São
Jorge: de santo 'cassado' a guerreiro que vive na Lua
Ele
está presente na tradição popular, em sambas, no futebol e na toponímia — é
considerado o padroeiro do Corinthians e do Rio de Janeiro. Graças ao
sincretismo presente no Brasil, acabou sendo também uma das figuras mais
importantes da umbanda. Personagem de inúmeras lendas, acabou sendo removido do
santoral católico em 1969 — mas sua veneração segue firme e forte.
São
Jorge é costumeiramente representado como um guerreiro romano em um imponente
cavalo branco. Com sua lança, trucida um dragão. São confusas e imprecisas as
informações sobre sua vida, se é que ele existiu de fato.
"São
inúmeras as narrações fantasiosas que nasceram em torno da figura de São
Jorge", afirma texto do próprio Vaticano. "Um dos seus episódios mais
conhecidos é o do dragão e a jovem, salva pelo santo, que remonta ao período
das Cruzadas. Narra-se que na cidade de Selém, Líbia, havia um grande pântano,
onde vivia um terrível dragão. Para aplacá-lo, os habitantes ofereciam-lhe dois
cabritos por dia e, vez por outra, um cabrito e um jovem tirado à sorte. Certa
vez, a sorte coube à filha do rei. Enquanto a princesa se dirigia ao pântano,
Jorge passou por ali e matou o dragão com a sua espada. Este seu gesto
tornou-se símbolo da fé que triunfa sobre o mal."
De
concreto sobre sua provável existência, há um documento chamado de 'Passio
Georgii' (em português, 'A Paixão de Jorge'), reconhecido por um decreto da
Igreja datado de 496. "Muitas das informações contidas nesse texto foram
criando raízes e se fixando na tradição e no imaginário em torno a São
Jorge", afirma à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, membro
associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
"Como
muitos desses santos dos primeiros séculos cristão, é muito difícil
reconstituir sua vida verdadeira. O que temos são algumas informações colhidas
de algumas fontes hagiográficas", comenta ele, salientando que a própria
'Passio', "classificada como apócrifa, não podia ser considerada uma fonte
fidedigna".
A
versão afirma que Jorge teria nascido na Capadócia, atual Turquia, por volta do
ano de 280, educado em uma família de tradição cristã. Mais tarde, mudou-se
para a Palestina, onde acabou se alistando no exército do imperador romano
Diocleciano (243-312).
"Ele
era considerado um soldado extremamente competente, a ponto de passar a
integrar a guarda pessoal do imperador. Este é um dado significativo, porque
para fazer parte dessa guarda devia ser alguém de muita confiança, não podia
ser qualquer um", acrescenta Maerki. "Isso mostra que ele era
extremamente importante e reconhecido por Diocleciano."
• Ele existiu ou não?
"Segundo
a tradição, Jorge teria sido um destemido e famoso tribuno da guarda romana,
admirado por todos, inclusive pelo imperador", completa o escritor e
teólogo J. Alves, autor do livro 'Os Santos de Cada Dia', em resposta a
perguntas formuladas pela reportagem.
No ano
de 303, o imperador publicou um edito considerado o marco da mais sangrenta
perseguição aos cristãos. Jorge teria então doado todos os seus bens aos pobres
e, apresentado-se a Diocleciano. Ali declarou sua fé em Cristo, rasgando o
decreto. Acabaria torturado e morto por decapitação, segundo o texto do
Vaticano.
De
acordo com a tradição, ele teria sido sepultado em Lida, na época capital da
Palestina, atualmente uma cidade israelense localizada perto de Telaviv. No
local foi erguida uma igreja em sua honra — hoje restam ruínas.
Maerki
recorda outra narrativa sobre o martírio de Jorge, segundo a qual o imperador
Diocleciano teria convocado um conselho de reis, com 72 nobres de diversas
localidades, para decidir estratégias para perseguir e matar cristão. "São
Jorge havia se declarado cristão. E acabou convidado pelo imperador a oferecer
sacrifícios aos deuses pagãos", narra o hagiólogo. "Ele teria se
recusado a fazer isso e, então, acabou espancado, dilacerado e jogado na
prisão."
"Segundo
consta, depois, no cárcere, ele teria tido uma visão divina em que Deus lhe
previa seis anos de tormento e também uma espécie de ressurreição após a morte.
O que, segundo a lenda, se concretizaria", prossegue Maerki.
Mas ele
existiu de fato? "Como muitos santos católicos dos primeiros séculos da
era cristã, não há comprovação científica para sua existência histórica,
enquanto pessoa real situada no tempo e no espaço", comenta Alves.
"“A memória de São Jorge chegou até nossos tempos por meio de múltiplas
narrativas edificantes, feitas em épocas e circunstâncias diferentes, colhendo
e agregando à figura do santo o ethos de cada época."
Ele
atribui a isso a existência de tantas "lendas e histórias
fantasiosas" acerca do santo, "de vertente míticas, religiosas e
socioculturais". "Tudo isso, ressignificado à luz da fé
católica", enfatiza. "Essas contínuas releituras e reescritas se
fundiram aos dados mais primitivos da tradição oral, resultando em uma imagem
multifacetada e cativante que torna São Jorge um santo universal que protege a
todos, independente de sua crença", argumenta.
Alves
defende, contudo, que "é consenso de muitos hagiógrafos" que, mesmo
com tantas versões e reinterpretações, "são fortes os indícios e
evidências" de que ele existiu como figura histórica. "Um dos
principais argumentos de sua historicidade está na antiguidade e continuidade
do seu culto, já evidenciado no século 4, que perpassa não só a baixa e alta
Idade Média, mas também a era moderna, permanecendo em evidência até os dias de
hoje", diz ele.
O
Vaticano atesta que "entre os documentos mais antigos" que indicam
"a existência de São Jorge" está uma epígrafe grega do ano de 368 que
menciona “casa ou igreja dos santos e triunfantes mártires, Jorge e
companheiros".
"Outra
evidência são as inscrições encontradas em ruínas de antigas igrejas a ele
dedicadas, na Síria, na Mesopotâmia, no Egito e Tessalônica, também datadas do
século 4", aponta Alves.
• Sincretismo
Para as
religiões de matriz africana, Ogum é o orixá do ferro, da guerra, da caça e da
agricultura. No processo de sincretismo ocorrido no Brasil, os escravizados
praticantes de religiosidades como o candomblé acabaram elegendo São Jorge para
representar o orixá.
"O
sincretismo com santos católicos foi uma estratégia de sobrevivência dos
africanos e seus decendentes, uma tentativa de recriação de suas práticas em um
contexto em que não tinham a liberdade", explica à BBC News Brasil o
historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em
São Paulo, e membro fundador do Coletivo Navalha.
"Os
escravizados eram proibidos de celebrarem seus cultos e suas tradições, então
eles acabavam adotando alguns santos para continuar exercendo suas crenças,
suas festividades", contextualiza Maerki. "Eles criavam seus altares
e colocavam as estátuas dos santos católicos neles, mas guardavam as
representações, as imagens de suas divindades, escondidas por detrás dos santos
católicos. Assim começou o sincretismo: na aparência, eles estavam celebrando
os santos cristãos, mas muitas vezes estavam celebrando a divindade
deles."
Watanabe
analisa que, historicamente, contudo, o destaque para a figura do santo em
detrimento a do orixá contribui para "um movimento de embranquecimento,
uma tentativa de esvaziamento, de silenciamento e morte da cultura negra".
E que, portanto, desde os anos 1980, há um esforço interno por muitas das
lideranças de umbanda e candomblé para tentar desassociar essa relação
sincrética com figuras originalmente católicas.
"Como
historiador posso afirmar que esse culto aos santos católicos [por parte de
religiões africanas] é anterior à própria diáspora. Alguns reinos da África
Central foram reinos católicos que incorporaram a religião cristã, e nessa
incorporação existiu algum tipo de ligação [de orixás] com santos
católicos", exemplifica ele.
Watanabe
ressalta que o "encontro de São Jorge com Ogum" não foi obra do acaso
ou um capricho aleatório. "Isso transformou o santo católico em algo que
seja outra coisa. Existiu uma escolha. Jorge, de fato, está caçando, está com
arma em punho, pronto para espetar o dragão, levar para casa. Aí liga ao orixá
Ogum, que é o primeiro caçador. Ao mesmo tempo a gente pode ter a ideia de que
Ogum está guerreando, e São Jorge está guerreando com o dragão…", diz.
Ele
lembra que Ogum tem uma importância muito grande — e por isso pode explicar por
que São Jorge se tornou uma figura tão associada à cultura afrobrasileira.
"Os orixás extremamente ligados à guerra são os orixás mais famosos do
Brasil, justamente porque eles foram muito cultuados onde o sistema escravista
cerceava, matava, estuprava, condenava as pessoas africanas à morte material e
simbólica", pontua o historiador.
E no
caso da umbanda, "uma religião afrodiaspórica de base de entendimento de
mundo centro-africano", há um outro ingrediente a ser considerado: o fato
de Ogum ser ferreiro. Segundo Watanabe, na cultura iorubá, era uma profissão
vista como da realeza. "Acho que isso é primordial, explica porque Ogum é
considerado o rei da umbanda", conclui.
• No mundo da lua
Desse
sincretismo nasceu, no Brasil, uma das lendas mais bonitas ligadas a São Jorge.
Como Ogum é o orixá da força masculina, ele precisaria buscar a feminilidade na
lua, para garantir seu equilíbrio. O folclore se encarregou de criar a imagem
do santo guerreiro cavalgando pelo terreno lunar — e as manchas que podem ser
vistas no astro seriam rastros do próprio montado em cavalo branco.
"A
figura de Jorge está viva, presente e perene no imaginário do povo, na
religiosidade popular, no folclore, no esporte, na cultura e na
geografia", comenta Alves. "Desde pequenos, nossos pais e avós
apontavam para a lua cheia e nos mostravam São Jorge montando em seu cavalo
branco, espada em punho, em luta contra o dragão."
"A
lenda do santo que mora na lua tem sua origem na história do dragão que, depois
de devorar todos os animais e os jovens de um certo reino, só lhe restava
devorar a filha do rei", conta o escritor. "Prestes a ser
sacrificada, ela foi libertada por um corajoso cavaleiro que conseguiu ferir o
dragão com sua espada."
Ferido,
o dragão fugiu para a lua. "Em árdua batalha, o valente guerreiro o
perseguiu por terra e pelo ar até a lua, onde ocorreu o embate final. Imensas
crateras marcam o campo da batalha e da morte do dragão", narra ele.
"Reza
a lenda que São Jorge decidiu morar na lua para proteger a humanidade de todos
os perigos e maldades", diz Alves.
• 'Cassação' pela Igreja
Embora
seja celebrado no 23 de abril, São Jorge desde 9 de maio de 1969 não integra
mais o santoral oficial da Igreja Católica. Isso não significa que ele tenha
deixado de ser reconhecido como santo, ou que sua celebração seja proibida —
mas já houve confusão nesse sentido.
De
acordo com o Vaticano, São Jorge segue considerado o "padroeiro dos
cavaleiros, soldados, escoteiros, esgrimistas e arqueiros". E é um santo
que costuma ser invocado "contra a peste, a lepra e as serpentes
venenosas". Contudo, "na falta de notícias sobre a sua vida, em 1969,
a Igreja mudou sua celebração: de festa litúrgica, passou a ser memória
facultativa, sem, porém, alterar seu culto".
Foi um
movimento capitaneado pelo papa Paulo 6º (1897-1978), na esteira do Concílio
Vaticano 2º — na época, foram retirados do santoral muitos personagens que
careciam de comprovação histórica, mas em respeito às tradições, principalmente
nas localidades em que tais figuras têm uma devoção popular mais forte, a
memória e as celebrações se tornaram facultativas.
Segundo
Alves, a revisão deixou "em evidência os santos de comprovada
historicidade e que exerceram grande influência na propagação da fé e na vida
da Igreja por meio de sua ação missionária e apostólica". "Embora o
nome de São Jorge não conste no santoral da Igreja, seu culto e festas
permanecem vivos, não apenas nas localidades e entidades que levam seu nome o
cultuam como patrono, mas também seu nome é lembrado em âmbito da Igreja
universal", salienta o escrito.
São
Jorge segue, portanto, um santo do catolicismo. Mas essa exclusão do calendário
oficial da época suscitou confusões — e muitos interpretaram que o santo havia
sido "cassado" pela Igreja.
Também
houve quem entendesse essa exclusão do santo no rol daqueles que mereciam
celebração oficial como uma tentativa da Igreja de minimizar a importância de
uma figura que havia se tornado tão forte para as religiões de matriz
africanas.
O padre
Eugênio Ferreira de Lima contou à BBC News Brasil que, naquela época, alguns
sacerdotes católicos, "talvez por uma compreensão equivocada" da
decisão do Vaticano, "promoveram a retirada de imagens [do santo] das
igrejas". "Muitas foram levadas pelos católicos para suas casas. Por
onde passei [ao longo da carreira], recuperamos algumas dessas imagens [que
foram reinstaladas nos altares]", diz Lima, que como pároco já atuou em
cinco cidades.
"Alguns
santos não tinham dados históricos seguros e não se promoveu mais o seu culto.
Mas já estavam no imaginário do povo, e isso não se tira por decreto",
explica ele. "Como vivíamos aqui no Brasil a ditadura militar, com muitas
cassações de políticos, se dizia que os santos foram cassados. Espalharam
boatos sobre a cassação de São Jorge, mas isso não houve."
Para
não deixar dúvidas, São Jorge foi um dos tantos santos enaltecidos pelo papa
João Paulo 2º (1920-2005) nas celebrações do Jubileu em 2000 — e isso foi visto
por observadores como uma espécie de reabilitação oficial da figura.
"São
Jorge é reconhecido como o santo que nos inspira e ajuda na luta contra os
dragões de cada dia. É padroeiro de muitas paróquias e comunidades por esse
Brasil, padroeiro dos corintianos, do estado do Rio de Janeiro e da
Inglaterra", cita padre Lima. E, lembrando sua apropriação pelas religiões
de matriz africana, ele pede "que São Jorge nos ajude a vencer os dragões
da intolerância religiosa, do racismo e da violência".
Fonte:
BBC News Brasil

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