O
inferno dentro dos galpões do e-commerce
No dia
8 de abril de 2025, o presidente Lula visitou o centro de distribuição do
Mercado Livre em Cajamar (SP) e celebrou, com entusiasmo, os investimentos da
empresa, símbolo, segundo ele, da vitalidade econômica do país. No entanto, a
cena real não era de festa: naquele mesmo espaço, pouco mais de um ano antes,
Luiz Felipe – jovem trabalhador terceirizado – tirou a própria vida minutos
após ser demitido. O corpo, segundo colegas, permaneceu ali, encoberto por uma
lona enquanto os demais eram forçados a continuar a
jornada como se nada houvesse acontecido. A empresa negou. Os relatos dizem o
contrário. O trabalho não parou. O lucro, tampouco.
Enquanto
o governo comemora os R$ 34 bilhões em investimentos da plataforma,
trabalhadores denunciam metas desumanas – até 120 entregas por hora –, calor
sufocante, assédio moral e o esgotamento físico e psíquico como rotina. O
Mercado Livre, segunda empresa mais valiosa da América Latina, dobra seu lucro.
Já seus funcionários, muitos nem recebem um salário mínimo. Lula disse ter
visto “alegria” nos rostos. Contudo, o que ali se vê é a face limpa da máquina
suja da exploração: a estética da eficiência encobrindo o suor, o medo e o
luto.
A
visita presidencial ao centro logístico do Mercado Livre não é apenas um evento
midiático – é um símbolo revelador da naturalização da precarização e da
estetização da exploração. Aproveitando esse episódio emblemático, lançamos luz
sobre aquilo que costuma permanecer nas sombras: as condições concretas de
trabalho nos galpões logísticos das plataformas de e-commerce.
Entre o clique e o cansaço, este ensaio busca expor as engrenagens ocultas do
capitalismo digital e os novos rostos da exploração que movem, silenciosamente,
a “economia da velocidade”.
***
Vivemos
a era da mercadoria veloz. Um clique no aplicativo, e uma cadeia invisível de
armazenagem, triagem, deslocamento e entrega se colocam em movimento. Tudo
parece simples. Tudo parece leve. Mas essa leveza é enganosa: ela repousa sobre
a intensificação brutal do trabalho em galpões logísticos que cercam nossas
cidades como fortalezas do capital digital.
A
estética da instantaneidade – do rastreamento em tempo real, da entrega no
mesmo dia, da vitrine virtual permanentemente abastecida – exige uma
infraestrutura oculta. Essa infraestrutura não é feita apenas de inteligência
artificial, robôs e softwares. É feita, sobretudo, de braços, pernas e espinhas
tensionadas: trabalhadores e trabalhadoras que movem, embalam, separam e
etiquetam, dia e noite, em jornadas marcadas pela vigilância e pela aceleração.
O
processo logístico dentro desses galpões segue etapas rigorosas e interligadas:
recebimento, triagem, armazenagem, separação (picking), embalagem (packing)
e expedição. Quando as mercadorias chegam ao centro de distribuição, passam por
conferência e triagem – onde são checadas, escaneadas e redirecionadas para o
armazenamento. No momento do pedido, o sistema automatizado aciona um
trabalhador para localizar o produto no galpão. A tarefa é guiada por um
coletor de dados portátil que indica, em tempo real, onde está o item, qual o
trajeto mais curto e em quanto tempo ele deve ser apanhado. Após a coleta, o
produto é levado para a área de embalagem, onde outro trabalhador o acondiciona
segundo padrões rígidos de proteção e eficiência. Por fim, a mercadoria é
separada por rota e destino e enviada à expedição, onde veículos aguardam para
cumprir as entregas em ritmos cada vez mais estreitos. Todo esse processo é
cronometrado, metrificado e constantemente recalibrado por algoritmos.
Nos
bastidores das grandes plataformas de e-commerce, como Mercado
Livre, Shopee, Magalu, Aliexpress, Amazon e tantas outras, opera-se uma
reinvenção das formas de exploração do trabalho. Galpões logísticos funcionam
como fábricas sem chão de fábrica – espaços onde o tempo do capital se sobrepõe
a qualquer noção de tempo humano. A cada nova encomenda, o trabalhador é
convocado a correr mais rápido, render mais, falhar menos. Não há linha de
montagem, mas há sensores, metas, escâneres e algoritmos. O corpo se curva à
lógica da precisão.
A
logística, nesse contexto, não é um detalhe técnico: é um dos aspectos
indispensáveis do capitalismo contemporâneo. É por ela que o
capital se move, se realiza, se valoriza. A rotação contínua de mercadorias,
comandada por softwares e plataformas, acelera a circulação e comprime o tempo
entre produção e consumo. Como afirmaria Marx: a lógica da acumulação exige que
o capital jamais repouse: ele precisa circular sem cessar, como o sangue de um
corpo hiperativo, incapaz de dormir.
Essa
aceleração da circulação impõe, como contrapartida, a aceleração da vida. Nossa
experiência cotidiana é moldada por essa exigência de prontidão permanente.
Queremos tudo agora, em tempo real, com rastreamento em segundos – e, com isso,
reconfiguramos também nossa forma de existir. A espera vira defeito. O cansaço,
uma falha moral. A lógica logística penetra nossas subjetividades,
transformando nossa própria vida em operação contínua.
A
promessa de fluidez exterior exige um corpo interior permanentemente
mobilizado. A logística, ao reorganizar o espaço e o tempo em função da
entrega, também reorganiza o desejo: nos tornamos sujeitos da urgência, da
impaciência, da performance. A “subjetividade logística” não é apenas aquela
que consome rápido; é aquela que se consome no ritmo do capital.
O que
se convencionou chamar de “taylorismo digital” ou “novo toyotismo” é a
oportunidade de leitura para compreender essa fusão do arcaico com o
hiperconectado. Trata-se da reatualização do velho projeto de Frederick Taylor,
que via o trabalhador como um apêndice da máquina, a ser controlado, ritmado,
cronometrado. Mas, agora, essa lógica se vê potencializada por sensores,
algoritmos, inteligência artificial e big data. O operário não apenas executa
tarefas repetitivas: ele é rastreado em tempo real, com cada movimento
traduzido em métricas de desempenho.
O velho
cronômetro da fábrica foi substituído por painéis digitais e dashboards gerenciais.
A linha de montagem, por corredores de prateleiras onde o corpo caminha
quilômetros por dia sob ordens silenciosas transmitidas por aplicativos. A
vigilância direta do supervisor foi deslocada para a vigilância automatizada da
nuvem. O resultado, no entanto, é o mesmo: extração máxima de energia humana,
compressão do tempo, esvaziamento da subjetividade.
O
taylorismo digital não é ruptura – é atualização. Uma atualização que leva
adiante o princípio fundamental da racionalidade capitalista: controlar o tempo
do trabalhador para maximizar a produção de valor. Se antes o corpo era
disciplinado pela repetição mecânica, hoje é pela adaptabilidade contínua a
metas variáveis, ajustadas segundo cálculos em tempo real. A figura do
trabalhador multitarefa e “resiliente” não é mais uma virtude – é uma imposição
estrutural.
Se Marx
atravessasse o século XXI, veria nestes galpões a continuidade ampliada da
alienação do trabalho. Veria que, longe de termos superado as contradições do
capital, as aprofundamos sob novos disfarces. A mercadoria continua encantada,
mas agora com sensores e QR codes; o trabalhador segue expropriado
de seu tempo e de sua subjetividade, mas agora algoritmicamente compelido à
autoexploração. O que antes era o relógio fabril, hoje é o sistema de
rastreamento de performance; o que era o capataz, hoje é o software de
produtividade em tempo real.
Para
Marx, o capitalismo não apenas explora: ele oculta as relações sociais sob a
forma-coisa. No e-commerce, essa ocultação é radical. A mercadoria
chega “sozinha” ao consumidor, como se não passasse pelas mãos de ninguém. A
tecnologia aqui não liberta: vela. O que vemos é o ápice da reificação – o
apagamento do trabalho vivo por trás da aparência objetiva de eficiência
tecnológica.
Esses
galpões não são apenas locais de trabalho: são espaços de disciplinamento. A
tecnologia, longe de emancipar o trabalho, funciona como sua coleira. Ela torna
visível cada movimento do corpo, convertendo gestos em dados, corpos em
gráficos, fadiga em falha de desempenho. A produção não termina com a embalagem
da mercadoria: ela se estende até o último nervo do trabalhador, até sua
capacidade de seguir funcionando sem descanso.
Entretanto,
esse cenário não é novo. O que há de novo é sua velocidade, sua escala, sua
aparência de normalidade. A exploração se atualiza, mas não se transforma em
outra coisa. O velho capital, agora de tênis e nuvem, ainda suga trabalho vivo
para animar a mercadoria morta. A lógica do mais-valor permanece intacta,
apenas mais veloz, mais conectada, mais automatizada.
No
Brasil, o avanço desse modelo se acentuou após a pandemia de Covid-19. Sob o
pretexto da eficiência e da retomada econômica, expandiram-se os centros
logísticos, multiplicaram-se os contratos temporários e se naturalizou o ritmo
insustentável da entrega expressa. O que não se vê – ou não se quer ver – é o
corpo adoecido, o adoecimento mental, as lombalgias crônicas, o sofrimento
silenciado entre as prateleiras.
A
crítica marxista nos ensina que a mercadoria oculta a relação social que a
produziu. No caso do e-commerce, essa ocultação atinge o paroxismo:
a experiência de consumo se apresenta como mágica, enquanto o sofrimento do
trabalho é apagado do imaginário social. O desafio está em romper esse feitiço.
Mostrar que o clique não é leve, que o rastreamento tem cheiro de suor, que a
entrega tem um custo que não está na etiqueta do produto – mas na carne de quem
o movimenta.
Não é
contra a tecnologia que devemos lutar. É contra sua colonização pelo capital.
Contra seu uso como instrumento de extração, vigilância e esvaziamento da vida.
O que está em disputa não é apenas o controle dos meios de produção, mas o
controle do tempo, do espaço, da experiência sensível. O que está em disputa é
o que pode um corpo – um corpo que não seja apenas vetor de produtividade, mas
de imaginação, de pausa, de recusa.
O
taylorismo digital mostra que o capital não esquece. Ele reaproveita suas
engrenagens mais brutais sob as tintas brilhantes da inovação. Porém, também
revela sua fragilidade: depende da disciplina dos corpos, da cooperação
forçada, da ausência de alternativas visíveis. Por isso, resistir é antes de
tudo tornar visível. Tornar legível o cansaço. Reivindicar o tempo. Devolver ao
gesto humano a densidade que o algoritmo tenta suprimir.
A luta
começa quando os trabalhadores dizem não ao ritmo que os esgota. Porque entre o
clique e o cansaço existe um campo de conflito – e nele, trabalhadores seguem
inventando formas de resistência. Seja na recusa ao ritmo imposto, na
construção de solidariedades ou na denúncia das violências cotidianas, pulsa a
possibilidade de outra organização do trabalho. Uma em que a técnica não sirva
ao capital, mas à liberdade. Em que o tempo não seja capturado pela mercadoria,
mas devolvido à vida.
¨
Como modernizar a legislação trabalhista. Por Luís Nassif
A
Constituição diz que nenhum direito pode sofrer retrocesso. O Supremo Tribunal
Federal (STF) há anos tenta reescrever a Constituição, desmontando a legislação
trabalhista. Pretende substituir direitos previstos na Constituição por um mero
contrato entre as partes. Ainda mais neste momento, em que é o grande
garantidor da Constituição, o Supremo poderia privar a opinião pública desse
estupro constitucional.
Mas o
jogo é mais complexo. Os defensores da flexibilização da legislação trabalhista
argumentam que ela se tornou defasada, que se tornou obsoleta frente aos novos
tempos.
Nesses
tempos de defesa da democracia, vamos a um exemplo de como a ditadura tratou da
questão trabalhista.
Havia
um dispositivo que conferia estabilidade a todo trabalhador com mais de dez
anos no mesmo emprego. Era um convite para ser despedido quando chegava perto
dos dez anos. O que o regime militar – repito, o regime militar! – fez, através
de seus cérebros econômicos Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões?
Em 1966
implementou uma reforma trabalhista. Em troca da estabilidade aos dez anos, os
trabalhadores passaram a ter o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS),
formado por 8% de contribuição patronal, em conta vinculada ao trabalhador. Os
recursos permitiram capitalizar o Banco Nacional da Habitação (BNH), para
financiamento do saneamento e da construção civil.
Ou
seja, trocou-se um direito tido por anacrônico por um novo direito.
O que
os democratas de 2025 propõe para substituir o que consideram uma legislação
trabalhista anacrônica? Nada. Propõe simplesmente retirar todos os direitos dos
trabalhadores e instituir a selvageria. A universalização da pejotização
significará a quebra da Previdência Social, perda de arrecadação de Imposto de
Renda, fim do auxílio desemprego e do Fundo de Amparo ao Trabalhador, entre
outras perdas.
Qual a
lição que se tira dessa comparação com o governo Castello? Se se julga que a
legislação atual é anacrônica, que a tributação sobre a folha de salários é
muito alta, que se comece a pensar em uma reforma abrangente, que substitua
direitos tidos por anacrônicos por direitos modernos.
Há
alguns princípios básicos em uma reforma trabalhista. Como a folha de salários
é parte essencial da arrecadação tributária, não pode ser pensada de modo
apartado da reforma fiscal. Uma reforma decente tem que privilegiar os
seguintes pontos:
- A tributação
sobre a folha de salários penaliza as empresas intensivas de mão de obra,
em favor daquelas intensivas em capital. Para desafogar a folha, o
financiamento da Previdência deveria ser um percentual do faturamento.
- Fala-se muito em
competitividade da indústria, que seria afetada pelo regime tributário
atual. A maneira de equilibrar as contas é tributar mais pesadamente os
ganhos de capital e menos a produção.
- Por isso mesmo,
a tributação de dividendos é uma política positiva, que estimulará o
reinvestimento dos lucros na própria companhia.
- Independentemente
do modelo trabalhista, o papel do sindicato é essencial para um mínimo de
equilíbrio nas relações capital-trabalho.
Hoje em
dia, o mercado formal de trabalho é uma das âncoras contra a expansão do
bolsonarismo. Este se alimenta da precarização do trabalho e da falta de
confiança no futuro. É hora dos sábios do Supremo entenderem que a proteção ao
trabalho formal é uma das formas de fortalecer a democracia.
Fonte:
Por Gabriel Teles, na Le Monde Diplomatique Brasil/Jornal
GGN

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