sábado, 5 de abril de 2025

A crise climática, na ótica dos pesquisadores indígenas

Eventos climáticos extremos, como dois anos consecutivos de secas recordes e de calor na Amazônia, deixam marcas. Não só nas paisagens, mas também nos corpos e subjetividades de quem vive nas florestas, cidades e comunidades que formam esse bioma. 

Entender como se adaptar e como podemos reagir a este problema de escala planetária demanda habilidade de manejar a angústia e tentar impulsioná-la rumo às soluções. A impotência frente a um mundo manipulado pelo poder econômico das grandes corporações favorece o encasulamento e a desagregação, prejudicando as relações humanas e seus coletivos em tempos de inteligência artificial e solidão nas telas. 

As comunidades indígenas na Amazônia, em especial os jovens, têm sofrido sérios impactos na saúde mental. Casos de depressão, suicídio, auto-mutilação e aumento do vício em drogas e álcool mostram um quadro que reflete consequências de violências históricas e atuais, acentuadas ainda mais pelo contexto da crise socioambiental. 

A taxa de suicídio entre indígenas no Brasil já supera em quase três vezes a da população não indígena. A proporção destas mortes é mais elevada nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul, como apontou estudo publicado na Lancet Regional Health Americas, produzido pela Fiocruz e Universidade de Harvard. No município de São Gabriel da Cachoeira (AM), considerado o mais indígena do Brasil, a Prefeitura criou um Comitê Interinstitucional para lidar com a problemática da saúde mental junto aos 23 povos indígenas da região, e em 2024 elaborou um plano municipal de prevenção ao suicídio.

Arlindo Maia (Ye´pârã, nome indígena), guardião dos saberes do grupo Oyeá, do povo Tukano, da Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas, conta que a crise ambiental foi prevista pelo seu avô, Lino Maia, nascido no Rio Papuri, entre Brasil e Colômbia. Lino era conhecedor dos lugares sagrados dos Tukano e previu que chegaria um tempo de doenças e de destruição, no qual toda a humanidade sofreria, não só os indígenas, que já tinham passado pela degradação de seus mundos com a violência dos colonizadores. 

O começo deste tempo narrado pelo Seu Lino se deu em 2020, na pandemia de Covid 19, revela Arlindo, em conversa gravada na biblioteca do Instituto Socioambiental (ISA), em São Gabriel da Cachoeira, em março deste ano, sobre os impactos da crise climática. 

A entrevista com o guardião dos saberes registrou orientações para um ciclo de estudos interculturais voltado para lideranças indígenas do Rio Negro sobre clima, mercado de carbono, adaptação e mitigação às mudanças do clima, em parceria com o ISA e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).  

“Nessa virada do tempo, como dizia meu avô, a humanidade vai diminuir. Teremos muitas mortes coletivas devido à vingança da natureza. Estamos vivendo já as consequências do que os antigos previam. Por um lado, me sinto privilegiado por presenciar e atestar o que eles falavam há anos atrás”, ressalta.

Para a humanidade viver bem na natureza, os pajés do tempo antigo sabiam negociar com os waimahsã, seres às vezes traiçoeiros, que têm um certo ciúme dos humanos, conta Arlindo. Para resolver problemas ambientais, como, por exemplo, falta de chuva ou escassez de peixe, os pajés sabiam fórmulas sagradas para apaziguar a situação e retomar a harmonia, curando o mundo. Em Tukano, esse conjunto de práticas é chamado de bahsese e constitui um amplo e complexo conhecimento sobre a saúde do corpo e do território.

“Em seus benzimentos, eles faziam assopro de conciliação buscando sempre harmonia com a natureza, onde coabitam muitos seres e donos dos lugares. Os não indígenas provocam a fúria e a guerra com estes seres (waimahsã) porque constroem onde não pode, exploram a terra com mineração, barragens e outros empreendimentos que dizem ser para o progresso. Não sou contra o progresso, mas ele não pode acontecer distanciado da cultura, visando o poder e o dinheiro. A palavra poder é que começa a causar o problema”, constata.

<><> Embaralhamento

Na língua Tukano, um dos quatro idiomas indígenas co-oficiais em São Gabriel da Cachoeira, é difícil traduzir a expressão mudanças climáticas. No pensamento de Arlindo, o termo não transmite o que estamos vivendo com o colapso dos ecossistemas. Su´riásche, que em Tukano significa embaralhamento, é o que mais se aproxima do que observamos estar ocorrendo com a natureza, na vivência de Arlindo. 

“Estamos sem ordem do clima, do tempo, das estações. Vivemos em um embaralhamento e não podemos mais prever os ciclos naturais”. Este distúrbio retira o encadeamento natural dos ciclos, o que acarreta males em nós seres humanos, explica o guardião. 

Assim, ficamos também confusos e perturbados, sem orientação. “Temos que pensar no valor das palavras, porque elas têm muito poder em nós. Nós somos Pamurimasã, que significa gente do surgimento. Neste surgimento existe diversidade e muitas línguas são faladas. E precisamos entender esta diversidade para sobreviver”. 

Para os Tukano, nos ensina Arlindo, o clima é observado nas constelações. No céu escuro estrelado está o caminho dos ciclos climáticos que regem a vida na Terra. “As constelações não mudaram e elas ainda nos apontam o caminho. Mas, nós, viventes, causamos este problema de embaralhamento do clima”.

<><> Crisálida

O debate sobre o enfrentamento às mudanças climáticas deve passar pelo fortalecimento da educação indígena, da cultura, da saúde e dos saberes locais sobre o território. Arlindo brinca que a cultura do seu povo está em estágio de “crisalidez”. Esse neologismo expressa um estado de crisálida, quando o ser não se move porque está se transformando em algo novo. Assim ele vê sua cultura nos tempos atuais. 

Por isso, Arlindo enfatiza a urgência de criar alternativas que garantam a permanência dos jovens no território, assegurando a continuidade das trocas geracionais e a transmissão dos conhecimentos. Nos últimos anos, a saída de jovens das Terras Indígenas do Rio Negro aumentou fortemente com o vestibular indígena e as cotas nas universidades, como UnB, Unicamp e UFSCAR. 

Sem diminuir a importância e a conquista da política de cotas indígenas nas universidades, o que se observa é que é necessário também ter alternativas de formação para quem está no território e almeja estudar em contexto intercultural, fazendo articulações entre saberes indígenas e não indígenas.

Assim, a proposta do ICIPRN – Instituto de Conhecimentos Indígenas e Pesquisa do Rio Negro, que é registrada no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA Wasu) do Rio Negro, principal documento que indica formulações de políticas e projetos para os territórios dos povos rionegrinos, deve ser priorizada como parte fundamental para o enfrentamento das mudanças climáticas. Além disso, iniciativas como o  Fundo Indígena do Rio Negro, que fomenta a sociobioeconomia e atividades da cultura indígena, na visão de Arlindo, precisam ser fortalecidas para que a cultura e os saberes indígenas sobrevivam à virada dos tempos.

<><> Rede de pesquisadores indígenas 

Mauro Pedrosa, do povo Tukano, é agente indígena de manejo ambiental (AIMA) e integra uma rede que há 20 anos atua na Bacia do Rio Negro fazendo pesquisas e observações sobre o meio ambiente e a cultura. Os registros são feitos com tablets e diários, onde os AIMAs fazem anotações e descrevem observações relacionadas às suas comunidades, vivências cotidianas e relação com a floresta e o rio. 

Em sua rotina de trabalho, Mauro também lê os diários dos outros pesquisadores indígenas e apoia na organização e gestão do conhecimento gerado por essa rede. Tem lhe chamado a atenção as narrativas sobre escassez de peixe, dificuldades de trabalho na roça devido ao calor, perda de cultivos por conta do sol escaldante e de desequilíbrios na fauna, como ataques de caititus (porcos do mato) nas roças de mandioca, assim como apodrecimento de manivas. 

“Acredito que as futuras gerações não terão peixe para comer no Rio Tiquié se continuar deste jeito. Os AIMAs contam que os homens estão mergulhando para pegar peixe porque não conseguem pescar. Pari-Cachoeira, por exemplo, não tem mais nada de peixe”, informa Mauro, referindo-se ao segundo maior distrito da TI Alto Rio Negro, no Alto Rio Tiquié, próximo à fronteira com a Colômbia.

Quando ele era criança, recorda, o tempo não era como agora, tão quente e instável. Mauro, que tem 38 anos, lembra que antigamente era possível fazer previsões sobre os ciclos anuais, assim como os períodos de seca e cheia do rio. Ele conta que os AIMAs também têm relatado aumento de temporais, com muitos trovões e raios, mas com menos chuva do que antes. 

“Fico preocupado, porque os nossos conhecedores estão morrendo e com eles morrem os conhecimentos. Sem eles, vamos ter mais doenças nas comunidades porque vamos ficar desprotegidos. Por isso é muito importante essas oficinas dos AIMAs com repasse dos conhecimentos dos antigos para os mais jovens. Isso é que precisamos, pois quando o conhecedor está forte na comunidade, ele protege e cuida da comunidade”, conclui. 

<><> OMS recomenda prioridade à saúde mental 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma análise de políticas públicas durante a Cúpula Ambiental Estocolmo+50 indicando que o apoio à saúde mental seja incluído nas respostas nacionais às mudanças climáticas. O próprio Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reconheceu que o aumento acelerado das mudanças climáticas constitui grave ameaça à saúde mental e ao bem estar psicossocial, sobretudo, das populações mais vulneráveis, como os indígenas.

A médica espanhola Maria Neira, diretora do Departamento de Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e Saúde da OMS, enfatizou que “os impactos das mudanças climáticas fazem cada vez mais parte do nosso cotidiano, e há muito pouco apoio dedicado à saúde mental disponível para as pessoas e comunidades que lidam com perigos relacionados ao clima e riscos de longo prazo”. 

A OMS destacou que alguns países vêm construindo um caminho a ser seguido, dando o exemplo das Filipinas, que reconstruíram e melhoraram os serviços de saúde mental após o tufão Haiyan em 2013, um dos mais potentes ciclones tropicais já registrados na história.

¨      Crise climática global pode provocar retração econômica e grande mortalidade. Por José Eustáquio Diniz

crise climática pode reduzir o PIB global em cerca de 50% até 2090, além de provocar uma mortalidade em massa em decorrência dos efeitos do aquecimento global, como incêndios, secas, onda letais de calor, colapso dos ecossistemas e enchentes provocadas pelas tempestades e pela elevação do nível do mar.

O alerta veio de um novo relatório de especialistas em gestão de risco do Institute and Faculty of Actuaries (IFoA) que eleva significativamente a estimativa de risco para a economia global, para a saúde da população mundial e para a sobrevivência das espécies e a biodiversidade.

O relatório “Planetary Solvency – finding our balance with nature” foi publicado depois que a Organização Meteorológica Mundial mostrou que os últimos 10 anos foram os mais quentes do Holoceno e que os últimos 2 anos (2023 e 2024) tiveram as temperaturas mais altas dos últimos 125 mil anos. Além disto, os climatologistas mostram que existe um processo de aceleração do aquecimento global, potencializando as condições climáticas extremas.

Neste sentido, o relatório afirma que as avaliações de risco climático usadas por instituições financeiras, políticos e funcionários públicos para avaliar os efeitos econômicos do aquecimento global estavam erradas, porque ignoraram os efeitos severos esperados das mudanças climáticas, como pontos de inflexão, aumento da temperatura do mar, migração e conflito como resultado do aquecimento global.

Segundo o relatório, o risco de insolvência planetária se aproxima, a menos que ajamos decisivamente. Sem uma ação política imediata para mudar o curso, impactos catastróficos ou extremos são eminentemente plausíveis, o que pode ameaçar a prosperidade futura. Observações críticas:

• Nossa sociedade e economia dependem fundamentalmente do sistema da Terra, que fornece itens essenciais como comida, água, energia e matérias-primas.

• Esses serviços ecossistêmicos, incluindo a regulação climática, não são substituíveis, o que significa que devem ser protegidos, pois não podem ser substituídos por tecnologia quando se forem.

• Isso significa que o desenvolvimento social, o bem-estar, a prosperidade e a saúde econômica estão interligados e dependentes do sistema da Terra.

• Precisamos reconhecer essa dependência e gerenciar nossa atividade para estar dentro dos limites planetários.

• Uma resposta política urgente é necessária para atingir isso pois nossa atual abordagem liderada pelo mercado para mitigar riscos climáticos e naturais não está dando resultado.

• Os impactos já são severos com incêndios, inundações, ondas de calor, tempestades e secas sem precedentes.

• Corremos o risco de desencadear pontos de inflexão, como o derretimento da camada de gelo da Groenlândia, perda de recifes de corais, morte da floresta amazônica e grande interrupção das correntes oceânicas.

• Os pontos de inflexão podem desencadear uns aos outros, causando um efeito dominó ou cascata de danos acelerados e incontroláveis.

• Se vários pontos de inflexão forem acionados, pode haver um ponto sem retorno, após o qual pode ser impossível estabilizar o clima.

Nota-se que no cenário extremo (acima de 3ºC) a mortalidade humana pode chegar a 2 bilhões de óbitos e no cenário catastrófico pode chegar a 4 bilhões de óbitos. Isto provocaria uma grande redução da expectativa de vida, com impactos negativos sobre os indivíduos, as famílias, a sociedade e a economia.

A tabela abaixo mostra o impacto do risco de Solvência Planetária e a matriz de probabilidade utilizada para os resultados ilustrativos da Solvência Planetária contidos nas seções anteriores do relatório.

Um outro artigo “The macroeconomic impact of climate change: global vs. local” dos autores Adrien Bilal e Diego R. Känzig (NBER, 24/03/2025) também estima as perdas provocadas pelas mudanças climáticas. Segundo os autores: “Este artigo estima que os danos macroeconômicos das mudanças climáticas são seis vezes maiores do que se pensava anteriormente. Explorando a variabilidade natural da temperatura global, descobrimos que o aquecimento de 1ºC reduz o PIB mundial em 12%. A temperatura global se correlaciona fortemente com eventos climáticos extremos, diferentemente da temperatura em nível de país usada em trabalhos anteriores, explicando nossa estimativa maior. Usamos essa evidência para estimar funções de dano em um modelo de crescimento neoclássico. O aquecimento do tipo business-as-usual implica uma perda de bem-estar atual de 25% e um Custo Social do Carbono de US$ 1.367 por tonelada. Esses impactos sugerem que a política unilateral de descarbonização é econômica para grandes países como os Estados Unidos”.

De fato, se a crise climática não for controlada, seus efeitos podem se tornar catastróficos, incluindo perda da capacidade de cultivar grandes culturas básicas, elevação do nível do mar em vários metros, padrões climáticos alterados e uma aceleração adicional do aquecimento global.

Enquanto isto, as políticas do presidente dos EUA, Donald Trump, incentivam a exploração de combustíveis fósseis e o aumento dos gastos militares e de destruição em todo o mundo.

A crise econômica, o negacionismo climático e o aumento da mortalidade passam a ser uma ameaça existencial ao progresso da civilização humana.

 

Fonte: ISA/EcoDebate

 

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