Golpe
de Estado mata: as marcas da ditadura e a luta por justiça
A
Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011 no governo Dilma Rousseff
(PT) para investigar violações dos direitos humanos praticadas pelo Estado
brasileiro durante a ditadura militar, registrou pelo menos 502 casos de
tortura e mais de 40 assassinatos ocorridos no Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), sob o comando
do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Condenado
como torturador pela Justiça brasileira em 2012, Ustra – que morreu em 2015,
aos 85 anos – marcou a vida de inúmeras famílias, entre elas a Teles, de
militantes políticos, que moveu um dos primeiros processos contra o coronel.
Janaína Teles, que, aos 4 anos, foi levada com o irmão para ver a tortura de
seus pais, é a convidada do Pauta Pública desta semana. O episódio discute a
importância da justiça e da responsabilização do Estado pelos crimes da
repressão, além da urgência de preservar a memória como instrumento de defesa
da democracia e garantir que esses erros do passado não se repitam.
Para
Janaína Teles, hoje professora de história e diretora do Centro de Memória
Social da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), “muita gente ainda
carrega na memória os sofrimentos vividos durante a ditadura, mas [essa
memória] é frequentemente reprimida e deixada debaixo do tapete, seja por um
discurso positivista que busca neutralidade na história ou por uma cultura
política de conciliação que evitou o confronto com o passado”.
Leia os
principais pontos da entrevista:
• Como a ditadura atravessou a sua
infância, do seu irmão e a vida de toda a sua família?
Eles me
levaram para ver minha mãe sendo torturada, e essa parte eu apaguei da minha
lembrança, da minha memória, por motivos óbvios. Eu fiquei bastante espantada,
eu não sabia nem o que era comunista. Pensei em perguntar, mas achei que o
clima não era bom pra isso. Estava tudo muito violento. Eu não lembro como a
gente chegou no DOI- Codi, mas fomos levados para lá. Só lembro da segunda vez
que eu fui levada a ver meus pais já nas celas lá de baixo no DOI-Codi. Eles
estavam meio transfigurados, inchados. Eles estavam sentados numa mesa, acho
que havia algum tipo de comida, e eu olhei para eles, eles estavam machucados.
A gente
era uma família muito unida, assim, amorosa, a gente se abraçava, a gente se
beijava, e eles não me abraçaram e não me beijaram. Eu acho que eles não se
mexiam muito. Então, eu que fui até eles e abracei e beijei. Não lembro bem
qual a conversa que nós tivemos, mas eu lembro que eu não estava entendendo
nada, só achando aquilo completamente fora dos meus hábitos e da minha
compreensão.
Durante
o dia, a gente ficava no estacionamento, eu e meu irmão, brincando, e à noite
eles [os militares] levavam a gente para uma casa que era lá perto, uma casa
mais ou menos grande, onde a gente dormia do lado da cozinha, numa cama de
campanha, tipo cama de militar. E eles não apagavam a luz. Aí eu lembro de
pensar: “Como é que eu vou conseguir dormir com a luz acesa?”.
Enfim,
depois de alguns dias, eles levaram a gente para Belo Horizonte, na casa de um
delegado de polícia, que era amigo do Ustra e que, para minha infelicidade, era
casado com a irmã mais velha do meu pai. Eu não conhecia minha família, nem
materna, nem paterna, porque ambos os lados tinham muita gente de direita que
não apoiou meus pais. Então, eu não tinha contato com essa família, que era
grande.
Esse
delegado tratou a gente muito mal ao longo de seis meses, até que a Crimeia,
minha tia, foi solta. Quando a Crimeia foi solta, parece que a Anistia
Internacional ou outros grupos de denúncia também estavam fazendo muita
pressão. Como meu primo estava muito magro porque ele passou muita fome, eles
fizeram um regime de engorda para entregar ele à família da minha mãe em Minas.
Aí eles nos encontraram.
[Minha
tia] ia todo dia à tarde para ver se encontrava a gente, e o delegado proibiu
ela de nos ver. Ela ficou um mês tentando nos ver. Ficava todo dia na frente do
quintal da casa esperando que a gente fosse brincar. Até que um dia a gente foi
e aí ela me chamou. Quando eu a vi, eu fiquei muito emocionada, a gente saiu
correndo, abrimos o portão para ir lá abraçá-la, beijá-la, e ela então começou
a contar que meus pais não tinham me abandonado, que meus pais estavam presos,
e ela explicou tudo. Ela falou que os militares não gostavam da gente porque
nós éramos comunistas, aí eu perguntei o que era ser comunista e ela falou:
“Comunista é aquele que quer dividir tudo igualmente com todos”. E eu falei:
“Mas até a minha escova de dente vou ter que dividir?”. Ela: “Não, as escovas
de dente, cada um fica com a sua”.
• O Brasil já foi condenado por uma série
de razões, não só pelos crimes da ditadura, mas por outros crimes de violação
de direitos humanos. O que acontece na prática? Por que essa resistência do
Brasil em reconhecer o parecer da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
diz que os crimes cometidos pela ditadura não prescrevem?
É
possível constatar a prevalência, durante muitos anos, da ideia de que a
democracia estava consolidada no Brasil. Mas a gente viu, com a tentativa de
golpe do 8 de janeiro, que a democracia brasileira não está nada consolidada.
Como podemos dizer que há democracia no Brasil, se os torturadores da ditadura
militar não são julgados, não são punidos e os mandantes também? A Comissão da
Verdade conseguiu, com todas suas limitações, mostrar que foram muito mais do
que 434 mortos e desaparecidos, conforme os dados oficiais da própria Comissão
da Verdade. Ela mesma mostrou, no volume 2 do relatório, que são mais de 10 mil
mortos e desaparecidos da ditadura.
É um
debate que ainda está muito incipiente, mas a comissão conseguiu mostrar a
omissão da verdade, mostrando que as vítimas da repressão ditatorial foram
muito mais amplas, tanto o perfil das vítimas quanto a quantidade das vítimas.
Se, por um lado, a gente conquistou essa vitória com a Comissão da Verdade, por
outro lado, o negacionismo também tomou uma dimensão muito maior do que tinha
antes.
Então,
eu penso que a gente não deveria desistir de conquistar e de lutar por esse
debate público, por essa discussão com toda a sociedade. Nesse sentido, a
retomada feita pelo [ministro] Flávio Dino, no STF, do debate sobre a
interpretação da Lei da Anistia é importantíssima. Com esta reabertura do
debate, ele pode se ampliar para muitos setores da sociedade e muita gente pode
vir a conhecer aspectos da história da ditadura que não conheciam.
• Como você vê, nessa nova ascensão da
extrema direita global, o fortalecimento do discurso negacionista da história
da ditadura militar? O que pode ser feito para que, apesar disso, prevaleça na
história da sociedade brasileira a memória do que realmente aconteceu, pensando
que não é um problema somente dos familiares, é um problema de toda a
sociedade?
Como
historiadora eu posso dizer que é importante que os historiadores percebam que
ainda há muito, no debate historiográfico, uma falsa dicotomia entre memória e
história. Eu acho que nesse ponto o Paul Ricœur, que é um filósofo francês
recentemente falecido, fala de algo muito importante, que a memória é uma
coisa, a história é outra e que nenhuma das duas deve ser submetidas uma à
outra. Quer dizer, a história não deve submeter a memória. A memória não é
simplesmente fonte da história. A memória é muito mais que isso. A memória é
nossa identidade como pessoas, como sociedade.
A
memória nos constitui e tem um valor enorme, inclusive na luta contra o
positivismo científico dentro da ciência e dentro da história. Quer dizer, ao
invés de tratar a memória apenas como fonte da história, a gente tem que
respeitar a memória em toda a sua riqueza, em toda a sua amplitude. Então, a
gente tem que sair desse debate, que é empobrecedor, de dizer que o historiador
não pode mostrar a sua subjetividade ao construir um conhecimento sobre a
história.
Acho
que a primeira coisa é isso, romper com esse discurso positivista do século 19,
de uma suposta objetividade, de um suposto distanciamento do nosso objeto de
estudo, porque isso não existe. Isso é uma invenção ideológica.A gente não
negar a nossa própria subjetividade já é um primeiro passo. A outra coisa é
que, se nós somos seres complexos cheios de subjetividade, quer dizer que tá na
memória de muita gente o sofrimento que foi viver na ditadura. E sofrimentos de
diversos tipos. De diversas origens, com diversas características. Então, a
gente tem que dar vazão a isso e não reprimir isso. Porque senão a gente vive
nessa melancolia. A gente reprime essa memória, deixa ela lá debaixo do tapete
ou deixa no inconsciente e não deixa ela brotar.
Então, acho que o primeiro passo é dar mais
espaço às historiadoras mulheres, que têm menos vergonha ou menos compromisso
com esse discurso objetificador cientificista, dar mais razão às nossas
memórias e valorizar isso. Os projetos de história oral, os projetos de
documentários, de filmes, de tudo, produção artística, são fundamentais neste
momento. Nós temos que fazer muito mais do que nós fizemos. O segundo é: nós
não vivemos uma democracia consolidada. Nós temos que parar de ter essas
referências eurocentristas.
Já que
a democracia liberal predominou no mundo capitalista, nós vamos dizer que nós
também temos uma democracia consolidada? Não. A gente tem que fazer o debate
sobre qual democracia a gente quer e que democracia é a que a gente tem. Esse
debate está muito fraco no Brasil.
Se no
aniversário de 60 anos do golpe de 64, no ano passado, o presidente da
República, Lula, chega e pede para não falarmos, para não fazermos debate sobre
os 60 anos do golpe e barra a proposta do Flávio Dino de fazer um Museu da
Memória, quer dizer, se nós não podemos fazer isso, o debate está muito abaixo
do nível do solo.
Acho
que parte das esquerdas, dos setores progressistas, não está fazendo essa
crítica, que é necessária. Nos últimos 30 e tantos anos, a gente usou o caminho
da conciliação e deu no que deu. Eles [os militares] foram lá e tentaram o
golpe de novo. Então, já passou da hora da gente admitir que este caminho não
deu certo, que nós temos que trilhar outro e que tem que ser através da
crítica, não pode fingir que está tudo certo. Infelizmente, a gente tem que pôr
o dedo na ferida.
O 8 de
janeiro [atos golpistas em 2023] foi um dos ápices desse momento da gente
perceber que a ferida está aberta. A gente tem que apostar nas iniciativas que
fortalecem os vínculos com esse passado nas novas gerações. A gente não vai
manter essa memória viva apenas com os sobreviventes vivos. A gente precisa
conseguir dialogar com esse passado, apesar de não estarmos mais aqui daqui a
alguns anos. A história não termina em nós.
• Ditadura matou a estilista Zuzu Angel,
diz ex-agente do Dops
Em seu
segundo depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), o ex-delegado do Dops
Cláudio Guerra afirmou ontem que a morte da estilista Zuzu Angel, em 1976, foi
provocada pela ditadura militar. Ela morreu em um suposto acidente de carro, e,
segundo ele, um coronel do Exército teria sido fotografado próximo ao local.
“Ele (Freddie Perdigão) narrava para mim que tinha planejado, obedecendo a
ordens, a simulação do acidente dela e que estava muito preocupado porque havia
sido fotografado. Ele achava que era a perícia que o tinha fotografado sem
querer”, afirmou Cláudio Guerra, em depoimento na tarde dessa quarta-feira.
O
ex-agente da ditadura apresentou à comissão uma foto que seria de Perdigão no
local. Porém, o material estava recortado só para a figura dele e distorcido,
por ter sido ampliado, impedindo a identificação exata do cenário. Uma versão
maior da imagem deve ser entregue posteriormente aos integrantes da CNV.
Hoje
evangélico, Guerra lançou um livro em 2012 revelando suas ações sob ordem do
regime militar. Ele se diz arrependido, e por isso tem colaborado com a
Comissão da Verdade com informações. “Eu não sou dedo-duro, estou buscando
trazer a verdade para uma parte negra da nossa história ser passada a limpo”,
disse o ex-agente, que atuou também no Serviço Nacional de Informações (SNI).
O
coordenador da Comissão da Verdade, Pedro Dallari, afirmou que as informações
repassadas ontem serão acrescentadas a outros dados obtidos pelo órgão que
indicam que o acidente da estilista foi planejado. “Temos outros elementos que
nos permitem ir convergindo para essa conclusão do assassinato da Zuzu Angel.
Você não forma convicção a partir de um único elemento, é um indício, mas há
alguns outros elementos que estamos pesquisando. Vai nessa direção e faz todo o
sentido”, disse Dallari.
Zuzu
Angel era mãe de Stuart Angel, militante do grupo guerrilheiro MR-8 preso em 14
de maio de 1971 e até hoje desaparecido. Com seu desaparecimento, Zuzu Angel
promoveu uma mobilização nacional e internacional em busca do filho,
tornando-se uma figura incômoda ao regime militar. As Forças Armadas negam a
teoria de assassinato.
O
coronel Freddie Perdigão, morto em 1997, é apontado como torturador que atuava
na Casa da Morte de Petrópolis. Segundo Guerra, Perdigão lhe entregava corpos
para serem incinerados em uma usina em Campos dos Goytacazes, Zona Norte do Rio
de Janeiro. No depoimento, Guerra relatou 13 casos de pessoas incineradas por
ele, por ordens do regime militar. O ex-delegado disse ainda que, se ele fosse
cumprir pena por tudo o que fez, nunca sairia da cadeia.
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Queima de arquivo
Guerra
afirmou também que os assassinatos do coronel Paulo Malhães em abril, pouco
depois de assumir torturas à Comissão da Verdade, e do coronel Júlio Molina, em
novembro de 2012, que também atuou na ditadura, foram queimas de arquivo. Ele
disse, porém, não ter informações concretas que apontem isso. “Eu creio, não só
a morte do Paulo Malhães como a do coronel Molina, que morreu no latrocínio no
Rio Grande do Sul, foram execução, queima de arquivo. É o mesmo modus operandi
que nós usávamos no passado: simular um assalto, simular um acidente”, afirmou
Guerra.
No caso
de Malhães, a Polícia Civil concluiu que o caso foi latrocínio – ele foi morto
para roubo de suas armas, que seriam revendidas. Guerra relatou que há um mês
viajaria ao Rio de Janeiro e um amigo lhe avisou para não ir, porque seria
morto em uma simulação de bala perdida. Mas ele rejeitou oferta de proteção
feita pela Comissão da Verdade. “Se hoje eu morrer, glória a Deus. Eu tirei
tantas vidas, né?”
O
ex-coordenador e membro da CNV José Carlos Dias disse ontem que a morte de
Malhães “apavorou muita gente” entre os depoentes do grupo. Dias e outros
integrantes da CNV se reuniram com a ministra da Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República, Ideli Salvatti. “A coincidência daquela morte foi
estranha e serviu de estímulo para que muitos se recusassem a falar, a
comparecer. É o medo. Isso é muito significativo. Mas conseguimos saber muitas
coisas e, cruzando com documentos, vamos apresentar um relatório substancioso”,
disse Dias, sobre documento final da comissão, que será apresentado em 10 de
dezembro.
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Juscelino
A
Comissão Municipal da Verdade de São Paulo vai usar um parecer assinado por
Gilberto Bercovici, professor da Universidade de São Paulo (USP), para tentar
sustentar a tese de que a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 22 de
agosto de 1976, não foi fruto de um acidente e, sim, de um assassinato.
Bercovici argumenta que, em caso de dúvida, deve prevalecer a interpretação de
assassinato. No fim do ano passado, depois de ouvir dezenas de testemunhas e
reunir 103 provas, o grupo concluiu que JK foi vítima de um acidente forjado na
Rodovia Presidente Dutra, na altura do município de Resende, no Rio de Janeiro.
Ele teria sido vítima de um complô orquestrado pela ditadura militar. Em abril,
a Comissão Nacional da Verdade contrariou as conclusões da Municipal e
corroborou a versão de que um acidente matou o ex-presidente.
Fonte:
Por Andrea DiP, Claudia Jardim, Ricardo Terto e Stela Diogo, da Agencia
Pública/em.com
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