Redemocratização imperfeita e inacabada, diz
Tarso Genro
Prefeito de Porto Alegre, ministro de três
pastas nos governos Lula e governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro foi um
dos protagonistas da transição do regime militar para o Estado Democrático de
Direito. Em meio à redemocratização, o dirigente histórico do Partido dos
Trabalhadores representava uma nova geração da esquerda brasileira que emergia
como força crítica tanto ao regime militar quanto ao modelo de transição
pactuada entre setores das elites políticas e militares. Em entrevista
exclusiva ao Correio, ele analisa o papel das elites políticas durante a
transição, critica a leitura conservadora da Lei da Anistia e aborda as
recentes ameaças à ordem democrática, como a tentativa de golpe em 2022. Para o
ex-ministro, a redemocratização brasileira foi inacabada e é justamente essa
incompletude que ajuda a explicar a instabilidade do presente.
·
Como o senhor avalia o
processo de transição democrática no Brasil, iniciado com a eleição de Tancredo
Neves e a posse de José Sarney?
Um processo de transição conciliado. É um
processo conciliado que significa conservar rastros do passado e propor
estradas para o futuro. Mas isso é uma determinação concreta do processo
político. Tanto um como outro podem modificar o curso do processo. Eu acho que
essa modificação foi feita positivamente aqui no Brasil, quando nós tivemos uma
transição conservadora que evitou na época, na verdade, uma guerra civil.
Então, foi um processo conciliatório que proporcionou uma transição imperfeita,
mas o resultado, na minha opinião, foi altamente positivo com a
Constituição de 1988.
·
O senhor considera que a
Constituição de 1988 foi, de fato, um marco de rutura com o regime militar, ou
ela absorveu mais continuidade do que aparenta?
Não, ela absorveu uma continuidade. Tanto é
que o papel das forças armadas no Brasil não se modificou substancialmente até
essa tentativa de golpe que ocorreu recentemente. Nesta tentativa de golpe de
2023, nós temos a oportunidade de reestruturar o pensamento político brasileiro
e o pensamento condicional do Brasil sobre o papel das forças armadas. Nenhum
país vive sem forças armadas. As forças armadas brasileiras são participativas
historicamente de todo o processo político, de formação da república, começando
pela independência, e participou de golpes e contragolpes ao longo desse
processo. Esse resultado positivo que está na Constituição de 1988 foi o máximo
possível dentro desse contexto que envolvia a América Latina a partir dos anos
1970, com o rosário de ditaduras militares que sufocavam o poder civil e
constrangiam os direitos humanos e os direitos sociais.
·
Como o partido dos
trabalhadores, no qual o senhor teve papel central, se posicionava diante da
transição liderada por Tancredo e Sarney?
Todos nós do campo da esquerda, grande parte
dela integrada no Partido dos Trabalhadores. Outra parte recém-saída ou ainda
na clandestinidade, vinha a eleição indireta como a continuidade do regime
militar. Nós nos enganamos, porque não houve uma continuidade. Aliás, houve
sim uma continuidade, mas também uma superação. Então o PP assumiu aquela
dupla posição de uma parte votar contra a constituição, mas assumir o
compromisso democrático de assiná-la, e portanto ser fiel a ela com o produto
de um processo político real, que encaminhou a questão democrática do Brasil
naquele momento de uma maneira correta, de uma maneira possível e correta.
·
Havia uma confiança da
esquerda de que o processo em curso levaria a uma verdadeira democracia, ou
prevalecia a desconfiança?
Era um sentimento ambíguo. A partir do
momento que foi convocada a constituinte, toda a esquerda participou do
processo. Parte da esquerda que estava na clandestinidade, entrando nos
partidos tradicionais e fazendo ali o seu papel político para tentar empurrar o
processo cada vez mais para frente, para um nível cada vez mais superior. Então
a esquerda não tinha uma posição unificada sobre a transição. Ela trabalhou nas
condições existentes, nos marcos existentes, até porque não foi uma
constituinte originária, foi uma constituinte derivada, e por ser derivada,
manteve, evidentemente, os vícios que estavam dentro do Congresso Nacional e já
estratificados.
·
O historiador Daniel
Aarão defende que a redemocratização brasileira foi pactuada entre elites e
exclui a justiça de transição. O senhor concorda com essa avaliação?
Concordo em parte. Foi um pacto das elites,
mas foi um pacto das elites que parte dele, teve cláusulas do movimento popular
e da participação ativa da esquerda. O fato de nós termos constituído naquela
época, uma constituição tipicamente social-democrata é uma comprovação disso.
·
Ao ver do senhor, a
ausência de responsabilização pelos crimes da ditadura contribuiu para a
permanência de uma cultura autoritária nas instituições brasileiras,
especialmente nas Forças Armadas?
Sim. Acho que contribuiu. Mas temos que ver
que naquela oportunidade a correlação de forças colocava uma bifurcação, entrar
nesse processo ou melhorá-lo. Ou não entrar e deixar que as coisas rolem sob,
exclusivamente, o Pacto das Elites. Então, é evidente que essa bifurcação não
teve vencedor, ela terminou também com o Pacto Político, que foi, em última
instância, a consolidação da Constituição de 1988.
·
A influência militar se
manteve nos bastidores ao longo da Nova República? E isso se reflete ainda
hoje?
Se reflete e vai continuar. Porque é
impossível que num país em desenvolvimento, um país que não fez uma revolução
política, como foi a revolução americana, como foi a revolução francesa, ou
como foram as revoluções de outros países, de uma maneira mais complexa, é
natural que traços sejam preservados. E mais, nós temos um mundo cada vez mais
fragmentado e cada vez mais ameaçador para uma segurança nacional e estado
pleno do regime democrático. Isso vai exigir que se reconsidere, que se
reestruture, qual é a visão de segurança de Estado que nós temos, qual é o
papel das forças armadas, qual é a visão de segurança nacional num pacto
democrático e como é que se defende não só a soberania popular, mas a soberania
territorial. Isso aí implica um papel determinado às Forças Armadas que seja um
papel constitucional e livremente pactuado, produto de uma evolução, inclusive,
política que o país vem sofrendo e que se demonstrou plenamente com a repressão
ao golpe militar que foi o atentado recente contra o presidente Lula.
·
O senhor acredita que a
Constituição de 1988 deu espaço suficiente para a reforma do Estado ou as
amarras herdadas da ditadura limitaram as possibilidades de transformação?
Eu acho que sim. A Constituição de 1988 deu
espaço para a reforma do Estado. Mas o papel das Forças Armadas, por exemplo,
não foi substancialmente reformado. Tanto é que ficou uma dúvida — uma dúvida
que se criou num espaço de indeterminação — e determinados setores da
sociedade, especialmente juristas da direita e da extrema-direita, passaram a
enxergar as Forças Armadas como um poder moderador. Então, não houve uma linha
reta entre o julgamento da ditadura militar e a afirmação de um Estado de
Direito pleno. Na minha opinião, tivemos um avanço positivo com a reação da
sociedade brasileira e das instituições ao golpe contra o presidente Lula.
·
Durante a gestão do
senhor como ministro da Justiça, houve tentativa de institucionalizar políticas
de memória, verdades e justiças mais profundas. O que travou esse avanço?
O que travou esse avanço foi, na verdade, o
seu sucesso parcial. Nós instauramos uma justiça de transição no Brasil,
percorremos todo o país, as universidades, realizando plenárias para discutir a
transição e a reversão da não punição aos torturadores, por exemplo, e chegamos
num determinado momento em que o Supremo Tribunal Federal definiu isso,
acolhendo a tese do acordo entre as elites da época da transição, que colocaram
a cláusula, na verdade, de anistia, que anistiava também os torturadores. Não anistiava
plenamente todos os delitos políticos que a esquerda e que o campo da
resistência cometeu, mas anistiava os torturadores. Então, foi este ponto de
partida que foi sendo moldado ao longo do processo. Agora, se você me
perguntar, se essa reversão foi plena e todas as decisões foram justas eu lhe
digo que não, não foram. Isso é que eu chamo de transição imperfeita. Que teve
traços positivos que são reconhecidos mundialmente e são reconhecidos pela
sociedade brasileira.
·
O historiador Daniel
Aarão crítica o que chama de "esquerdas conciliadoras", que se
integraram à ordem em vez de propor transformações mais profundas. Como você
enxerga essa crítica?
Eu acho que não se trata de ser esquerda
conciliadora ou não conciliadora. Se trata de diferentes pontos de vista que se
tem, de como lidar com as ideias da esquerda quando a democracia sobrevive e se
afirma. E são visões diferentes. Eu desafio, por exemplo, alguma força política
de esquerda que defenda, por exemplo, a luta armada, aqui no país, e que tenha
capacidade ao mesmo tempo de ter vencidade eleições. Então, essa contradição é
uma contradição presente em toda a democracia. Mas isso não significa que a
esquerda abdicou dos seus princípios, da sua visão de mundo, da sua busca pela
igualdade. Isso aí muda, e pode mudar novamente, num sentido contrário. À
medida que se alastrarem as guerras, que se organizarem mundialmente e de forma
cada vez mais intensa o governo dos ricos, é possível que determinados setores
da sociedade em algum momento tentem recorrer também contra a violência do
Estado a uma violência política de resistência. Não estou dizendo que isso vá
acontecer, mas são períodos históricos que se sucedem e que a esquerda, que eu
chamo de esquerda pensante, ela tem que verificar a cada momento se a sua
estratégia está correta. Eu acho que a estratégia fundamental da esquerda foi
aderir ao regime democrático republicano, e, ao mesmo tempo pensionar para
melhorá-lo no sentido da igualdade, da justiça social, da garantia das
liberdades, foi uma estratégia correta embora caminhada de forma diferente do
próprio campo da esquerda, tratada do cotidiano de forma diferente. Mas acho
que essa estratégia não é mais uma tática, é uma estratégia do campo
majoritário da esquerda.
·
O modelo de
desenvolvimento econômico construído na ditadura foi mantido na Nova República,
segundo alguns analistas. Por que ele não foi reformado nem nos governos
progressistas?
Ele não foi reformado porque a correlação de
forças que se formou depois da Constituição de 1998 tornou a esquerda
minoritária. Podemos dizer que foi inabilidade da esquerda, mas toda a
estrutura política montada, a estrutura, a legislação partidária, o nível de
financiamento, seja através da corrupção, ou seja, através de meios legais das
campanhas políticas, deram vantagem sempre para os adversários da esquerda. Foi
o que ocorreu e hoje nós temos um Congresso majoritário que é extorsivo em
relação ao orçamento público. Ele funciona a partir da extorsão. Então, em
torno dessa deformidade tem que ser resolvida no campo da democracia, porque
não há outra alternativa, inclusive, a não ser resolvê-la no campo da
democracia. Democracia, até porque o circuito mundial hoje, do desenvolvimento
econômico, do sistema do capital, é um circuito mundial que privilegia as
grandes elites financeiras, globais e nacionais, como estão ocorrendo em todo o
mundo.
·
A transição brasileira é
frequentemente criticada por ter sido conduzida de cima para baixo, com pouca
participação popular e sem justiça de transição. O senhor acredita que teria
sido possível construir um outro modelo, mais democrático, mais participativo?
Sim. Eu acho que existe. Um exemplo, as duas
grandes limitações dos governos do Partido dos Trabalhadores, em geral, foi não
ter prestado atenção exatamente na colocação ao lado, não contra, mas ao lado
da democracia representativa e culturas políticas de democracia direta.
Democracia participativa em última análise, como foi e como é o orçamento
participativo em determinados lugares. Isso aí teria que ser precedido de uma
reforma política, evidentemente, para ter um equilíbrio de forças no Congresso
Nacional, mas seria um meio de desvalorizar, inclusive, aquilo que está no
preâmbulo da nossa Constituição, e que ali no artigo primeiro, item quinto, da
peça constitucional, fala da combinação da democracia direta com uma democracia
representativa. Isso foi uma limitação da esquerda, não saber tratar com essa
questão. E a segunda questão, que nós não tratamos de maneira adequada, através
de um projeto sistêmico, que não deveria ter sido abandonado em nenhum momento,
é a questão da segurança pública cidadã, que hoje está absolutamente vulnerável
em função do surgimento das estruturas de poder do crime organizado, nacional e
globalmente.
·
O Brasil viveu
recentemente uma tentativa de golpe de Estado. O senhor vê relação entre esse
episódio e a transição incompleta dos anos 80?
Há uma linha de continuidade. E essa linha
caracteriza a história brasileira, a história moderna do país, que é a sucessão
de ciclos conservadores, anti republicanos e autoritários com ciclos liberais,
democráticos e progressistas. Isso ocorre desde os anos 60, desde a eleição de
Juscelino Kubitschek, na década de 50. Esses ciclos caracterizam essa dubiedade
do desenvolvimento brasileiro, que é um país com uma legislação social, que
veio antes da Constituição de 1988, de um lado, e o não cumprimento, no sentido
pleno, dos direitos fundamentais na própria Constituição. Os ciclos confirmam,
rejeitam, modificam e vai se estruturando uma nação relativamente moderna e
desenvolvida. Isso é que vivemos hoje. A tentativa de golpe foi uma tentativa
de instaurar novamente um ciclo autoritário e tipicamente elitista, que foi
felizmente derrotado.
·
Qual a sua opinião sobre
a tentativa de golpe e sobre os pedidos de Anistia?
Essa tentativa de golpe foi uma tentativa
atípica no Brasil. Inclusive, se tivesse ocorrido, o grupo dirigente que estava
promovendo o golpe não se manteria no poder porque era um oficial que estava no
comando da tentativa, completamente desmoralizado dentro das Forças Armadas e
que não tinha apoio político dos seus pares. Essa tentativa é, na verdade, um
resíduo da ideologia de extrema-direita que governou o Brasil num certo período
do próprio golpe de 64, que não integralmente todo o período do golpe dirigido
pela extrema-direita, mas pela direita conservadora, pela direita oligárquica e
de uma maneira parcial pela extrema-direita. Esse movimento bolsonarista ele,
em outras condições mundiais, em outras condições de cultura política, ele
tenta restaurar aquela visão radical de extrema-direita que dominou o Brasil,
por exemplo, na época do governo Médici, que foi muito característica,
inclusive, em relação aos direitos humanos. O que quer dizer isso para nós?
Quer dizer que nós temos que aproveitar esta derrota para oferecer um outro
papel para as Forças Armadas na estrutura política do país, na defesa do
território, na defesa das nossas fronteiras e na defesa da construção. Isso
ainda tem que ser projetado de maneira adequada para que as Forças Armadas compreendam
a sua totalidade, que os tempos mudaram e que eles não podem voltar mais.
·
O senhor acha que as
Forças Armadas ganharam mais poder do que deveriam?
Não, eu acho que as Forças Armadas, a maioria
das Forças Armadas, não interessa quais foram os motivos conjunturais e
momentâneos. Não interessa quais são os motivos imediatos que cada setor teve,
mas, acredito que as Forças Armadas devem ser celebradas pelo comportamento que
tiveram em relação a essa tentativa de golpe, o que não é fácil. Por exemplo,
os setores de direita das Forças Armadas rejeitaram o golpe, já que a tentação
golpista sempre esteve presente na boa parte das Forças Armadas. E naquele momento
que os comandantes do exército, ainda na época do Bolsonaro, não conseguiram
formar uma nova hegemonia de direita para dar o golpe, significa que algo mudou
também nas Forças Armadas, e isso é positivo. Então eu retiro desse episódio
muito mais coisas positivas do que negativas.
·
Nos últimos anos têm
surgido, em todo o mundo, políticos populistas e extremistas, como, por
exemplo, Donald Trump, nos Estados Unidos, Milei, na Argentina e o próprio
Bolsonaro, no Brasil. Que avaliação o senhor faz sobre esses tipos de política
que trazem insegurança nacional e até mundial?
Isso é uma questão global. Nós temos hoje, na
maior democracia do mundo, o presidente extrema-direita, presidente com
tendências fascistas, que está reorganizado todo o estado americano para impor
um governo global dos ricos. Ele está tentando articular isso globalmente,
inclusive, agindo nas fronteiras ideológicas e fronteiras geográficas, como
essa aliança com o Putin. Isso é problemático e preocupante, mas é também outra
oportunidade, pois à medida que o Brasil assume uma liderança mundial, que
converse de igual para igual, ou tente conversar de igual para igual,
estabelecendo com eles negociações políticas, econômicas e culturais, cada uma
delas respeitadas reciprocamente. O Brasil pode ser um elemento chave na
política internacional, porque essa multipolaridade que o Trump está adotando
também reduz o poder da violência da extrema-direita sob o mundo. Um exemplo é
a União Europeia, que sempre foi fiel e cativa dos Estados Unidos, hoje, está
propondo uma nova política em relação às questões mundiais mais importantes e
as questões da guerra.
Fonte: Correio Braziliense
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