sábado, 1 de abril de 2023

NOVO ENSINO MÉDIO: Em 2016, os estudantes já sabiam o desastre que seria

A Medida Provisória 746 editada por Temer em 2016, que impunha autoritariamente a reforma do ensino médio, passou por cima de qualquer possibilidade de participação da sociedade civil organizada além das fundações privadas lideradas por pretensos especialistas em política educacional. À época, a reforma foi alvo do maior protesto estudantil que o país já viu em sua história, com mais de mil escolas sendo ocupadas contra a medida. Em 2016, os estudantes foram recebidos com repressão e reintegrações de posse pelo Estado, além de alvo de uma feroz campanha difamatória e intimidadora por parte de movimentos organizados de direita, que agiram em articulação com os governos Temer e Beto Richa, então governador do Paraná.

Rapidamente, seu movimento foi ou esquecido ou subsumido à “luta contra o golpe” pela esquerda institucional. Suas críticas ao conteúdo da reforma do ensino e propostas para a educação brasileira nunca ganharam o devido destaque – seja na imprensa, seja na memória do novo governo, este liderado pelo mesmo partido que fora golpeado e que agora vira as costas para o que tinham a dizer as mais de mil escolas ocupadas.

Em 2023, diante dos efeitos nocivos inegáveis que o novo ensino médio (NEM) trouxe às escolas públicas brasileiras, os mesmos atores que ajudaram na sua formulação – financiados por bancos e empresários e organizados em grupos de advocacy, como o Todos Pela Educação – não apenas ganham posição privilegiada na interlocução com o MEC e na grande imprensa, como propagam a mentira de que aqueles que clamam por sua revogação não têm “agenda positiva”, ou seja, não tem propostas. Diante do desastre pedagógico que causaram, se propõem eles mesmos a “ajustar” a reforma e investem contra sua revogação. Alegam que os problemas do NEM advêm de sua má implementação pelas secretarias estaduais. Cinicamente, os mesmos atores que adoram clamar pelo “protagonismo juvenil” na educação se portam como se os estudantes brasileiros nunca tivessem se pronunciado a respeito. Priscila Cruz, diretora do Todos pela Educação, diz em suas redes sociais que a opinião do estudante deve ser levada em conta, mas ignora que estes já se pronunciaram em um movimento social. “Protagonismo”, mas apenas se tutelado por empresários e banqueiros ou expresso através de respostas a surveys de opinião organizados por tecnocratas. Quando estudantes se expressam com autonomia política, aí se tornam indesejáveis.

Ora, é importante lembrar que os estudantes que ocuparam as escolas em 2016 sabiam muito bem quais seriam os efeitos da reforma. Ao contrário do que quer o empresariado reformador da educação, os jovens contra o NEM nunca foram “massa de manobra”, mas seres pensantes e que sustentaram uma mobilização motivada pelo diagnóstico dos efeitos deletérios que a reforma traria – um diagnóstico muito anterior ao do Todos pela Educação, por exemplo, que apenas agora, frente ao que está evidente, admite que o novo ensino médio não é aquilo que se propagandeou em 2016. Não é exagero dizer aqui que adolescentes de 15 a 18 anos foram muito mais “especialistas” em política educacional do que os gestores do Todos pela Educação.

Entre novembro e dezembro de 2016, quando já ocorriam reintegrações de posse de escolas ocupadas no Paraná contra a reforma, realizei, em conjunto com o pesquisador Márcio Moretto Ribeiro, 27 entrevistas coletivas com dezenas de jovens que participaram da mobilização. Em nossas entrevistas, era comum escutar dos estudantes que eles – ao contrário do que diziam seus opositores e o governo – haviam lido e estudado o texto da MP 746 com afinco, a fim de dizer que sabiam muito bem porque ocupavam escolas e que não se tratava meramente de um movimento político-partidário. Neste texto, procuro recapitular algumas das respostas dadas à pergunta “por que vocês são contra a reforma do ensino médio?”.

Em Londrina, diante dessa pergunta simples, um estudante logo nos disse: “Ah, porque não é a nossa realidade, né? Quando passa o comercial do MEC, eu começo a dar risada, porque é uma escola que parece particular – não tem nada a ver com uma escola pública”. O absurdo da proposta perante os problemas estruturais das escolas públicas, frutos de falta de investimento e contratação de professores, foi sempre ponto menor para o lobby empresarial na educação, mas destacado pelos estudantes: “[a reforma] faz a questão das escolas integrais, né? […] então como é que você vai ter uma escola integral, já que a escola mesmo hoje ela já não suporta male mal um período – em questão de falta de merenda, de professores. Tem dias da semana que não tem nem professores para dar aula […].”

Além disso, o aumento da carga horária e a pressão crescente para que as escolas se tornem integrais , apontam um descaso com o estudante que precisa trabalhar – algo ainda mais chocante no mundo pós-pandemia –, pois os períodos noturnos são fechados nessas escolas, expulsando estes alunos: “Ah, acho que uma questão que tipo me deixou bastante ‘assim’, é que assim: quando… quando o estudante tem que trabalhar, ele vai trabalhar. E não é porque ele quer, é porque ele precisa trabalhar. Ninguém quer trabalhar! Mas, tipo, quando precisa, ele vai. Se for assim, tipo, se precisar cumprir tal horário, que seria no caso integral, ele vai trabalhar como? Ele não… não vai! Então, tipo, ele vai trabalhar e não vai estudar”. Outra estudante interpelou o colega: “Colégios que já são superlotados, como… pra onde vão essas pessoas? Tipo, onde vai estudar? Porque os colégios já são superlotados. Os colégios já têm… tipo, no meu colégio já teve turma com cinquenta pessoas em uma sala!”. Em outra escola de Londrina, o mesmo questionamento: “Primeiro, que sete horas diárias de estudo, 1.400 horas anuais, é incoerente pra realidade dos alunos pobres. […] Em que horário eles vão trabalhar? […] Outro ponto é: onde que essas crianças vão tá acampadas, onde?! A gente não tem espaço. Tem uma sala na escola que tá com risco de desabar! A gente não tem aula lá dentro porque tá com risco de desabar, sabe? É absurdo!”

Em outra cidade, como era de ostume, encontramos demandas semelhantes, mas colocadas sob a ótica da realidade local: “Porque tem certas medidas que não é cabível, né? Igual, uma dessas propostas era aumentar a carga horária. Eu… No meu caso, eu não preciso trabalhar. Mas na minha sala tem menina que vem do sítio, que estuda de manhã, que depois vai pra uma instituição pra ir almoçar e ir trabalhar. Ela precisa desse dinheiro pra ela poder ajudar o pai dela, […] pra poder sustentar a casa dela”.

Outro ponto frequente de crítica ao NEM sempre foi a perspectiva de estreitamento curricular – que se mostrou verdadeira – ao contrario do era vendido pelo governo como “oportunidade de escolha” e “aprofundamento” via os itinerários formativos. Os estudantes sabiam que iriam perder não apenas conteúdo, mas oportunidades de conhecimento e questionamento. É por isso que vemos tantos estudantes descrevendo o NEM como um projeto de alienação proposital. Não se trata aqui de discurso importado de ideologias políticas prévias, mas da perspectiva da perda da oportunidade de ter acesso a um determinado conhecimento, tal qual ocorre atualmente com professores sendo alocados tanto para dar aulas sobre temas sem sentido e mal definidos quanto conteúdos que poderiam ter seu valor no currículo, mas estão fora de sua área de formação: “O meu professor de Sociologia, se eu perguntar uma questão tipo sobre Filosofia mais avançada, ele vai saber me responder? É óbvio que não. E ele vai me dar essa aula? Não vai!”. Outro colega responde indignado: “Filosofia é matéria que você mais ‘autopensa’, questiona o que tá acontecendo por seu pensamento […]. Removendo isso, as pessoas… tudo que as pessoas ouvirem, eles vão acreditar. […] É isso o que o governo quer: alienar a gente pra se tornar máquina e ouvir tudo o que o governo diz. Daí, com essa remoção, faz com que a gente não questione, né, gente que mata!”.

A preocupação dos estudantes com um desaparecimento de um currículo que é taxado pelos defensores do NEM como “antiquado” vem do fato de que aqueles valorizam uma educação crítica como parte, inclusive, da base necessária para se desenvolver profissionalmente: “Banir Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia das matérias obrigatórias, até das matérias optativas – as flexíveis. É um absurdo! É isso que nos gera… sabe? […] Como a gente vai desenvolver novas tecnologias e novas consciências sociais? A gente vai gerar… A gente vai gerar robôs!” Em outra entrevista, com estudantes que participavam da mobilização por grupos políticos diferentes, o novo currículo foi descrito como um cabresto: “Então vai deixar o aluno mais alienado. […] vai colocar que ele é igual aquele… esqueci o nome! De cavalo… [gesto sinalizando um cabresto]. […] Vai enxergar só apenas aquilo que o governo quer que eles enxerguem”.

Ora, é isso que os itinerários formativos (decididos na sua oferta das formas mais absurdas, pois a lei dá autonomia e desobriga as secretarias, deixando-as livre para realizar acordos locais com o empresariado, imposições ou sorteios) fazem: vendidos como aprofundamento do conhecimento, colocam um cabresto na formação do estudante de escola pública. De maneira oportunista, aqueles que são contra a revogação do NEM dizem que estudantes estão sendo objeto de “uso político” por parte da esquerda partidária. Diante do uso frequente de termos como “alienação” ou a acusação de que o governo estaria propositalmente cerceando seus pensamentos, com a intenção de “formar mão de obra barata” (como também escutamos repetidamente em diferentes escolas e cidades), um analista desatento poderia até acreditar. Porém, o que vemos em 2023 é a substituição de grande parte da grade curricular por conteúdos de auto-ajuda ou coachs de empreendedorismo. Quem poderá dizer que eles não tinham razão? “É um problema de implementação da política”, dirão aqueles que são contra a revogação do NEM, mas a direção na qual a política apontava era esta: a redução do ensino médio ao falso aprendizado preconizado pela aquisição de competências descontextualizadas e improvisadas, “profissionalizantes” mas nem tanto, tais quais fazer um brigadeiro ou criar um rótulo publicitário no Canvas. E os estudantes souberam disso mesmo antes do NEM sair do papel. Por que então seus defesores, que se intitulam “especialistas” em educação, não foram capazes de enxergar tão longe quanto os jovens?

Em uma cidade pequena, ouvimos de uma estudante que não possuía conexão com a política partidária e decidira participar das ocupações – onde os alunos inclusive contrariaram o grêmio estudantil nesta decisão – via seu futuro através dos olhos do governo Temer e dos formuladores do NEM: “[…] eles representam as grandes empresas, o pessoal que tá lá no topo, que… tem dinheiro, tem condições e que gira mais ou menos a economia. Eles… pra que dar um… auxiliar um aluno pra ter um curso superior, se ele pode sempre ter o técnico e sempre ser o empregado, nunca o patrão? Eu acho que as coisas são meio erradas. A gente devia, assim, ter uma organização na escola que faça o aluno querer crescer, e não diminuir e mantendo essa vidinha […]”.[ Em recente editorial publicado na revista Educação e Sociedade, pesquisadores da área de educação de diferentes universidades públicas nomearam o NEM como “institucionalização do apartheid social na educação”, pois o modelo não é adequado nem mesmo como alternativa profissionalizante, confirmando a impressão da estudante de que seus proponentes não querem que eles saiam “dessa vidinha”.

Outro tema constante na avaliação dos estudantes é a valorização dos professores. “Especialistas” em educação do setor privado incluem a “má formação” destes no rol de causas dos problemas da educação no país. Na contramão dessa avaliação, estudantes valorizam o conhecimento dos docentes e colocam melhores condições de trabalho e aumento salarial como uma das medidas fundamentais a serem tomadas. A ideia de que professores com formação universitária seriam substituídos por profissionais com “notório saber” foi alvo de indignação dos jovens desde o início: “Outra coisa que a gente tava conversando na ocupação que é uma coisa que eu me revoltei, que é sobre o conhecimento notório. O professor ele estuda, o quê? De quatro a seis anos pra fazer o bacharel. Aí […] simplesmente vem um ser de Engenharia, que sabe o básico da Matemática e vai querer dar aula de Matemática. […] E eles colocam na balança que o professor de Engenharia tem mais conhecimento do que um professor que fez bacharel e estudou muito mais do que eles”.

Sobre os motivos pelos quais o governo optou por tomar esse caminho, não havia dúvidas: o corte de gastos. A ausência gritante dos problemas da remuneração dos professores e do investimento na estrutura das escolas dos debates promovidos por quem ainda defende o NEM confirma a percepção dos estudantes. Ninguém parece estar disposto a falar em aumentar verbas para a educação como prioridade, assim como o debate acerca dos docentes da rede pública não ocorre fora do contexto de sua culpabilização pelo baixo desempenho dos estudantes no país. Na contra-mão disso, em nenhum momento os estudantes parecem atribuir à formação dos professores seus problemas, muito pelo contrário, vimos nos movimentos de ocupações uma solidariedade aos professores grevistas no Paraná. O aumento de salário da categoria também foi pauta abraçada por ocupações de escolas em outros estados.

Nas críticas dos jovens ao NEM em 2016, assim como nas críticas daqueles que ocuparam escolas em 2015 em São Paulo contra outra reforma educacional (a reorganização escolar de Alckmin), é possível perceber que os estudantes têm sim propostas para a educação brasileira. Porém, se tratam de temas os quais os reformadores empresariais da educação omitem das suas fórmulas mágicas: aumento do investimento público em infra-estrutura nas escolas, valorização dos docentes e aumento salarial e gestão democrática das escolas com autonomia dos alunos para se organizar polticamente em grêmios não tutelados pelas diretorias. Além disso, é possível observar também que os conteúdos do ensino médio chamados “antiquados” – a chamada “formação generalista” – são, em realidade, desejados pela juventude, que quer ter a oportunidade de se formar criticamente antes de ter que escolher seu caminho profissional.

Disciplinas como Artes, Filosofia e Sociologia são altamente valorizadas por aqueles que ocuparam escolas e a defesa da manutenção de sua carga horária é uma constante em seus depoimentos. O estudante brasileiro deseja ter direito a tudo: uma escola com infraestrutura adequada, com menos alunos por sala, professores bem pagos e um currículo humanista, que discuta questões como gênero, raça e classe em sala de aula – ao contrário do que propõem a BNCC e o NEM. O discurso cínico de que quem é a favor da revogação do NEM não tem “propostas” procura esconder justamente o fato de que os desejos colocados pela juventude que ocupou escolas em 2015-2016 são a antítese do NEM e da BNCC defendidos pelo empresariado da educação. O ensino técnico é importante, mas os estudantes querem mais, eles querem a oportunidade de estudar e discutir a sociedade onde vivem e exercitar sua autonomia. A escola, para quem a ocupou, nunca foi meramente um degrau em direção à vida profissional, mas um espaço de formação e acesso a discussões relevantes à sociedade.

Diante da catástrofe que está dada, o MEC atual propõe uma “consulta pública”. Enquanto isso, mais de trezentas entidades da sociedade civil clamam pela revogação do NEM. Será necessário lembrar ao atual ministro da educação, Camilo Santana, que insiste na manutenção de uma reforma educacional que foi imposta autoritariamente, o que pensavam jovens de uma pequena cidade do Paraná em 2016 sobre diálogos que são, em realidade, uma farsa:

“– Então acho que o essencial era ter um diálogo, e depois, quando o pau já tava torando, daí quiseram ter um diálogo, achando que agora…

– […] Aí é ‘Vamos lançar edital e vamos fazer uma discussão’.

– É.

– Ah, é ridículo isso!”

 

Fonte: Por Antonia Malta Campos, no Le Monde

 

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