sábado, 26 de abril de 2025

Onde está a indignação pela violência sexual ‘sistemática’ aos palestinos?

No mês passado, um relatório para o Conselho de Direitos Humanos da ONU afirmava – como sustentam os palestinos há muito tempo – que, desde 7 de outubro, Israel tem empregado sistematicamente a violência sexual e os crimes de gênero contra mulheres, homens e crianças palestinas.

A investigação, publicada junto com testemunhos comoventes de sobreviventes e testemunhas, representantes da sociedade civil, acadêmicos, advogados e especialistas em medicina durante uma audiência de dois dias realizada em Genebra, chegou a várias conclusões-chave que, na minha opinião, exigem atenção e ação imediatas em nível mundial.

Em primeiro lugar, desde 7 de outubro, o uso da violência de gênero por parte das forças israelenses aumentou drasticamente tanto em escala quanto em intensidade e se tornou uma prática “sistemática”. Esses crimes tornaram-se uma ferramenta de opressão coletiva para destruir famílias e comunidades palestinas por dentro: uma tática tomada de outras campanhas de violência étnica e genocídio em lugares como Bósnia, Ruanda, Nigéria e Iraque, onde os corpos das mulheres se transformaram em campos de batalha.

Em segundo lugar, os centros de detenção militar israelenses se tornaram epicentros dos tipos mais atrozes de violência sexual. Além das imagens, amplamente divulgadas, de prisioneiros palestinos nus em Gaza, o relatório colheu testemunhos de locais como Sde Teiman, onde os presos, desprovidos de proteção legal e longe do olhar da mídia, enfrentaram estupros, humilhações sexuais e tortura. Em alguns casos, como o do médico Adnan Al-Bursh, os presos morreram, segundo consta, como consequência direta dos abusos sexuais que sofreram enquanto estavam sob custódia.

Em terceiro lugar, o relatório documenta a proliferação da violência de gênero contra as palestinas no ambiente digital. Grupos vulneráveis, especialmente mulheres e jovens, enfrentaram vergonha, doxing (ação de buscar e publicar informações privadas ou sobre a identidade de uma pessoa na Internet, geralmente com a intenção de causar-lhe dano) e a exploração de sua orientação sexual ou comportamento privado como ferramentas de coerção e intimidação.

Em quarto lugar, o relatório aponta que o uso da violência de gênero não é exercido apenas pelos soldados; os colonos israelenses, que muitas vezes atuam sob a proteção do exército, assediam sexualmente as mulheres palestinas na Cisjordânia, explorando os papéis tradicionais de gênero dentro da sociedade palestina como método de opressão.

As conclusões do relatório, elaborado pela Comissão de Investigação da ONU sobre o Território Palestino Ocupado, não se baseiam unicamente nos relatos de sobreviventes, mas também nas publicações nas redes sociais dos próprios soldados israelenses. Os perpetradores documentam com orgulho seus atos “heroicos” de vingança masculina: vasculham as gavetas das mulheres palestinas, posam com suas roupas íntimas e rabiscam pichações misóginas no interior das casas ocupadas de Gaza. Embora grande parte desse conteúdo tenha sido posteriormente apagado das plataformas sociais, no relatório da ONU ele permanece arquivado para a posteridade.

No entanto, apesar de esses vídeos e imagens serem inegavelmente censuráveis e criminosos, empalidecem em comparação com a violência sexual mais extrema documentada no relatório. Os despimentos públicos forçados e as revistas invasivas, a retirada forçada do hijab das mulheres, a filmagem da degradação sexual sob ameaça de mais violência, as ameaças de estupro e os estupros como forma de tortura: tudo isso não constitui apenas um atentado contra a dignidade, mas uma profunda agressão física e sexual.

O relatório afirma que tanto mulheres quanto homens foram alvo desses crimes, e implica os meios de comunicação israelenses em sua normalização ao receber comentaristas e apresentadores que falavam do uso da violência sexual como ferramenta legítima na guerra. Por exemplo, destaca os comentários que Eliyahu Yosian, do Instituto Misgav, fez no Canal 14, de extrema-direita, ao dizer: “A mulher é um inimigo, o bebê é um inimigo e a mulher grávida é um inimigo” (depois que o Canal 14 publicou o clipe na Internet, ele recebeu mais de 1,6 milhão de visualizações).

De acordo com os testemunhos apresentados à comissão, muitas vezes as mulheres vítimas acham extremamente difícil denunciar os abusos. Um exemplo notável é o de um posto de controle militar israelense perto de Hebron, onde um soldado se exibia habitualmente para as mulheres palestinas que passavam por ali. Uma estudante que tivesse que passar pelo posto de controle a caminho da escola provavelmente optaria por guardar silêncio sobre esses abusos, já que denunciá-los significaria quase com certeza que teria que interromper seus estudos.

Os ataques contra os centros de saúde reprodutiva em Gaza constituem outro aspecto dos crimes de guerra de Israel por motivos de gênero. Segundo o relatório, as forças israelenses atacaram sistematicamente a infraestrutura de saúde materna de Gaza, os centros de tratamento da fertilidade e, de fato, qualquer instituição relacionada à saúde reprodutiva. As conclusões também incluem casos de atiradores de elite que dispararam contra mulheres grávidas e idosas, e de médicos que tiveram que realizar cesarianas sem desinfetantes nem anestesia.

Com base nas conclusões do relatório, Navi Pillay, diretora da Comissão de Investigação, declarou: “A única conclusão possível é que Israel utilizou a violência sexual e de gênero contra os palestinos para infundir medo e perpetuar um sistema de opressão que mina seu direito à autodeterminação”.

<><> Um duro despertar

Ao contrário do relatório paralelo da ONU publicado em março de 2024, que investigava os crimes de gênero cometidos por militantes do Hamas contra mulheres israelenses em 7 de outubro, o relatório atual mal recebeu cobertura da mídia, tanto em Israel quanto no restante do mundo.

Acontece que nem mesmo a dramática escalada de crimes de gênero contra mulheres e meninas durante a guerra, e a determinação inequívoca de que o uso desses métodos por parte de Israel era sistemático e não meros atos isolados cometidos por soldados, foi suficiente para que as organizações de mulheres israelenses ou internacionais se manifestassem, condenassem ou sequer solicitassem que a questão fosse examinada com urgência. Nem mesmo o fato de que o relatório foi publicado poucos dias antes do Dia Internacional da Mulher bastou para impulsionar seminários online, simpósios ou conferências em universidades ao redor do mundo, nem debates de urgência em comissões parlamentares para promover os direitos das mulheres.

Aqui, em Israel, as reações variaram entre o silêncio e a negação absoluta. “A ONU apoia os terroristas de Nukhba e o Hamas”, afirmou Hagit Pe’er, presidente da Na’amat, a maior associação de mulheres de Israel. “Trata-se de um relatório com um forte teor antissemita. É uma tentativa de criar uma realidade alternativa e invertida em resposta ao massacre sexual perpetrado pelo Hamas contra mulheres e homens israelenses, enquanto as instituições internacionais, incluindo as organizações de mulheres de todo o mundo, mantêm um silêncio gritante. Estas são as mesmas organizações que condenam qualquer violência sexual, a menos que as vítimas sejam mulheres israelenses e judias.”

Também expus as conclusões do relatório à professora Ruth Halperin-Kaddari e à ex-promotora militar-chefe Sharon Zagagi-Pinhas, do Projeto Dina, uma iniciativa encarregada de documentar a violência sexual do Hamas. Elas também o descartaram por considerá-lo “mais um passo na campanha para deslegitimar Israel”.

“Desde sua criação em 2020, [a Comissão de Investigação da ONU sobre o Território Palestino Ocupado] adotou um viés unilateral e anti-Israel na grande maioria de suas atuações, o que se reflete claramente no presente relatório”, afirmaram Halperin-Kaddari e Zagagi-Pinhas em resposta à minha pergunta.

“Como podem ser comparadas as alegações deste relatório com os brutais crimes de violência perpetrados sistemática e deliberadamente pelo Hamas em 7 de outubro: atos horríveis de estupro, mutilação genital e violência sexual infligida até mesmo a cadáveres?”, continuaram. “É absolutamente lamentável que, em vez de tomar medidas para incluir o Hamas na lista negra de organizações que cometem violência sexual como arma de guerra, a Comissão tenha escolhido um caminho diferente”.

“Quanto às próprias acusações”, acrescentaram, “ao contrário do Hamas – que nega sistematicamente seus crimes –, se alguma dessas denúncias tiver fundamento, as autoridades israelenses estão obrigadas a investigá-las devidamente”.

Como muitas mulheres em Israel, durante esta guerra eu também experimentei um duro despertar feminista. Perdi companheiras palestinas que não gostaram da minha condenação da violência do Hamas contra as mulheres israelenses em 7 de outubro, e perdi amizades judaicas que consideravam as mulheres de Gaza alvos legítimos.

Após uma dolorosa reflexão, entendi a força e a coragem que nós, mulheres, devemos cultivar para denunciar, de forma inequívoca, qualquer violência contra o corpo de uma mulher como um fato abominável, seja ela palestina ou israelense. Não deveria ser necessário explicar que nenhuma mãe deveria ser assassinada – tanto se seu filho é ruivo quanto de pele escura, de olhos verdes ou castanhos – e que nenhum bebê deveria ser alimentado com a insaciável máquina de guerra de homens ávidos por poder e riqueza.

As mulheres – jovens e idosas, mães e filhas, feministas e até mesmo aquelas que não se definem como tal – devemos levantar a voz e dizer: chega de guerra. Esta pátria não será libertada em nossos corpos, e não vale a pena construir nenhum futuro a partir dos escombros do naufrágio de nossos ventres.

•        ‘Shukram, até amanhã. O vínculo entre o papa e os palestinos

Dentro da igreja em Gaza, devastada pela guerra, uma foto de Francisco repousa agora em frente ao altar, emoldurada por tulipas amarelas e brancas – as cores do Vaticano – e uma fita preta de luto. Quase todos os dias, o Papa Francisco ligava para a paróquia, mesmo com as bombas caindo e até mesmo de sua cama de hospital.

"Como você está hoje? O que comeu?", ele perguntava. Em uma gravação em vídeo, um Francisco visivelmente enfraquecido acena gentilmente para os do outro lado da linha. "Nosso amado papa", eles responderam, assegurando-lhe suas orações. "Shukran. Até amanhã", ele respondeu.

“Estou profundamente triste”, disse Hazem Saba, um cristão da Cidade de Gaza. “Ele realmente se importava com o nosso sofrimento. Sempre senti que seu amor pela Palestina e seu anseio pela paz eram sinceros. Suas palavras nos fizeram sentir vistos, apoiados”.

“Sua lealdade tocou a todos nós – cristãos e não cristãos”, acrescentou Saher Kawas, ex-assessor de imprensa do Patriarcado Latino. “Ele era revolucionário, cheio de compaixão. Este papa se sentia próximo do povo. Um pouco como Jesus”.

<><>Uma visita histórica à Cisjordânia

Essa compaixão definiu o papado de Francisco. Durante uma viagem à Terra Santa em 2014, ele visitou Belém, na Cisjordânia ocupada, onde o muro de separação paira sobre a cidade. "Não estava no itinerário oficial", lembrou Kawas. "Mas ele parou e rezou diante do muro".

O momento se tornou icônico: uma imagem solene de Francisco, cabeça baixa, olhos fechados, testa apoiada no concreto cinza.

“O papa tocou mais do que apenas o muro”, escreveu o pastor luterano Munther Isaac em seu livro de 2020, O Outro Lado do Muro. “Ele tocou a feiura da ocupação e da guerra, as profundezas da nossa dor. Para nós, cristãos palestinos, essa imagem está gravada em nossa memória. E quando esse muro cair – não se, quando – nos lembraremos dessa oração como um ponto de virada”.

Um ano depois, o Vaticano reconheceu oficialmente o Estado da Palestina – poucos dias após canonizar dois santos palestinos.

<><> "Não há paz sem justiça"

A atenção de Francisco para Gaza só aumentou em meio à guerra em curso travada por Israel. "Sem justiça, não há paz", repetiu. Na véspera de Natal passado, ele chamou o conflito de "crueldade, não guerra".

Dias antes, ao inaugurar o presépio do Vaticano, ele colocou um menino Jesus envolto em um keffiyeh – o lenço tradicional que simboliza a identidade palestina. “Aos olhos de alguns especialistas, o que está acontecendo em Gaza traz consigo sinais de genocídio”, escreveu ele em um livro a ser lançado. “Isso merece uma análise mais atenta”.

No domingo de Páscoa, um dia antes de sua morte, Francisco fez um apelo final, denunciando a “desastrosa e vergonhosa situação humanitária” em Gaza e alertando sobre uma crescente onda de antissemitismo. “Peçam um cessar-fogo, libertem os reféns e ajudem um povo faminto que sonha com a paz”, disse ele – uma mensagem de despedida que reconheceu a complexidade e a urgência da crise.

•        A dor do mundo árabe e muçulmano pela morte de Bergoglio: “Ele sabia nos escutar”

Um chefe de Estado justo, um homem honesto e humilde, um líder religioso aliado e não inimigo, apesar das diferenças. É assim que o Papa Francisco era percebido pelos líderes do mundo árabe muçulmano, muitos dos quais foram recebidos no Vaticano nos últimos doze anos. As declarações institucionais que têm circulado da África ao Oriente Médio nestas últimas horas e as mensagens de condolências, não são circunstanciais. Elas são a culminação de uma jornada iniciada por Francisco nos primeiros anos de seu pontificado, que o levou a realizar a primeira visita da história a um país do Golfo. Em 4 de fevereiro de 2019, em Abu Dhabi, foi lançada a pedra fundamental do diálogo inter-religioso contemporâneo: o documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum. As assinaturas ao pé do documento são as de Bergoglio e do Grande Imã da mesquita de Al Azhar, Ahmad al Tayyib.

O texto promove o respeito mútuo, a tolerância e a rejeição da violência em nome da religião. Aquela passagem histórica levou a ONU a reconhecer o dia 4 de fevereiro como o Dia Internacional da Fraternidade Humana.

Sua primeira viagem ao pequeno estado dos Emirados - na metade de seu pontificado - terminou com outro evento memorável: a celebração da missa no estádio Zayed Sports City, em Abu Dhabi. Mas Bergoglio voltaria ao Golfo três anos depois, durante sua visita ao Bahrein, onde participou do Fórum para o Diálogo Oriente-Ocidente. Essa visita também é lembrada como uma das etapas com que tentou consertar as divisões internas no mundo muçulmano entre xiitas e sunitas.

Um desejo que também nasceu de seu encontro no Iraque em 2021 com o aiatolá Ali al-Sistani em Najaf, com quem tinha boas relações. Em 2016, ele também havia recebido o ex-presidente iraniano Hassan Rouhani no Vaticano.

<><> Amizade

No mundo árabe, os apertos de mão e as palavras de Bergoglio entraram para a história, assim como sua amizade com o grande imã da mesquita de Al Azhar, a mais alta cúpula do pensamento teológico islâmico sunita. “O Papa Francisco encarnou um compromisso incansável na defesa dos marginalizados, no apoio aos direitos humanos e na promoção da paz mundial. Suas posições sempre eram inspiradas por valores morais e espirituais profundos compartilhados entre as religiões”, disse o Grande Imã Ahmad al Tayyib em suas condolências.

De acordo com al Tayyib, as relações entre Al Azhar e a Santa Sé atingiram níveis de cooperação sem precedentes. A distensão institucional começou com sua viagem ao Egito em 2017, onde ele participou da Conferência Internacional pela Paz. De fato, o Grande Imã anunciou que Al Azhar enviaria uma delegação de alto nível para o funeral de Francisco.

Em sua agenda política, o pontífice se concentrou muito em denunciar o fundamentalismo religioso em todas as religiões, encontrando um terreno comum onde agir. Ele foi uma figura de grande confiança devido à sua abordagem desconstruída de lógicas neocoloniais de que os líderes ocidentais costumam ser portadores. Nesse aspecto, suas origens jogaram a seu favor. “Ele mesmo reconheceu aquele processo de desumanização que houve por parte do mundo ocidental em relação a determinados países árabo-islâmicos ou certas áreas do mundo”, explica Yassine Lafram, presidente da Ucoii - União das Comunidades Islâmicas da Itália.

Além disso, suas palavras sobre Gaza e sobre o sofrimento do povo palestino não passaram despercebidas.

Bergoglio chegou ao ponto de se questionar publicamente se estava ocorrendo um genocídio em Gaza, uma frase que atraiu muitas críticas, mas também atestados de estima. Mas seu apoio à causa tem raízes mais distantes.

Em histórico encontro com Abu Mazen em 2015, o Vaticano havia reconhecido o estado da Palestina.

<><> A comunidade na Itália

“Tivemos uma boa relação desde o início. Reconhecemos sua coragem em se expor. Não é fácil falar de paz e repacificação como ele fez”, acrescenta Lafram, que em algumas audiências com o pontífice acompanhou delegações do mundo islâmico fascinadas por sua “abertura à escuta”.

Francisco reconhecia no interlocutor “um portador de valores e princípios, uma pessoa digna de ser ouvida. E ele teve a coragem de usar palavras que, na minha opinião, foram eloquentes, indo além do que é politicamente correto e reconhecendo aqueles que são os grandes problemas entre o mundo ocidental e o mundo árabe-islâmico”. Independentemente de quem será seu sucessor, o objetivo dos líderes religiosos não é dispersar o legado de Bergoglio. “Ele deixou uma marca indelével na história da igreja, mas também de toda a humanidade. Portanto, é importante manter fé àquelas que foram as suas posições fortes, apesar dos ataques que ele continuamente sofreu”.

•        Da amizade ao rancor: a difícil relação em ter o papa e o mundo judaico. Por David Assael

A relação entre o papa Francisco e o mundo judaico foi marcada pela contradição, um teste decisivo para medir a coerência da Igreja Católica com os princípios reformistas estabelecidos pelo Concílio Vaticano II. Por um lado, a viagem de 2014 à Terra Santa, que foi seguida pela oração pela paz nos jardins do Vaticano com Abu Mazen e o então presidente israelense Shimon Peres, signatário dos Acordos de Oslo. Uma viagem na qual Bergoglio rezou no Muro das Lamentações e, primeiro papa da história, depositou uma coroa de flores no túmulo de Theodor Herzl.

E, novamente, a viagem a Auschwitz em 2016, onde Bergoglio pediu a Deus a graça de fazê-lo chorar diante daquele abismo de horror. Depois, em 2020, a abertura dos arquivos do Vaticano relativos ao Papa Pio XII, sobre cujo comportamento durante o Holocausto ainda pairam muitas sombras. Tudo isso acompanhado por gestos de proximidade e amizade para com as comunidades judaicas, começando com o desejo pelo feriado de Pessach dirigido à comunidade judaica romana durante um de seus primeiros angelus.

<><> A amizade com Skorka

Comportamentos que pareceram em continuidade com o compromisso dialógico de Bergoglio durante seu mandato como cardeal em Buenos Aires, onde firmou uma profunda amizade com o rabino Abraham Skorka, com quem também escreveu um livro, In cielo e in terra, por ocasião do décimo aniversário de seu pontificado.

Ao lado de tudo isso, no entanto, estava a retomada de um vocabulário diretamente extraído da tradição cristã antijudaica mais reacionária: do legalismo dos fariseus ao Deus vingativo de Moisés, contraposto ao Deus amoroso e compassivo dos Evangelhos, passando pela reintrodução de termos considerados tabus naquela Europa marcada precisamente pela experiência conciliar, como a definição de Antigo Testamento, que ainda remete à imagem do judaísmo como uma velha ferramenta da qual é preciso se desfazer.

Embora suscitando perplexidade e tomadas de posição do lado judaico, a exumação dessas expressões nunca levou à suspensão das iniciativas de diálogo, como aconteceu no caso de Bento XVI, quando reintroduziu o missal retirado por Paulo VI, no qual se pedia esclarecimento para os judeus.

O verdadeiro ponto de ruptura entre o pontificado de Francisco e as comunidades judaicas foi 7 de outubro de 2023, o dia, como se sabe, do hediondo ataque do Hamas ao sul de Israel, que deu início à atual guerra de Gaza. Não se trata apenas de um apelo abstrato à paz traduzido em uma política inaceitável de equidistância para aqueles que sofreram um ataque daquela magnitude que chocou a consciência judaica.

Acima de tudo, certos gestos, como o contínuo adiamento do encontro com as famílias dos reféns, não foram compreendidos. Mais ainda, sentiu-se a falta de diplomacia do Vaticano em exercer pressão sobre o Hamas, uma tarefa deixada inteiramente para o mundo árabe, liderado pelo tão questionado Catar.

<><> Uma comunidade de destino

Certamente terá incidido a pressão exercida pelos bispos do Oriente Médio, cujos fiéis muitas vezes percebem uma comunidade de destino com as comunidades muçulmanas, com as quais compartilham a identidade árabe. Nessas atitudes, no entanto, parecem ter despontado preconceitos da formação terceiro-mundista de Bergoglio, que têm como corolário a imagem do sionismo como forma de imperialismo, quando, no mundo judaico, ele é percebido como expressão daquele princípio de autodeterminação dos povos, que, como lembrava Golda Meir, é invocado para todos, palestinos in primis, mas negado aos judeus.

Uma abordagem que acabou reforçando aquela teologia da substituição que, ao longo dos séculos, permitiu que a Igreja se definisse de Verus Israel, por ser capaz de realizar os ideais igualitários bíblicos negados pela perfídia judaica. Justamente aqui reside o verdadeiro desafio para a Igreja do futuro: ser capaz de encontrar aquela alternativa à teologia da substituição tão procurada pelo Concílio, que abriu caminho para uma redefinição das relações com a própria origem judaica após o trauma do Holocausto.

A julgar pela forma como o Corriere della Sera, o principal jornal diário da Itália, retomou ontem de um post Facebook, atribuído inclusive ao falecido rabino Elio Toaff, a flagrante fake news segundo a qual az lideranças do judaísmo romano não teriam participado do luto.

 

Fonte: Por Samah Salaime, em 972 magazine/Domani/La Croix International, 2

 

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