Na
terra do tarifaço, quem tem monopólio é sempre rei
Apesar
do ódio que os economistas ortodoxos nutrem pelas tarifas aduaneiras em todas
as suas formas, a pergunta “as tarifas funcionam?” é complexa e não tem como
ser respondida sem especificar quais tarifas, e em qual contexto.
O
argumento ortodoxo contra as tarifas é o seguinte: as tarifas aumentam o preço
dos produtos antes de chegarem ao mercado. Os vendedores vão aumentar o preço
dos produtos para recuperar esse custo dos consumidores, então é você, a pessoa
que está comprando um carro, um telefone, ou um jogo de tabuleiro, que vai
arcar com esse custo adicional.
Como
sempre acontece em economia, essa crítica tem certos pressupostos embutidos. E
como é especialmente o caso na economia neoliberal, a validade dos pressupostos
embutidos na crítica nunca é testada — na verdade, os economistas neoliberais
se orgulham de confiar em pressupostos incorretos:
O
principal pressuposto embutido no argumento ortodoxo contra as tarifas é que os
vendedores não podem se dar ao luxo de absorver o custo das tarifas. No mundo
dos experimentos mentais do neoliberalismo, a competição de mercado corrói de
tal forma os lucros dos vendedores que todas as coisas à venda têm um preço
apenas ligeiramente superior ao que custam para ser produzidas, levadas até a
loja e vendidas. Então dizem que as empresas estão ganhando uma margem de lucro
“competitiva”, cuja definição tautológica é “qualquer lucro que estejam
obtendo”. Se a Nike paga 20 dólares para fabricar um par de tênis no Vietnã,
que ela vende nos EUA por 140 dólares, esse lucro de 120 dólares é
“competitivo” — se não fosse, ele seria mais baixo, mas não é, então é isso.
A
explicação do próprio Trump para o funcionamento das tarifas não é muito
melhor. Trump já fez diversas afirmações incoerentes sobre quem vai pagar as
tarifas. Durante a campanha, ele insistiu que elas seriam de alguma forma pagas
pelos parceiros comerciais dos EUA, fosse pelos governos, ou pelas empresas
estrangeiras. Isso é literalmente falso: quando você compra alguma coisa do
exterior, o despachante aduaneiro manda a fatura para você, não para a empresa
que vendeu os produtos.
Mas os
indivíduos mais inteligentes na órbita de Trump têm uma teoria um pouco mais
fundamentada na realidade: eles alegam que os importadores, diante dos custos
tarifários, irão pressionar os vendedores, insistir para que ofereçam descontos
em seus produtos para compensar as tarifas. É assim que os custos acabariam
sendo pagos pelos vendedores estrangeiros — e se os governos interferissem para
ajudar, é assim que os governos estrangeiros pagariam a conta.
Essa
explicação tem a vantagem de pelo menos ser uma explicação, ou seja, uma série
de relações de causa e efeito que se concluiria com os custos sendo repassados
a alguém que não sejam os consumidores internos dos EUA. No entanto, essa
explicação também se baseia em (pelo menos) dois pressupostos comprovadamente
falsos: o primeiro, que os compradores teriam o poder de obrigar os vendedores
a reduzirem os preços; e o segundo, que esse poder decorreria da
disponibilidade de produtos substitutos fabricados (ou que possam ser
fabricados) nos EUA.
É
possível que exista uma economia de mercado em que os compradores podem obrigar
os vendedores a absorverem os custos das tarifas. Para que isso aconteça, os
vendedores precisam estar em uma concorrência real entre si. A concorrência
exige concorrentes: empresas que se consideram adversárias, e atacam
diretamente as margens de lucro umas das outras. Mas não é assim que as grandes
empresas funcionam nos EUA: 40 anos de aplicação leniente das normas de
concorrência produziram uma economia em que quase todos os setores são
dominados por um monopólio, um duopólio ou um cartel.
Vejamos
a Nike: ela controla 86% do mercado de calçados esportivos nos EUA. A fatia de
mercado restante pertence quase totalmente às suas principais adversárias,
Adidas e Reebok — empresas que se fundiram em 2005. É claro que a Adidas/Reebok
gostaria de ganhar uma parte da fatia de mercado da Nike, mas em mais de 20
anos de controle do duopólio sobre o setor, nem a Nike, nem a Adidas/Reebok
nunca tentaram uma estratégia séria de oferecer descontos para conquistar esse
mercado. O duopólio, em vez disso, acha mais fácil estabelecer um conluio
tácito para manipular as margens de lucro para mais de 600%.
Além
disso, talvez o conluio não seja tácito, mas explícito — quando um setor é
dominado por duas empresas gigantes, os escalões corporativos superiores dessas
empresas são dominados por pessoas que já trabalharam em ambas. Essas pessoas
não são adversárias, são colegas. Elas são inventariantes umas das outros,
compadres e comadres, integrantes dos mesmos conselhos de organizações
beneficentes e ligas esportivas amadoras. São amigos da vida inteira. Se você
acha que eles nunca conspirariam explicitamente para manipular mercados —
enquanto bebem alguma coisa no casamento de alguém, ou até no velório, digamos
— eu invejo a sua fé admirável na humanidade.
Um
mercado controlado por um punhado de empresas não tem que resolver o espinhoso
“problema de ação coletiva” de decidir sobre uma prioridade regulatória, e
então sustentar essa linha enquanto o cartel captura seus reguladores.
Isso
significa que essas empresas acabam tendo o poder de fixar preços, porque podem
manter a solidariedade enquanto aumentam os preços. Se todas aumentam os preços
juntas, os consumidores não conseguem usar a disciplina de mercado para comprar
de quem é menos ganancioso. E a mesma solidariedade que dá ao cartel o poder da
precificação também protege as empresas das sanções regulatórias, porque todas
elas contarão as mesmas mentiras aos órgãos reguladores sobre os motivos da
subida dos preços.
Isso
ficou muito nítido para todos durante os choques inflacionários da COVID-19.
Empresas como a Pepsi contaram vantagem para os acionistas de que “os
consumidores estão dispostos a pagar mais pelas nossas marcas” quando os preços
sobem muito acima da inflação, porque eles não só obrigaram os consumidores a
cobrir o aumento dos custos, eles aumentaram os preços mais do que era
necessário para cobrir os custos.
Nem
preciso dizer que a resposta da Coca-Cola não foi derrubar os preços para
capturar os consumidores da Pepsi. O que eles fizeram foi o contrário: também
aumentaram os preços muito além dos custos inflacionários. Coca e Pepsi podem
ser adversárias no papel, mas quando se trata de questões como “água com açúcar
deveria ter margens de lucro mais altas?”, elas são melhores amigas.
O mesmo
se aplica ao setor dos combustíveis fósseis, que também é altamente
concentrado, tem margens altíssimas, e elevou os preços acima da inflação
durante os choques da cadeia de suprimentos pela COVID-19, e contou vantagem
sobre isso nas conferências com investidores, sem enfrentar nenhum tipo de
investigação regulatória.
Os
economistas neoliberais têm uma resposta para esse tipo de coisa: “tudo bem”.
No mundo autorreferencial do economicismo, o que acontece é porque tinha que
acontecer, porque os mercados são eficientes, então tudo que acontece no
mercado é eficiente, e a intervenção estatal só serve para piorar. Essa teoria
dos mercados eficientes é cheia de belos processos de auto-equilíbrio que podem
ser modelados com precisão usando equações, mas apenas porque a área descarta
todos os elementos não quantificáveis da sociedade, presumindo que, uma vez que
não é possível aplicar a matemática a esses fatores qualitativos, eles
provavelmente não importam.
De
todos os fatores qualitativos que claramente importam, mas são tratados como se
não importassem, a omissão mais óbvia e gritante é o poder. É difícil medir o
poder, mas se você tentar modelar uma transação sem levar o poder em conta,
acaba chegando a lugares muito sombrios, como, por exemplo, sistemas em que as
pessoas deveriam ser autorizadas a se venderem “voluntariamente” como escravas.
Não é
nem preciso dizer que uma teoria econômica sem uma teoria das relações de poder
é um bom negócio para as pessoas poderosas. Em Careless People (Pessoas
Descuidadas), o excelente livro de memórias recém-lançado da denunciante Sarah
Wynn-Williams sobre o Facebook, ela conta como Sheryl Sandberg ficou espantada
e ofendida ao saber que outros países não permitiriam que ela comprasse um rim
para seu filho, caso ele precisasse (o filho não estava doente — ela só queria
saber caso ele algum dia ficasse doente…).
Isso é
economia sem uma teoria de poder: se eu oferecer para comprar o rim do seu
filho, e você aceitar minha oferta, chegamos a uma troca voluntária de valores
que — tautologicamente — se presume como justa. Essa transação, na verdade, não
é apenas uma forma de transferir a propriedade de um rim — é uma forma de
“descobrir” o “preço de mercado” de um rim. Não somos apenas compradores e
vendedores, somos valentes exploradores do vasto e inexplorado espaço dos
preços de mercado.
A
economia sem poder depende da tautologia: se você presume que o mercado é
eficiente, o que você ganha é aquilo que deveria ganhar. Se a Nike pode cobrar
uma margem de lucro de 600% sobre um par de tênis de 20 dólares, então esse é o
preço “natural”. Todos nessa cadeia — os trabalhadores que fazem os tênis, os
subcontratados que empregam os trabalhadores, os transportadores que enviaram
os tênis, a empresa de logística que levou os tênis até a loja, o vendedor que
registrou a compra — estão fazendo o que o mercado diz que deveriam fazer. O
preço que você paga? É o preço que você deveria pagar.
Talvez
você já tenha ouvido as pessoas dizerem que o mais importante é “fazer o bolo
crescer” (no Brasil, certamente já se ouviu bastante), e que é bobagem discutir
sobre o tamanho de uma “fatia do bolo”.
Mas
essa ideia não resiste nem a uma análise superficial. Se a sua fatia do bolo é
fina demais para você se sustentar, e o bolo cresce, mas a sua fatia não cresce
junto — ou até cresce, mas não o suficiente para você pagar suas contas, então
o tamanho da sua fatia do bolo é a única coisa que importa.
Os
economistas chamam esse problema de “conflito distributivo”, e os economistas
ortodoxos insistem que falar sobre conflito distributivo é bobagem ou
ideologia. Eles consideram que o conflito distributivo é uma armadilha que leva
pessoas bem-intencionadas a apoiarem “intervenções que distorcem o mercado” e
acabam deixando todos mais pobres.
Mas
sabe quem realmente se preocupa com os conflitos distributivos? O setor
financeiro. Pense na greve de pilotos da American Airlines em 2015, que
terminou com a concessão de um aumento aos pilotos. Quando a empresa anunciou
isso em uma conferência de investidores, um dos analistas do Citibank, Kevin
Crissey, declarou: “isso é frustrante. Mais uma vez a força de trabalho está
recebendo primeiro. Os acionistas ficam com as sobras“.
Os
investidores têm muito poder. Afinal, o capital está concentrado em poucas
mãos, e trilhões são controlados por investidores institucionais — fundos
indexados, fundos de hedge, etc — que conseguem eleger o conselho, com poder de
contratar e demitir executivos das empresas. Um conselho societário é como um
sindicato dos ricos, um pequeno comitê que exerce poder solidário para ameaçar
as empresas de consequências terríveis caso seus interesses não sejam
priorizados em detrimento dos interesses de trabalhadores e consumidores.
Não é
de admirar que as empresas se oponham de forma tão veemente a outras formas de
poder solidário, como os sindicatos de verdade — que podem transferir valor dos
investidores para os trabalhadores — e os órgãos reguladores — que podem
transferir valor dos investidores para os consumidores. Sem essas fontes de
compensação de poder, o capital unido não só pode repassar qualquer custo
adicional para trabalhadores e consumidores, eles podem também aumentar os
preços muito além de qualquer impacto inflacionário. Isso realmente “faz o bolo
crescer” — enquanto reduz à pobreza consumidores e trabalhadores.
Em
outras palavras, a Nike poderia absorver o custo das tarifas sobre seus
produtos, mas ela não vai, porque não precisa, porque faz parte de um duopólio
em conluio tácito e explícito para ferrar seus clientes e funcionários. As
grandes empresas cartelizadas que controlam a economia dos EUA, na verdade,
passaram os anos de pandemia praticando inflação por ganância, ou
“greedflation” — usando o pretexto da pandemia e seu poder monopolista de fixar
preços para aumentar os preços de tudo, do aluguel à dúzia de ovos.
Quem
tem um tipo de cérebro especialmente liso e bitolado pelo mercado vai insistir
que isso é impossível. Essas margens gigantescas são tão tentadoras que vão
inevitavelmente atrair “novos entrantes no mercado” a abrir empresas
concorrentes. Isso acontece — às vezes. Mas não quando as empresas dominantes
conseguem descobrir como construir em torno de si os cobiçados “muros e fossos”
de que fala Warren Buffett. Por exemplo, se você é a Amazon, e 90% das famílias
de classe média dos EUA pagam antecipadamente os envios pelo Prime, você pode
cobrar dos vendedores qualquer coisa que o tráfego permitir, porque eles
precisarão passar pelo seu funil para alcançar os melhores clientes. É assim
que a Amazon acabou chegando a ganhar 45 a 51% de cada dólar que os vendedores
recebem na plataforma.
Na
Trumplândia, o objetivo das tarifas é criar atrito nas importações, para que os
investidores apoiem as empresas que produzem no país. Existem muitos motivos
para querer que as coisas sejam feitas internamente. A produção interna de
recursos essenciais cria resiliência contra eventos geopolíticos (como
guerras), desastres ambientais (como as enormes tempestades que dificultam o
transporte), e eventos epidemiológicos (como pandemias). Além disso, o baixo
custo de produção no exterior frequentemente vem às custas dos direitos humanos
e da proteção ambiental: fabricar as coisas nos EUA não garante que serão
feitas por trabalhadores bem remunerados em locais de trabalho seguros que não
poluem o meio ambiente, mas fica mais fácil impor essas prioridades quando a
produção acontece dentro das fronteiras.
Mas os
investidores dos EUA passaram os últimos 40 anos destruindo com entusiasmo a
capacidade do país de fabricar coisas. Como disse o CEO da Apple, Tim Cook:
[A]
formação profissional é muito profunda aqui [na China]. E eu dou muito crédito
ao sistema educacional por insistir nisso, enquanto outros deixavam de lado o
ensino profissionalizante.
Os EUA
não têm trabalhadores qualificados suficientes para produzir as máquinas que
fabricam os produtos que os americanos querem comprar. Novos trabalhadores
podem ser treinados, mas adquirir essas qualificações profissionais é um
processo que pode levar muitos anos. Para que eles consigam internalizar
novamente sua produção industrial, precisam de um investimento público
substancial e contínuo em capacitação: financiamentos e bolsas para capacitar
trabalhadores e investimento em pesquisa básica e outros produtos fora do
mercado, necessários para recuperar a base de produção dos EUA.
Os EUA
deveriam fazer tudo isso, mas se quiserem tentar, precisam ter como base um
sistema de governo robusto, previsível e organizado. Precisam do tipo de
processo confiável e organizado que faz as pessoas se sentirem seguras para
mudar de área e voltar a estudar. Precisam importar produtos do exterior que
possam ser usados para reiniciar a capacidade fabril do país e substituir essas
importações.
• ‘O tarifaço de Trump é um presente para
gigantes como a Nike.’
Mas em
um mercado como esse: dominado por monopólios que não precisam temer os órgãos
reguladores federais, aparelhados por Trump; onde esses mesmos órgãos foram
capturados pelos cartéis; e onde o caos semeado pelo DOGE de Elon Musk espalha
um terror existencial sobre o futuro, as tarifas vão apenas aumentar os preços,
sem nenhum tipo de internalização ou capacitação.
O
tarifaço de Trump é um presente para gigantes como a Nike, que têm a
sofisticação logística para explorar brechas, exigir preços diferenciados de
transportadores e despachantes, e repassar o custo para seus clientes. Qualquer
empresa nacional que tente competir com a Nike não terá essas mesmas vantagens.
Para a Nike — e outras empresas dominantes — as tarifas de Trump são apenas
mais um fosso, outro obstáculo que elas podem ultrapassar, mas que impõe aos
seus concorrentes menores uma freada brusca.
As
tarifas de Trump e o enfraquecimento da proteção à concorrência e ao direito
dos consumidores são uma receita para transferir bilhões de dólares do povo dos
EUA para os investidores das maiores empresas. Isso ainda vai resultar em um
enorme colapso econômico, mas as empresas atualmente mais lucrativas estarão
mais preparadas para sair por cima dos escombros após o desastre.
Uma
possível luz no fim do túnel para os americanos é que um punhado de gente no
topo da pirâmide está extremamente irritada com esse plano.
A
Aliança de Novas Liberdades Civis é uma organização sem fins lucrativos que
pratica litigância de impacto. Ela foi fundada por Leonard Leo, o mentor da
Sociedade Federalista, uma organização conservadora de onde vieram cinco dos
atuais nove ministros da Suprema Corte dos EUA. Foram eles que derrubaram no
ano passado o precedente que dava autonomia às agências reguladoras, e agora
estão processando o governo Trump contra as tarifas.
Como
escreve Corey Robin, as tarifas têm um longo histórico de fragmentar alianças
conservadoras, “a vanguarda do conflito político no século XIX”. Robin diz que
o movimento conservador passou anos transferindo do Congresso para o presidente
o poder de instituir tarifas aduaneiras, sem nunca imaginar que, um dia, um
presidente poderia comandar uma estratégia tarifária de Rei Louco. Robin diz
agora que
A
tarifa será a principal questão que levará a direita judicial a confrontar o
executivo empoderado que eles turbinaram de tantas outras formas.
No ano
passado, Rick Persltein apontou que a verdadeira relevância do Projeto 2025
estava em suas contradições, as orientações políticas irreconciliáveis e
mutuamente excludentes encontradas em suas páginas.
Perlstein
disse que essas contradições eram um mapa das linhas de fratura na coligação de
Trump. O tarifaço de Trump claramente representa uma importante fissura, e é
preciso aproveitar essa oportunidade quando ela se apresenta.
Fonte:
Por Cory Doctorow, em The Intercept
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