Guerra cultural: hora de praticar o
materialismo
“Somos uma derrota que governa”. Leio esta
dura caracterização do presente no último livro do filósofo Juan Manuel
Aragües, A escrita dos deuses. Apesar de hoje governar uma coalizão
de esquerda, onde se encontram as posições antagonistas com as quais o autor se
identifica, é a direita (mais ou menos extrema) que leva a iniciativa no plano
social, das ruas e do ânimo, colocando a esquerda na defensiva. O impulso de
mudança radical na sociedade expresso pelo movimento 15M congelou-se, e as
políticas de esquerda limitam-se (no melhor dos casos) a medidas de contenção,
incapazes de reverter as desigualdades estruturais.
Por que a energia e a iniciativa mudaram de
lado? Uma resposta que surge entre os atores de esquerda envolvidos no que se
conhece como batalha cultural é a seguinte: “A direita tem mais dinheiro, mais
meios e mais talento comunicativo”. Esse “mais” explicaria a influência dos
discursos de ódio, principalmente entre os mais jovens, a propagação de fake
news, o enfraquecimento das mensagens progressistas e dos horizontes de
esperança.
Mas, por acaso houve mais dinheiro, mais
meios e melhores estratégias midiáticas durante a década anterior, quando o
desejo de mudança teve claramente a hegemonia social e cultural? E se não
estivermos pensando corretamente sobre as forças em jogo, assumindo que tudo é
uma questão quantitativa, de poder, de técnicas e engenharia social?
O desafio político, diz Juan Manuel Aragües,
também é filosófico, tem a ver com maneiras de pensar. Há modos de pensar que
carregam em si mesmos a derrota. A batalha cultural é uma disputa de mensagens
contra mensagens, com os meios e as redes sociais como terreno único ou
privilegiado? Tudo se resume a ver quem coloca melhor a mensagem? Poderíamos
pensar a comunicação de outra forma?
·
Idealismo e materialismo
O livro de Juan Manuel Aragües reivindica a
tradição materialista do pensamento para as práticas de emancipação. Uma
constelação da qual fazem parte desde Epicuro até Gilles Deleuze, passando por
Spinoza e Marx, firmemente oposta ao idealismo. O que diz o idealismo? Aragües
o resume assim: é a crença de que um “etéreo mundo de nomes” define a
realidade, detém a verdade do real. O fundador da corrente idealista seria
Platão, com sua famosa teoria de um mundo de ideias que rege acima da matéria
imperfeita.
Qual é o problema do idealismo? Esse “etéreo
mundo de nomes” simplifica (até o apagamento) a complexidade e riqueza do real,
que consiste na emergência contínua de diferenças impossíveis de captar (sem
mutilação) em ideias, conceitos ou esquemas a priori. O idealismo é uma “lógica
representativa” que pretende dar conta da realidade, como se fosse um espelho,
mas não consegue captar seu dinamismo de mudança e movimento.
Da filosofia à política. A batalha cultural,
tal como é proposta hoje, não seria profundamente idealista? A verdade está na
teoria ou nas narrativas, trata-se de transmitir essa verdade às
massas/audiências através da persuasão (no caso da esquerda clássica) ou da
sedução (no caso do populismo). Em ambos os casos, concede-se ao ideal – a
teoria ou as narrativas – o privilégio de definir o sentido do material. Os
construtores de explicações e narrativas, os intelectuais ou storytellers,
têm o poder e a agência nessa concepção de política.
Como pensar em chave materialista? A verdade
não está acima da matéria, em um céu abstrato de ideias ou narrativas, mas na
própria matéria, em seu movimento perpétuo, em sua produção contínua de
singularidades, na trama de relações entre elas que constitui a vida. A matéria
se define assim como um “tecido de diferenças”. Também a matéria da sociedade,
a matéria social.
Há singularidade e há diferença, cada um de
nós é uma perspectiva do mundo, um leitor único e irrepetível da realidade. A
percepção é ativa, os sentidos não apenas reproduzem ou refletem o que existe,
mas o recriam. Porém, ao mesmo tempo, essa diferença e essa singularidade, a de
cada um de nós, é relacional, ou seja, entra em contato e diálogo com os
outros, deixando-se afetar e afetando, mudando através dos encontros.
Mas, o que importa tudo isso? Para que servem
essas divagações filosóficas? No final, não se trata de ter mais dinheiro, mais
meios e mais eficácia em termos de mensagem? A diferença é decisiva. Se
pensamos em chave idealista, o emissor (que detém a verdade da teoria ou da
narrativa) dirige-se a um receptor isolado e passivo. A comunicação torna-se um
bombardeio de informações para um conjunto de indivíduos atomizados, cada um
fechado em si mesmo e sem relação com os outros.
É exatamente assim que o mercado pratica a
comunicação. A fraqueza da batalha cultural hoje, tanto da esquerda clássica
(que quer convencer) quanto da esquerda populista (que quer seduzir), é
transformar a comunicação em uma prática de mercado, que pressupõe um conjunto
de consumidores isolados, sem percepção ativa, sem conversa ou laços entre si.
Estações repetidoras de estereótipos, de memes, de conteúdos virais.
·
A questão da prática
O idealismo, tal como explica Juan Manuel
Aragües, é a crença de que primeiro vem a consciência, as ideias, a linguagem,
e só depois a vida. O “etéreo mundo de nomes” dá sentido, orientação e direção
à vida. O materialismo afirma algo muito diferente: a prática, a experiência,
tem um efeito determinante sobre a consciência. As práticas e as experiências
de vida podem gerar novos olhares, novas ideias, novas maneiras de pensar.
Por que a direita leva a iniciativa na
disputa das ideias? Poderíamos pensar: não apenas porque tem mais dinheiro,
mais meios e mais talento comunicativo, mas porque as práticas e as
experiências de vida estão do seu lado. A quais me refiro? Às mais diárias e
cotidianas: desde o supermercado até o cartão de crédito, passando pelo
entretenimento e o turismo, a vida hoje está inteiramente organizada pelo
mercado.
Ou seja, a mensagem da direita pega porque
ressoa e sintoniza com os medos e as esperanças de uma vida imersa no líquido
amniótico do mercado. A esquerda ri com arrogância dos disparates de Trump ou
de Ayuso, mas eles conectam com desejos, formas de vida e linguagens comuns. A
direita hoje é materialista, tem as práticas de vida majoritárias ao seu lado.
É um materialismo cínico, um materialismo do dado, do que existe, do
estabelecido, mas enraizado no real.
A batalha cultural não é apenas questão de
ideias, teorias, narrativas sedutoras, significantes ou mensagens a veicular,
mas tem a ver com práticas, experiências, abalos da vida capazes, segundo
explica a tradição materialista, de gerar novas visões de mundo. Não foi essa,
por exemplo, a força do 15M? Sem dinheiro, sem meios, sem nenhum roteiro
argumentativo, mas apoiado em uma prática de vida diferente, que contagiava
afetos e valores distintos, foi capaz de mudar o olhar de um país.
·
Razões e paixões
Por fim, o idealismo, conforme caracterizado
por Juan Manuel Aragües, desconhece o caráter passional e desejante da matéria
humana. Um medo do corpo, uma ignorância dos saberes do corpo, o acompanham
desde sempre, pelo menos desde o momento em que Platão decidiu expulsar os
poetas de sua cidade ideal.
A batalha cultural idealista imagina a
eficácia de uma verdade discursiva purificada de paixões. No caso da esquerda
clássica, é a confiança na pedagogia, na ideologia, nos roteiros
argumentativos. A esquerda clássica pensa a batalha cultural como um grande
quadro-negro onde os especialistas (que sabem) ensinam às audiências (que não
sabem) o que deveriam saber. No caso da esquerda populista, as emoções são
levadas em conta – um certo avanço em relação à esquerda clássica –, mas são
pensadas como meras identificações. A emoção é algo a ser captado ou suscitado
para “colocar” melhor a mensagem.
Em ambos os casos, ignora-se a capacidade
motora dos afetos, sua grande força de deslocamento, o poder que têm para nos
mover e comover. Os afetos não são nem uma interferência no pensamento correto,
nem a emoção passiva que adere ou não aos significantes propostos, mas uma
intensidade vital que pode produzir novos olhares, novas visões e novos
sentidos para a vida.
·
A batalha do pensamento
Singularidade e relacionalidade, percepção
ativa e criadora, tecido de diferenças, práticas de vida, caráter passional e
desejante do humano… A partir dessas chaves, poderíamos pensar uma batalha
cultural diferente? Como seria?
Imagino-a, em primeiro lugar, como a abertura
de espaços de conversa. Sem divisão rígida entre emissores e receptores,
criadores de conteúdos e consumidores passivos ou repetitivos. A conversa como
ida e volta da palavra em igualdade, como exercício de atenção e escuta, não
mediado por algoritmos, roteiros ou protocolos rígidos, mas sustentado pelos
próprios participantes.
Espaços de conversa, de palavra recíproca,
nem monólogo nem guerra entre posições fechadas, mas uma trama ao mesmo tempo
comum e diversa, singular e coletiva. Uma conversa que se alimente das práticas
de vida (ou que seja até capaz de suscitá-las), que ressoe com nossas
experiências mais cotidianas e possa, assim, afetar nosso olhar sobre o mundo.
Espaços de encontro, de pensamento, de deliberação, de participação autêntica.
Lá onde somos convocados a pensar a partir do
que nos importa e nos toca, do que vivemos e nos implica vitalmente,
desdobra-se sempre uma inteligência. Somos matéria que pensa. A confiança na
igualdade das inteligências, na inteligência de qualquer um, é um pressuposto
materialista. É possível dirigir-se ao outro, falar com o outro, não para
convencê-lo ou seduzi-lo, mas para pensar juntos?
A batalha cultural em chave materialista é
uma batalha do pensamento. Juan Manuel Aragües a pensa como construção de
um conatus. O conatus é um conceito do filósofo
Spinoza que designa o esforço que cada coisa e cada criatura faz para
perseverar em seu ser. Mas esse conatus, que Spinoza considera uma
força primordial, um ponto de partida, Aragües o pensa mais como um desafio,
uma construção, um ponto de chegada.
O dado não é o conatus, como
mostra o mundo atual, mas a pulsão suicida. A pulsão suicida do capitalismo em
forma de guerra, de agressão à natureza, de cegueira voluntária diante de todos
os sinais de alarme. A pulsão suicida de cada um de nós como indivíduos
isolados, sem relação, atomizados. Idiotas, no sentido grego da palavra,
autorreferentes, fechados em nós mesmos, incapazes de encontro com os outros. A
pulsão de morte freudiana é redefinida em chave materialista como pulsão
idiota.
Construir um conatus para
sobreviver, para nos colocar um horizonte de sobrevivência humana em um planeta
vivo. Para isso, é preciso escapar da idiotice, da superioridade moral, do
identitarismo, de tudo o que nos torne incapazes de encontro e composição com
os outros. Construir o conatus é construir o comum, uma saída
e um êxodo da pulsão suicida do capitalismo neoliberal, hoje já brutalismo.
Contra a pulsão suicida, contra a pulsão
idiota, contra a vida-mercado e sua falsa comunidade de indivíduos atomizados,
a batalha cultural em chave materialista, a construção de um corpo coletivo, um
espaço de conversa, um tecido de diferenças.
Fonte:
Por Amador Fernández-Savater, no CTXT |
Tradução: Rôney Rodrigues, em Outras Palavras
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