A crise climática, na ótica dos pesquisadores
indígenas
Eventos
climáticos extremos, como dois anos consecutivos de secas recordes e de calor
na Amazônia, deixam marcas. Não só nas paisagens, mas também nos corpos e
subjetividades de quem vive nas florestas, cidades e comunidades que formam
esse bioma.
Entender
como se adaptar e como podemos reagir a este problema de escala planetária
demanda habilidade de manejar a angústia e tentar impulsioná-la rumo às
soluções. A impotência frente a um mundo manipulado pelo poder econômico das
grandes corporações favorece o encasulamento e a desagregação, prejudicando as
relações humanas e seus coletivos em tempos de inteligência artificial e
solidão nas telas.
As
comunidades indígenas na Amazônia, em especial os jovens, têm sofrido sérios
impactos na saúde mental. Casos de depressão, suicídio, auto-mutilação e
aumento do vício em drogas e álcool mostram um quadro que reflete consequências
de violências históricas e atuais, acentuadas ainda mais pelo contexto da crise
socioambiental.
A taxa
de suicídio entre indígenas no Brasil já supera em quase três vezes a da
população não indígena. A proporção destas mortes é mais elevada nos estados do
Amazonas e Mato Grosso do Sul, como apontou estudo publicado na Lancet Regional Health
Americas, produzido pela Fiocruz e Universidade de Harvard. No município de
São Gabriel da Cachoeira (AM), considerado o mais indígena do Brasil, a
Prefeitura criou um Comitê Interinstitucional para lidar com a problemática da
saúde mental junto aos 23 povos indígenas da região, e em 2024 elaborou
um plano municipal de prevenção ao
suicídio.
Arlindo Maia (Ye´pârã, nome indígena), guardião dos
saberes do grupo Oyeá, do povo Tukano, da Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas, conta
que a crise ambiental foi prevista pelo seu avô, Lino Maia, nascido no Rio
Papuri, entre Brasil e Colômbia. Lino era conhecedor dos lugares sagrados dos
Tukano e previu que chegaria um tempo de doenças e de destruição, no qual toda
a humanidade sofreria, não só os indígenas, que já tinham passado pela
degradação de seus mundos com a violência dos colonizadores.
O
começo deste tempo narrado pelo Seu Lino se deu em 2020, na pandemia de Covid
19, revela Arlindo, em conversa gravada na biblioteca do Instituto
Socioambiental (ISA), em São Gabriel da Cachoeira, em março deste ano, sobre os
impactos da crise climática.
A
entrevista com o guardião dos saberes registrou orientações para um ciclo de
estudos interculturais voltado para lideranças indígenas do Rio Negro sobre
clima, mercado de carbono, adaptação e mitigação às mudanças do clima, em
parceria com o ISA e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro
(Foirn).
“Nessa virada
do tempo, como dizia meu avô, a humanidade vai diminuir. Teremos muitas
mortes coletivas devido à vingança da natureza. Estamos vivendo já as
consequências do que os antigos previam. Por um lado, me sinto privilegiado por
presenciar e atestar o que eles falavam há anos atrás”, ressalta.
Para a
humanidade viver bem na natureza, os pajés do tempo antigo sabiam negociar com
os waimahsã, seres às vezes traiçoeiros, que têm um certo ciúme dos
humanos, conta Arlindo. Para resolver problemas ambientais, como, por exemplo,
falta de chuva ou escassez de peixe, os pajés sabiam fórmulas sagradas para
apaziguar a situação e retomar a harmonia, curando o mundo. Em Tukano, esse
conjunto de práticas é chamado de bahsese e constitui um amplo
e complexo conhecimento sobre a saúde do corpo e do território.
“Em
seus benzimentos, eles faziam assopro de conciliação buscando sempre harmonia
com a natureza, onde coabitam muitos seres e donos dos lugares. Os não
indígenas provocam a fúria e a guerra com estes seres (waimahsã) porque
constroem onde não pode, exploram a terra com mineração, barragens e outros
empreendimentos que dizem ser para o progresso. Não sou contra o progresso, mas
ele não pode acontecer distanciado da cultura, visando o poder e o dinheiro. A
palavra poder é que começa a causar o problema”, constata.
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Embaralhamento
Na
língua Tukano, um dos quatro idiomas indígenas co-oficiais em São Gabriel da
Cachoeira, é difícil traduzir a expressão mudanças climáticas. No pensamento de
Arlindo, o termo não transmite o que estamos vivendo com o colapso dos
ecossistemas. Su´riásche, que em Tukano significa embaralhamento, é
o que mais se aproxima do que observamos estar ocorrendo com a natureza, na
vivência de Arlindo.
“Estamos
sem ordem do clima, do tempo, das estações. Vivemos em um embaralhamento e não
podemos mais prever os ciclos naturais”. Este distúrbio retira o encadeamento
natural dos ciclos, o que acarreta males em nós seres humanos, explica o
guardião.
Assim,
ficamos também confusos e perturbados, sem orientação. “Temos que pensar no
valor das palavras, porque elas têm muito poder em nós. Nós somos Pamurimasã,
que significa gente do surgimento. Neste surgimento existe diversidade e muitas
línguas são faladas. E precisamos entender esta diversidade para
sobreviver”.
Para os
Tukano, nos ensina Arlindo, o clima é observado nas constelações. No céu escuro
estrelado está o caminho dos ciclos climáticos que regem a vida na Terra. “As
constelações não mudaram e elas ainda nos apontam o caminho. Mas, nós,
viventes, causamos este problema de embaralhamento do clima”.
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Crisálida
O
debate sobre o enfrentamento às mudanças climáticas deve passar pelo
fortalecimento da educação indígena, da cultura, da saúde e dos saberes locais
sobre o território. Arlindo brinca que a cultura do seu povo está em estágio de
“crisalidez”. Esse neologismo expressa um estado de crisálida, quando o ser não
se move porque está se transformando em algo novo. Assim ele vê sua cultura nos
tempos atuais.
Por
isso, Arlindo enfatiza a urgência de criar alternativas que garantam a
permanência dos jovens no território, assegurando a continuidade das trocas
geracionais e a transmissão dos conhecimentos. Nos últimos anos, a saída de
jovens das Terras Indígenas do Rio Negro aumentou fortemente com o vestibular
indígena e as cotas nas universidades, como UnB, Unicamp e UFSCAR.
Sem
diminuir a importância e a conquista da política de cotas indígenas nas
universidades, o que se observa é que é necessário também ter alternativas de
formação para quem está no território e almeja estudar em contexto
intercultural, fazendo articulações entre saberes indígenas e não indígenas.
Assim,
a proposta do ICIPRN – Instituto de Conhecimentos Indígenas e Pesquisa do Rio
Negro, que é registrada no Plano de Gestão Territorial e
Ambiental (PGTA Wasu) do Rio Negro, principal documento que indica formulações
de políticas e projetos para os territórios dos povos rionegrinos, deve ser
priorizada como parte fundamental para o enfrentamento das mudanças climáticas.
Além disso, iniciativas como o Fundo
Indígena do Rio Negro,
que fomenta a sociobioeconomia e atividades da cultura indígena, na visão de
Arlindo, precisam ser fortalecidas para que a cultura e os saberes indígenas
sobrevivam à virada dos tempos.
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Rede de pesquisadores indígenas
Mauro
Pedrosa, do povo Tukano, é agente indígena de manejo ambiental (AIMA) e integra
uma rede que há 20 anos atua na Bacia do Rio Negro fazendo pesquisas e
observações sobre o meio ambiente e a cultura. Os registros são feitos com
tablets e diários, onde os AIMAs fazem anotações e descrevem observações
relacionadas às suas comunidades, vivências cotidianas e relação com a floresta
e o rio.
Em sua
rotina de trabalho, Mauro também lê os diários dos outros pesquisadores
indígenas e apoia na organização e gestão do conhecimento gerado por essa rede.
Tem lhe chamado a atenção as narrativas sobre escassez de peixe, dificuldades
de trabalho na roça devido ao calor, perda de cultivos por conta do sol
escaldante e de desequilíbrios na fauna, como ataques de caititus (porcos do
mato) nas roças de mandioca, assim como apodrecimento de manivas.
“Acredito
que as futuras gerações não terão peixe para comer no Rio Tiquié se continuar
deste jeito. Os AIMAs contam que os homens estão mergulhando para pegar peixe
porque não conseguem pescar. Pari-Cachoeira, por exemplo, não tem mais nada de
peixe”, informa Mauro, referindo-se ao segundo maior distrito da TI Alto Rio
Negro, no Alto Rio Tiquié, próximo à fronteira com a Colômbia.
Quando
ele era criança, recorda, o tempo não era como agora, tão quente e instável.
Mauro, que tem 38 anos, lembra que antigamente era possível fazer previsões
sobre os ciclos anuais, assim como os períodos de seca e cheia do rio. Ele
conta que os AIMAs também têm relatado aumento de temporais, com muitos trovões
e raios, mas com menos chuva do que antes.
“Fico
preocupado, porque os nossos conhecedores estão morrendo e com eles morrem os
conhecimentos. Sem eles, vamos ter mais doenças nas comunidades porque vamos
ficar desprotegidos. Por isso é muito importante essas oficinas dos AIMAs com
repasse dos conhecimentos dos antigos para os mais jovens. Isso é que
precisamos, pois quando o conhecedor está forte na comunidade, ele protege e
cuida da comunidade”, conclui.
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OMS recomenda prioridade à saúde mental
A
Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma análise de políticas
públicas durante
a Cúpula Ambiental Estocolmo+50 indicando que o apoio à saúde mental seja
incluído nas respostas nacionais às mudanças climáticas. O próprio Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reconheceu que o aumento
acelerado das mudanças climáticas constitui grave ameaça à saúde mental e ao
bem estar psicossocial, sobretudo, das populações mais vulneráveis, como os
indígenas.
A
médica espanhola Maria Neira, diretora do Departamento de Meio Ambiente,
Mudanças Climáticas e Saúde da OMS, enfatizou que “os impactos das mudanças
climáticas fazem cada vez mais parte do nosso cotidiano, e há muito pouco apoio
dedicado à saúde mental disponível para as pessoas e comunidades que lidam com
perigos relacionados ao clima e riscos de longo prazo”.
A OMS
destacou que alguns países vêm construindo um caminho a ser seguido, dando o
exemplo das Filipinas, que reconstruíram e melhoraram os serviços de saúde
mental após o tufão Haiyan em 2013, um dos mais potentes ciclones tropicais já
registrados na história.
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Crise climática global pode provocar retração econômica e
grande mortalidade. Por José Eustáquio Diniz
A crise climática pode reduzir
o PIB global em cerca de 50% até 2090, além de provocar uma
mortalidade em massa em decorrência dos efeitos do aquecimento global, como incêndios,
secas, onda letais de calor, colapso dos ecossistemas e enchentes provocadas
pelas tempestades e pela elevação do nível do mar.
O
alerta veio de um novo relatório de especialistas em gestão de risco do
Institute and Faculty of Actuaries (IFoA) que eleva significativamente a
estimativa de risco para a economia global, para a saúde da
população mundial e para a sobrevivência das espécies e a biodiversidade.
O
relatório “Planetary Solvency – finding our balance with nature” foi
publicado depois que a Organização Meteorológica Mundial mostrou que os
últimos 10 anos foram os mais quentes do Holoceno e que os
últimos 2 anos (2023 e 2024) tiveram as temperaturas mais altas dos últimos 125
mil anos. Além disto, os climatologistas mostram que existe um processo de
aceleração do aquecimento global, potencializando as condições climáticas
extremas.
Neste
sentido, o relatório afirma que as avaliações de risco climático usadas por
instituições financeiras, políticos e funcionários públicos para avaliar os
efeitos econômicos do aquecimento global estavam erradas, porque
ignoraram os efeitos severos esperados das mudanças climáticas, como pontos de
inflexão, aumento da temperatura do mar, migração e conflito como resultado do
aquecimento global.
Segundo
o relatório, o risco de insolvência planetária se aproxima, a menos que ajamos
decisivamente. Sem uma ação política imediata para mudar o curso, impactos
catastróficos ou extremos são eminentemente plausíveis, o que pode ameaçar a
prosperidade futura. Observações críticas:
• Nossa
sociedade e economia dependem fundamentalmente do sistema da Terra, que
fornece itens essenciais como comida, água, energia e matérias-primas.
• Esses
serviços ecossistêmicos, incluindo a regulação climática, não são
substituíveis, o que significa que devem ser protegidos, pois não podem ser
substituídos por tecnologia quando se forem.
• Isso
significa que o desenvolvimento social, o bem-estar, a prosperidade e a saúde
econômica estão interligados e dependentes do sistema da Terra.
•
Precisamos reconhecer essa dependência e gerenciar nossa atividade para estar
dentro dos limites planetários.
• Uma
resposta política urgente é necessária para atingir isso pois nossa atual
abordagem liderada pelo mercado para mitigar riscos climáticos e naturais não
está dando resultado.
• Os
impactos já são severos com incêndios, inundações, ondas de calor, tempestades
e secas sem precedentes.
•
Corremos o risco de desencadear pontos de inflexão, como o derretimento da
camada de gelo da Groenlândia, perda de recifes de corais, morte da
floresta amazônica e grande interrupção das correntes oceânicas.
• Os
pontos de inflexão podem desencadear uns aos outros, causando um efeito dominó
ou cascata de danos acelerados e incontroláveis.
• Se
vários pontos de inflexão forem acionados, pode haver um ponto sem retorno,
após o qual pode ser impossível estabilizar o clima.
Nota-se
que no cenário extremo (acima de 3ºC) a mortalidade humana pode chegar a 2
bilhões de óbitos e no cenário catastrófico pode chegar a 4 bilhões de óbitos.
Isto provocaria uma grande redução da expectativa de vida, com impactos
negativos sobre os indivíduos, as famílias, a sociedade e a economia.
A
tabela abaixo mostra o impacto do risco de Solvência Planetária e a
matriz de probabilidade utilizada para os resultados ilustrativos da Solvência
Planetária contidos nas seções anteriores do relatório.
Um
outro artigo “The macroeconomic impact of climate change: global vs. local”
dos autores Adrien Bilal e Diego R. Känzig (NBER,
24/03/2025) também estima as perdas provocadas
pelas mudanças climáticas. Segundo os autores: “Este artigo estima
que os danos macroeconômicos das mudanças climáticas são seis vezes maiores do
que se pensava anteriormente. Explorando a variabilidade natural da temperatura global, descobrimos que o
aquecimento de 1ºC reduz o PIB mundial em 12%. A temperatura global
se correlaciona fortemente com eventos climáticos extremos, diferentemente da
temperatura em nível de país usada em trabalhos anteriores, explicando nossa estimativa
maior. Usamos essa evidência para estimar funções de dano em um modelo de
crescimento neoclássico. O aquecimento do tipo business-as-usual implica uma
perda de bem-estar atual de 25% e um Custo Social do Carbono de US$
1.367 por tonelada. Esses impactos sugerem que a política unilateral de descarbonização é econômica
para grandes países como os Estados Unidos”.
De
fato, se a crise climática não for controlada, seus efeitos podem se tornar
catastróficos, incluindo perda da capacidade de cultivar grandes culturas
básicas, elevação do nível do
mar em
vários metros, padrões climáticos alterados e uma aceleração adicional do
aquecimento global.
Enquanto
isto, as políticas do presidente dos EUA, Donald Trump, incentivam a exploração de
combustíveis fósseis e
o aumento dos gastos militares e de destruição em todo o mundo.
A crise
econômica, o negacionismo climático e o aumento da mortalidade passam
a ser uma ameaça existencial ao progresso da civilização humana.
Fonte: ISA/EcoDebate
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