NOVO ENSINO MÉDIO:
Em 2016, os estudantes já sabiam o desastre que seria
A
Medida Provisória 746 editada por Temer em 2016, que impunha autoritariamente a
reforma do ensino médio, passou por cima de qualquer possibilidade de
participação da sociedade civil organizada além das fundações privadas
lideradas por pretensos especialistas em política educacional. À época, a
reforma foi alvo do maior protesto estudantil que o país já viu em sua
história, com mais de mil escolas sendo ocupadas contra a medida. Em 2016, os
estudantes foram recebidos com repressão e reintegrações de posse pelo Estado,
além de alvo de uma feroz campanha difamatória e intimidadora por parte de
movimentos organizados de direita, que agiram em articulação com os governos
Temer e Beto Richa, então governador do Paraná.
Rapidamente,
seu movimento foi ou esquecido ou subsumido à “luta contra o golpe” pela
esquerda institucional. Suas críticas ao conteúdo da reforma do ensino e
propostas para a educação brasileira nunca ganharam o devido destaque – seja na
imprensa, seja na memória do novo governo, este liderado pelo mesmo partido que
fora golpeado e que agora vira as costas para o que tinham a dizer as mais de
mil escolas ocupadas.
Em
2023, diante dos efeitos nocivos inegáveis que o novo ensino médio (NEM) trouxe
às escolas públicas brasileiras, os mesmos atores que ajudaram na sua
formulação – financiados por bancos e empresários e organizados em grupos de
advocacy, como o Todos Pela Educação – não apenas ganham posição privilegiada
na interlocução com o MEC e na grande imprensa, como propagam a mentira de que
aqueles que clamam por sua revogação não têm “agenda positiva”, ou seja, não
tem propostas. Diante do desastre pedagógico que causaram, se propõem eles
mesmos a “ajustar” a reforma e investem contra sua revogação. Alegam que os
problemas do NEM advêm de sua má implementação pelas secretarias estaduais.
Cinicamente, os mesmos atores que adoram clamar pelo “protagonismo juvenil” na
educação se portam como se os estudantes brasileiros nunca tivessem se
pronunciado a respeito. Priscila Cruz, diretora do Todos pela Educação, diz em
suas redes sociais que a opinião do estudante deve ser levada em conta, mas
ignora que estes já se pronunciaram em um movimento social. “Protagonismo”, mas
apenas se tutelado por empresários e banqueiros ou expresso através de
respostas a surveys de opinião organizados por tecnocratas. Quando estudantes
se expressam com autonomia política, aí se tornam indesejáveis.
Ora,
é importante lembrar que os estudantes que ocuparam as escolas em 2016 sabiam
muito bem quais seriam os efeitos da reforma. Ao contrário do que quer o
empresariado reformador da educação, os jovens contra o NEM nunca foram “massa
de manobra”, mas seres pensantes e que sustentaram uma mobilização motivada
pelo diagnóstico dos efeitos deletérios que a reforma traria – um diagnóstico
muito anterior ao do Todos pela Educação, por exemplo, que apenas agora, frente
ao que está evidente, admite que o novo ensino médio não é aquilo que se
propagandeou em 2016. Não é exagero dizer aqui que adolescentes de 15 a 18 anos
foram muito mais “especialistas” em política educacional do que os gestores do
Todos pela Educação.
Entre
novembro e dezembro de 2016, quando já ocorriam reintegrações de posse de
escolas ocupadas no Paraná contra a reforma, realizei, em conjunto com o
pesquisador Márcio Moretto Ribeiro, 27 entrevistas coletivas com dezenas de
jovens que participaram da mobilização. Em nossas entrevistas, era comum
escutar dos estudantes que eles – ao contrário do que diziam seus opositores e
o governo – haviam lido e estudado o texto da MP 746 com afinco, a fim de dizer
que sabiam muito bem porque ocupavam escolas e que não se tratava meramente de
um movimento político-partidário. Neste texto, procuro recapitular algumas das
respostas dadas à pergunta “por que vocês são contra a reforma do ensino
médio?”.
Em
Londrina, diante dessa pergunta simples, um estudante logo nos disse: “Ah,
porque não é a nossa realidade, né? Quando passa o comercial do MEC, eu começo
a dar risada, porque é uma escola que parece particular – não tem nada a ver
com uma escola pública”. O absurdo da proposta perante os problemas estruturais
das escolas públicas, frutos de falta de investimento e contratação de
professores, foi sempre ponto menor para o lobby empresarial na educação, mas
destacado pelos estudantes: “[a reforma] faz a questão das escolas integrais,
né? […] então como é que você vai ter uma escola integral, já que a escola
mesmo hoje ela já não suporta male mal um período – em questão de falta de
merenda, de professores. Tem dias da semana que não tem nem professores para dar
aula […].”
Além
disso, o aumento da carga horária e a pressão crescente para que as escolas se
tornem integrais , apontam um descaso com o estudante que precisa trabalhar –
algo ainda mais chocante no mundo pós-pandemia –, pois os períodos noturnos são
fechados nessas escolas, expulsando estes alunos: “Ah, acho que uma questão que
tipo me deixou bastante ‘assim’, é que assim: quando… quando o estudante tem
que trabalhar, ele vai trabalhar. E não é porque ele quer, é porque ele precisa
trabalhar. Ninguém quer trabalhar! Mas, tipo, quando precisa, ele vai. Se for
assim, tipo, se precisar cumprir tal horário, que seria no caso integral, ele
vai trabalhar como? Ele não… não vai! Então, tipo, ele vai trabalhar e não vai
estudar”. Outra estudante interpelou o colega: “Colégios que já são
superlotados, como… pra onde vão essas pessoas? Tipo, onde vai estudar? Porque
os colégios já são superlotados. Os colégios já têm… tipo, no meu colégio já
teve turma com cinquenta pessoas em uma sala!”. Em outra escola de Londrina, o
mesmo questionamento: “Primeiro, que sete horas diárias de estudo, 1.400 horas
anuais, é incoerente pra realidade dos alunos pobres. […] Em que horário eles
vão trabalhar? […] Outro ponto é: onde que essas crianças vão tá acampadas,
onde?! A gente não tem espaço. Tem uma sala na escola que tá com risco de
desabar! A gente não tem aula lá dentro porque tá com risco de desabar, sabe? É
absurdo!”
Em
outra cidade, como era de ostume, encontramos demandas semelhantes, mas
colocadas sob a ótica da realidade local: “Porque tem certas medidas que não é
cabível, né? Igual, uma dessas propostas era aumentar a carga horária. Eu… No
meu caso, eu não preciso trabalhar. Mas na minha sala tem menina que vem do
sítio, que estuda de manhã, que depois vai pra uma instituição pra ir almoçar e
ir trabalhar. Ela precisa desse dinheiro pra ela poder ajudar o pai dela, […]
pra poder sustentar a casa dela”.
Outro
ponto frequente de crítica ao NEM sempre foi a perspectiva de estreitamento
curricular – que se mostrou verdadeira – ao contrario do era vendido pelo
governo como “oportunidade de escolha” e “aprofundamento” via os itinerários
formativos. Os estudantes sabiam que iriam perder não apenas conteúdo, mas
oportunidades de conhecimento e questionamento. É por isso que vemos tantos
estudantes descrevendo o NEM como um projeto de alienação proposital. Não se
trata aqui de discurso importado de ideologias políticas prévias, mas da
perspectiva da perda da oportunidade de ter acesso a um determinado
conhecimento, tal qual ocorre atualmente com professores sendo alocados tanto
para dar aulas sobre temas sem sentido e mal definidos quanto conteúdos que
poderiam ter seu valor no currículo, mas estão fora de sua área de formação: “O
meu professor de Sociologia, se eu perguntar uma questão tipo sobre Filosofia
mais avançada, ele vai saber me responder? É óbvio que não. E ele vai me dar
essa aula? Não vai!”. Outro colega responde indignado: “Filosofia é matéria que
você mais ‘autopensa’, questiona o que tá acontecendo por seu pensamento […].
Removendo isso, as pessoas… tudo que as pessoas ouvirem, eles vão acreditar.
[…] É isso o que o governo quer: alienar a gente pra se tornar máquina e ouvir
tudo o que o governo diz. Daí, com essa remoção, faz com que a gente não
questione, né, gente que mata!”.
A
preocupação dos estudantes com um desaparecimento de um currículo que é taxado
pelos defensores do NEM como “antiquado” vem do fato de que aqueles valorizam
uma educação crítica como parte, inclusive, da base necessária para se
desenvolver profissionalmente: “Banir Artes, Educação Física, Filosofia e
Sociologia das matérias obrigatórias, até das matérias optativas – as
flexíveis. É um absurdo! É isso que nos gera… sabe? […] Como a gente vai
desenvolver novas tecnologias e novas consciências sociais? A gente vai gerar…
A gente vai gerar robôs!” Em outra entrevista, com estudantes que participavam
da mobilização por grupos políticos diferentes, o novo currículo foi descrito
como um cabresto: “Então vai deixar o aluno mais alienado. […] vai colocar que
ele é igual aquele… esqueci o nome! De cavalo… [gesto sinalizando um cabresto].
[…] Vai enxergar só apenas aquilo que o governo quer que eles enxerguem”.
Ora,
é isso que os itinerários formativos (decididos na sua oferta das formas mais
absurdas, pois a lei dá autonomia e desobriga as secretarias, deixando-as livre
para realizar acordos locais com o empresariado, imposições ou sorteios) fazem:
vendidos como aprofundamento do conhecimento, colocam um cabresto na formação
do estudante de escola pública. De maneira oportunista, aqueles que são contra
a revogação do NEM dizem que estudantes estão sendo objeto de “uso político”
por parte da esquerda partidária. Diante do uso frequente de termos como
“alienação” ou a acusação de que o governo estaria propositalmente cerceando
seus pensamentos, com a intenção de “formar mão de obra barata” (como também
escutamos repetidamente em diferentes escolas e cidades), um analista desatento
poderia até acreditar. Porém, o que vemos em 2023 é a substituição de grande
parte da grade curricular por conteúdos de auto-ajuda ou coachs de
empreendedorismo. Quem poderá dizer que eles não tinham razão? “É um problema
de implementação da política”, dirão aqueles que são contra a revogação do NEM,
mas a direção na qual a política apontava era esta: a redução do ensino médio
ao falso aprendizado preconizado pela aquisição de competências
descontextualizadas e improvisadas, “profissionalizantes” mas nem tanto, tais
quais fazer um brigadeiro ou criar um rótulo publicitário no Canvas. E os
estudantes souberam disso mesmo antes do NEM sair do papel. Por que então seus
defesores, que se intitulam “especialistas” em educação, não foram capazes de
enxergar tão longe quanto os jovens?
Em
uma cidade pequena, ouvimos de uma estudante que não possuía conexão com a
política partidária e decidira participar das ocupações – onde os alunos
inclusive contrariaram o grêmio estudantil nesta decisão – via seu futuro
através dos olhos do governo Temer e dos formuladores do NEM: “[…] eles
representam as grandes empresas, o pessoal que tá lá no topo, que… tem
dinheiro, tem condições e que gira mais ou menos a economia. Eles… pra que dar
um… auxiliar um aluno pra ter um curso superior, se ele pode sempre ter o
técnico e sempre ser o empregado, nunca o patrão? Eu acho que as coisas são
meio erradas. A gente devia, assim, ter uma organização na escola que faça o
aluno querer crescer, e não diminuir e mantendo essa vidinha […]”.[ Em recente
editorial publicado na revista Educação e Sociedade, pesquisadores da área de
educação de diferentes universidades públicas nomearam o NEM como
“institucionalização do apartheid social na educação”, pois o modelo não é
adequado nem mesmo como alternativa profissionalizante, confirmando a impressão
da estudante de que seus proponentes não querem que eles saiam “dessa vidinha”.
Outro
tema constante na avaliação dos estudantes é a valorização dos professores.
“Especialistas” em educação do setor privado incluem a “má formação” destes no
rol de causas dos problemas da educação no país. Na contramão dessa avaliação,
estudantes valorizam o conhecimento dos docentes e colocam melhores condições
de trabalho e aumento salarial como uma das medidas fundamentais a serem
tomadas. A ideia de que professores com formação universitária seriam substituídos
por profissionais com “notório saber” foi alvo de indignação dos jovens desde o
início: “Outra coisa que a gente tava conversando na ocupação que é uma coisa
que eu me revoltei, que é sobre o conhecimento notório. O professor ele estuda,
o quê? De quatro a seis anos pra fazer o bacharel. Aí […] simplesmente vem um
ser de Engenharia, que sabe o básico da Matemática e vai querer dar aula de
Matemática. […] E eles colocam na balança que o professor de Engenharia tem
mais conhecimento do que um professor que fez bacharel e estudou muito mais do
que eles”.
Sobre
os motivos pelos quais o governo optou por tomar esse caminho, não havia
dúvidas: o corte de gastos. A ausência gritante dos problemas da remuneração
dos professores e do investimento na estrutura das escolas dos debates
promovidos por quem ainda defende o NEM confirma a percepção dos estudantes.
Ninguém parece estar disposto a falar em aumentar verbas para a educação como
prioridade, assim como o debate acerca dos docentes da rede pública não ocorre
fora do contexto de sua culpabilização pelo baixo desempenho dos estudantes no
país. Na contra-mão disso, em nenhum momento os estudantes parecem atribuir à
formação dos professores seus problemas, muito pelo contrário, vimos nos
movimentos de ocupações uma solidariedade aos professores grevistas no Paraná.
O aumento de salário da categoria também foi pauta abraçada por ocupações de
escolas em outros estados.
Nas
críticas dos jovens ao NEM em 2016, assim como nas críticas daqueles que
ocuparam escolas em 2015 em São Paulo contra outra reforma educacional (a
reorganização escolar de Alckmin), é possível perceber que os estudantes têm
sim propostas para a educação brasileira. Porém, se tratam de temas os quais os
reformadores empresariais da educação omitem das suas fórmulas mágicas: aumento
do investimento público em infra-estrutura nas escolas, valorização dos
docentes e aumento salarial e gestão democrática das escolas com autonomia dos
alunos para se organizar polticamente em grêmios não tutelados pelas
diretorias. Além disso, é possível observar também que os conteúdos do ensino
médio chamados “antiquados” – a chamada “formação generalista” – são, em
realidade, desejados pela juventude, que quer ter a oportunidade de se formar
criticamente antes de ter que escolher seu caminho profissional.
Disciplinas
como Artes, Filosofia e Sociologia são altamente valorizadas por aqueles que
ocuparam escolas e a defesa da manutenção de sua carga horária é uma constante
em seus depoimentos. O estudante brasileiro deseja ter direito a tudo: uma
escola com infraestrutura adequada, com menos alunos por sala, professores bem
pagos e um currículo humanista, que discuta questões como gênero, raça e classe
em sala de aula – ao contrário do que propõem a BNCC e o NEM. O discurso cínico
de que quem é a favor da revogação do NEM não tem “propostas” procura esconder
justamente o fato de que os desejos colocados pela juventude que ocupou escolas
em 2015-2016 são a antítese do NEM e da BNCC defendidos pelo empresariado da
educação. O ensino técnico é importante, mas os estudantes querem mais, eles
querem a oportunidade de estudar e discutir a sociedade onde vivem e exercitar
sua autonomia. A escola, para quem a ocupou, nunca foi meramente um degrau em
direção à vida profissional, mas um espaço de formação e acesso a discussões
relevantes à sociedade.
Diante
da catástrofe que está dada, o MEC atual propõe uma “consulta pública”.
Enquanto isso, mais de trezentas entidades da sociedade civil clamam pela
revogação do NEM. Será necessário lembrar ao atual ministro da educação, Camilo
Santana, que insiste na manutenção de uma reforma educacional que foi imposta
autoritariamente, o que pensavam jovens de uma pequena cidade do Paraná em 2016
sobre diálogos que são, em realidade, uma farsa:
“–
Então acho que o essencial era ter um diálogo, e depois, quando o pau já tava
torando, daí quiseram ter um diálogo, achando que agora…
–
[…] Aí é ‘Vamos lançar edital e vamos fazer uma discussão’.
–
É.
–
Ah, é ridículo isso!”
Fonte:
Por Antonia Malta Campos, no Le Monde
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