos entes em realizar os investimentos necessários, esses serão supridos”, reflete.

Como desafios ainda constam a ineficiência na regulação dos serviços de saúde e a escassez de profissionais na área. Os entraves na regulação, segundo Esteves, do Oncoguia, podem levar pacientes a serem encaminhados para hospitais distantes, aumentando as dificuldades de acesso ao tratamento. Neste sentido, seria necessário adotar soluções que aprimorem a regulação e distribuição dos serviços de saúde.

Também há também escassez de profissionais, segundo ressalta Oliveira: “Os serviços de alta complexidade possuem déficits de profissionais especializados, físicos, técnicos e radioterapeutas, muitos deles escassos no país”, diz. Segundo os dados da Demografia Médica do Brasil de 2023, o país conta com apenas 1.014 médicos especialistas em radioterapia.

•                        Avanços no tratamento

No Brasil, as unidades de saúde classificadas como Unidades de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON) ou Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) devem fornecer assistência geral e especializada, assegurando uma abordagem integral ao paciente com câncer. A presidente do Instituto Lado a Lado Pela Vida destaca que ambas as unidades dependem do Ministério da Saúde para a oferta de equipamentos de radioterapia, devido ao alto custo envolvido. “A participação dos Estados e Municípios é mínima em investimento para a ampliação dos serviços de radioterapia ou, ainda, a melhoria dos equipamentos com a realização de upgrades, o que evidencia um grande problema para que os serviços possam responder à demanda existente”, afirma Oliveira.

Dados do Câncer Brasil indicam que, entre as 346 unidades habilitadas em alta complexidade em oncologia, apenas 183 dispõem de equipamentos de radioterapia. Conforme a presidente do instituto, isso evidencia não apenas a carência de serviços de alta complexidade no país, mas também a falta de integralidade na assistência em radioterapia nas unidades existentes. Na Região Nordeste, são apenas 30 serviços de radioterapia disponíveis, um número extremamente reduzido diante da demanda dos pacientes oncológicos.

Segundo números divulgados pelo MS, em 2023, o SUS registrou um aumento de 9% nos tratamentos oncológicos para câncer de mama em relação ao ano anterior. Só entre janeiro e julho de 2024, foram contabilizados 21.811 tratamentos. Esse crescimento, segundo Gustavo Marta, da SBRT, pode ser atribuído à melhoria dos protocolos de tratamento da radioterapia, não apenas a novos equipamentos. Conforme explicou, antes os pacientes precisavam de 25 aplicações de radioterapia, o que resultava em cinco semanas de tratamento. “A adoção de esquemas mais curtos (como 15 ou cinco aplicações) está melhorando a eficiência e a capacidade de atendimento”, diz.

O cenário de atendimento de pacientes de câncer pode se tornar ainda mais desafiador nos próximos anos. Há previsão de um aumento de 50% na incidência de câncer no país, o que resultará em um incremento de 35% nas indicações de radioterapia. O presidente da SBRT alerta: “Essa situação é alarmante, pois muitos pacientes já estão na fila aguardando tratamento”.

Para avançar neste contexto, Helena Esteves destaca ainda a importância da regulamentação da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do SUS e a necessidade de um sistema de navegação para os pacientes, que ainda é uma novidade no Brasil. “O sucesso desse sistema depende de um trabalho conjunto entre a sociedade civil e o governo”, diz.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

Luís Felipe Miguel: O governo nas cordas

Parece consenso que o anúncio do pacote de medidas econômicas pelo ministro Fernando Haddad foi uma trapalhada. Os petistas tentam fazer alarde com o aumento da isenção do imposto de renda para R$ 5 mil, como se fosse uma medida revolucionária, mas a verdade é que não cola.

Foi uma pequena tentativa de dourar uma pílula muito amarga – e, além disso, o comando do Congresso já avisou que não vai fazer a medida passar assim tão fácil.

É um pequeno aceno a uma camada que Fernando Haddad chama de “classe média” – remediados que se viram no fio da navalha. A classe média propriamente dita foi excluída, já que a tabela vai reonerar quem recebe acima de R$ 7,5 mil. E os mais pobres perdem com a restrição ao abono salarial (maldade quase gratuita, com impacto fiscal insignificante), redução do salário mínimo e novas regras para o BPC.

O pequeno imposto a ser cobrado dos ricos, se (e esse é um grande “se”) a medida for aprovada no Congresso, é muito pouco para instaurar um regime de taxação progressiva.

O governo Lula rendeu-se à pressão do capital e caminha na direção do austericídio.

Ao reduzir o reajuste real do salário mínimo, reforça a superexploração da força de trabalho e a vulnerabilidade dos aposentados. Caso a regra anunciada por Fernando Haddad estivesse em vigor desde o primeiro mandato de Lula, o salário mínimo hoje estaria em volta de R$ 1 mil – uma perda de quase 30%.

E combater fraudes sempre é bem-vindo, mas as novas regras do BPC penalizam muitas famílias, aquelas que têm mais de uma pessoa em situação de dependência (idoso ou com deficiência).

Parece que a ideia de crescimento com estímulo ao mercado interno, um pilar da política econômica lulista, foi abandonada. Parece que o compromisso de combater a pobreza extrema foi desinflado.

Fernando Haddad e, por conseguinte, Lula abraçaram o fiscalismo e o discurso da redução do Estado, praticamente sem resistência.

A reação do “mercado” mostrou que ainda é pouco. Mas Fernando Haddad já se encontrou com os banqueiros e sinalizou que está disposto a ceder ainda mais.

A alta do dólar foi aquele combo gostoso: pressionar por mais cortes, desgastar um governo que não é considerado plenamente confiável e ainda ganhar na especulação.

Roberto Campos Neto, um bolsonarista desavergonhado, não fez nada para conter o câmbio. Triste foi ver Gabriel Galípolo, seu sucessor indicado por Lula, aplaudindo a inação do Banco Central.

Como o governo vai manter o discurso contra os juros altos com Gabriel Galípolo comandando o Banco Central? Vai ficar claro que é só teatrinho.

Não é só o ajuste. Lula sancionou sem vetos a lei que “disciplina” a farra das emendas parlamentares, aceitando, sem luta, o sequestro do orçamento público pela elite política predatória – logo, a imobilização de seu próprio governo.

Também não é capaz de dar um passo para emparedar o golpismo militar, mesmo em seu momento de maior fragilidade. Preferiu aproveitar a oportunidade para incluir no pacote a redução de alguns privilégios imorais do oficialato, julgando que agora a resistência fardada seria menor. Um recado claro: ajudem no “ajuste” e a gente deixa quieto o golpismo de vocês.

Vão dizer que “com esse Congresso não dá”, que “a correlação de forças é negativa”. Verdade. Mas cadê a lendária capacidade de articulação política de Lula? Cadê sua habilidade para encontrar brechas e construir consensos?

Vemos um governo nas cordas. O pior: sem qualquer ânimo para reagir e esboçar uma defesa de sua base social. Sua liderança está cindida entre um presidente envelhecido, que não está sabendo se posicionar diante de circunstâncias bem diversas daquelas de seus primeiros mandatos, e um ministro da Fazenda que se rendeu completamente à ortodoxia fiscalista.

Com o PT entre rendido e acuado e o PSOL boulista transformado em ala externa do PT, falta uma oposição à esquerda que pelo menos aumente o ônus da adoção de medidas antipovo.

Teria sido melhor eleger Simone Tebet. Pelo menos a gente tinha esperança de que a CUT buscasse alguma mobilização, em vez de se limitar a lançar uma nota anódina.

 

¨      Voo das borboletas…Por Antonio Machado

No fim de 2022, acompanhado do vice-presidente Geraldo Alckmin, de Fernando Haddad e Aloizio Mercadante, o presidente Lula ouviu de um interlocutor, numa reunião fechada e amistosa, uma sugestão: “Se o senhor não mudar a atual política econômica, o governo vai fracassar em seis a 12 meses”.

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Não fracassou, mas, quase 24 meses depois, ainda estar discutindo assuntos fiscais, tomando susto do mercado financeiro, e antecipar para a segunda metade do mandato a continuidade da dominância dos resultados orçamentários e do Tesouro Nacional, subestimando tudo que diga respeito à economia da oferta vis-à-vis o estímulo moto contínuo do consumo, é muito questionável falarmos de sucesso.

Alguma dúvida o presidente teve ou não teria convidado André Lara Resende, que participou da equipe de transição e entregou algumas ideias, para ocupar o Ministério do Planejamento. Ele não aceitou por razões pessoais e Lula nomeou Simone Tebet, que queria a pasta do Bolsa Família, na verdade, mas foi vetada pelo PT.

Tebet virou extensão de Haddad, ministro da Fazenda, rompendo uma liturgia aplicada por Lula de 2003 a 2010. Para se informar sobre as possibilidades e poder arbitrar a decisão, ele tinha na pasta do Planejamento um ministro com visão menos ortodoxa que o titular da Fazenda. Na prática, tem sido ele mesmo o que Mantega foi para Palloci. E Tebet, no auge da preparação e repercussão danosa do pacote fiscal de Haddad, saiu a lançar um livro de memórias, “O voo das Borboletas”. Pouco foco, muita distração e visão embaçada.

O ponto central é que o Brasil é a última economia de consumo de massa ainda não realizada. A caminho de sê-la contam-se a China, que é “fabrica do mundo” mas reprime o consumo doméstico para ter excedentes exportáveis pesadamente subsidiados, Índia e Indonésia.

O jeito de pôr o Brasil nessa lista, havendo mais de 100 milhões de pessoas recebendo algum cheque do governo, entre beneficiários do INSS, Bolsa Família e servidores, representando R$ 1,6 trilhão, ou 15% do PIB, é criando empregos, seguido de um prazo longo, tipo dez anos, para desligar quem ganhar autonomia desses programas.

<><> O cabresto é manso

O que temos desde o desastre de um governo e meio de Dilma? Muita tentativa de encabrestar o gasto público. Como fazê-lo se a marca dos governos petistas é a pegada social? Atentem: foi isso também o que fizeram para reeleger Bolsonaro, ele que até então só tinha impropérios para o Bolsa Família. Foi assim que o Auxílio Brasil, codinome do BF, foi elevado de quase R$ 200 para R$ 600.

Não restou a Lula que anunciar que não só manteria, como o faria somar-se a mais um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos e R$ 50 para cada pessoa entre 7 e 17 anos, gestante ou lactante. O caso é que não parou por aí: anunciou o reajuste do salário mínimo pelo INPC de 12 meses mais a variação do PIB de dois anos antes, além da isenção do IR até R$ 5 mil de renda mensal.

Faltou cuidado nessas promessas. Desde Bolsonaro, os cadastros de programas sociais foram tratados como porta arrombada, algo ainda não resolvido pelas operações “pente fino” do atual governo. Certo e garantido é que a assessoria de campanha desconhecia ou não deu importância ao fato de que desde meados de 2019 entraram em todos os programas de transferência de renda 19 milhões de pessoas.

Com mais gente e mais renda transferida, não tinha como o teto de gasto, criado no governo Temer, não ruir. Mas também o “arcabouço” de Haddad criado para substituí-lo, prevendo um mínimo de variação da despesa entre 0,6% e 2,5% acima da receita do ano anterior, não para em pé. Ainda mais com a volta da vinculação do dinheiro para educação e saúde ao crescimento da receita líquida federal.

A pá de cal veio com o agigantamento das emendas parlamentares – quase do tamanho da verba dos investimentos inserida no orçamento.

<><> Inversão de prioridades

Em suma: assiste-se uma inversão de prioridades desde o governo Temer. Em vez de teto de gasto, congelado ao realizado em 2016 e corrigido pela inflação anual, deveria ter havido empenho para a reforma da previdência, que estava madura graças à diligência do então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Foi aprovada em 2019.

Não é o gasto que precisa de trancas, é o escrutínio contínuo do que os governantes e parlamentares fazem com ele. É definir tanto a educação de qualidade, com viés tecnológico, quanto a geração de empregos como a variável principal da política econômica e social, operando os programas de renda como rede de última instância.

É entender que mais que dinheiro subsidiado a economia carece de projetos muito bem elaborados, como tem sido o caso de concessões, em especial de rodovias, para os quais não falta dinheiro privado nacional e estrangeiro. O chamado “project finance” era tímido ao tempo do PAC-1. Hoje, é o que faz deslanchar a infraestrutura no mundo – como de data centers, de energia limpa e de baterias.

Isso requer uma macroeconomia estável de juro e câmbio. No caso brasileiro, a compreensão de que estamos à mercê de um problema de disfuncionalidade da governança do Estado mais que de “gastança” – expressão preferida dos fiscalistas – teria ajudado o governo a deslanchar o investimento e depender menos dos auxílios de renda para tentar se manter competitivo no mercado do voto. Até agora a compreensão é pequena, embora ela exista na proximidade de Lula.

<><> Gatinho de especulador

O país está bem, desde que a política e a governança pública não atrapalhem e não confundam o bom e velho planejamento com o que a nova direita dos EUA critica como “fundamentalismo de mercado”. O protagonismo não é do governo X nem do partido Y. É coletivo.

Isso, depois do fiasco do pacote de desaceleração de gasto que o governo diz representar uma economia de R$ 70 bilhões em dois anos e economistas como Mansueto Almeida, do BTG, estimam em não mais que R$ 46 bilhões, vai exigir menos pancadas no setor privado, um vício populista, e mais pragmatismo.

Por exemplo: parar de achar o Banco Central como algoz e não instância derradeira do que a macroeconomia produziu. Mas também considerar que um BC sem poder operar na curva de juros e no câmbio é gatinho de especulador.

Enfim, como diz o economista Fernando Montero, o pacote não dá os 70 bi anunciados, que não dão as metas e as metas não estabilizam a dívida. “Se a fé no arcabouço desse câmbio e juros comportados, a dinâmica fiscal teria meio caminho andado porque, à diferença do tempo da Dilma, a economia privada está um brinco. E déficit de confiança é mais sério porque temos juros de destruição em massa.”

Se pararem de improvisar e forem profissionais, pode dar certo.

 

¨      Por quê ninguém está falando da cobertura cambial? Por Mauro Patrão

Em 2006, o Brasil sofria com uma enxurrada de dólares e a desvalorização excessiva do dólar (valorização excessiva do real).

O governo editou uma medida provisória convertida na Lei 11371, flexibilizando a chamada cobertura cambial, que é a obrigação dos exportadores brasileiros em internalizar os dólares das suas vendas externas.

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Essa lei permitiu que o Conselho Monetário Nacional-CMN fixasse um percentual de 0 a 100% desses dólares que poderia permanecer no exterior sem serem internalizados.

Em 2006, esse percentual foi fixado em 30%.

Em 2008, ainda antes da crise internacional, o CMN aumentou a flexibilidade para 100%.

Essa lei poderia então ser usada neste momento, em que vivemos uma valorização excessiva do dólar (desvalorização excessiva do real), de modo a restaurar parcialmente a cobertura cambial, diminuindo sua flexibilidade para menos de 100%.

O problema é que em 2021 a dupla Campos Neto e Paulo Guedes propôs e o o congresso aprovou a Lei 14286, que simplesmente retirou o poder do CMN de fixar o grau de flexibilidade da cobertura cambial, de modo que a cobertura cambial foi completamente extinta.

Essa lei foi regulamentada pelo Banco Central no finalzinho de 2022, no apagar das luzes do governo Bolsonaro e sua não transição de poder.

Não seria o caso do governo propor ao congresso restituir ao CMN o poder de fixar o grau de cobertura cambial?

Já que recentemente exportamos cerca de 100 bilhões de dólares a mais do que importamos, restaurar parcialmente a cobertura cambial não seria uma boa maneira de normalizar o mercado de cambio e diminuir a especulação que estamos presenciando nos últimos tempos?

Aliar o grau de cobertura cambial às reservas internacionais e aos swaps cambiais seria uma maneira efetiva e sem custos de aumentar as ferramentas do governo para gerir a economia.

 

¨      Mais ricos terão de pagar apenas 2,7% de IR a mais sobre a renda

Dados do Imposto de Renda Pessoa Física apontam que, entre as 384 mil pessoas mais ricas do Brasil, os dois terços que terão de pagar mais imposto terão de desembolsar, em média, apenas 2,7% sobre a renda. 

O economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Sergio Wulff Gobetti, afirma que a diferença “é pouca para tanto barulho”. 

“O imposto a mais que milionários terão de pagar não é só muito pouco, como é menos do que pagariam se fosse aprovado o texto original do PL 2337, de 2021, que previa tributação de 15% dos dividendos junto com redução do IRPJ. A desproporção das reações entre 2 casos é gritante”, publicou Gobetti na rede social X.

Para o economista, os argumentos de que o aumento tributário tem “motivações comunistas revolucionárias” ou ainda que deve gerar fuga em massa dos milionários para outros países apenas por conta de uma taxação adicional de 2,7% para as rendas mais altas é motivo para rir. 

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Ao longo da semana, o economista explicou ainda aos que veem o comunismo por todo lado, que o imposto mínimo de 10% para quem ganha acima de R$ 600 mil é muito menos do que se paga nos Estados Unidos. 

Outra constatação é a de que a medida equilibra as contas do país. “Temos 26 milhões de declarantes com renda tributável de até 5K pagando em média R$480 p/ ano. Além disso, as pessoas que ganham entre 5 e 7K também terão desconto. Custo total: 25 bi”, afirma Gobetti.

“No outro extremo temos 300 mil pessoas com uma renda média de R$ 3 milhões que hoje pagam em média 7,3% de IR. Essa turma terá de pagar 2,7% a mais para chegar ao mínimo de 10%, o que proporcionará  (vejam só) uma receita de aproximadamente 24 bi. Bingo”, conclui.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Jornal GGN