sábado, 19 de abril de 2025

Fernando Nogueira da Costa: Rede monetária alternativa ao dólar

ou detalhar didaticamente cada componente da rede monetário-financeira alternativa ao dólar. Explicarei o estágio de desenvolvimento, a finalidade e a estrutura institucional, de forma clara, para entendimento inclusive de leigos em economia.

O CIPS – Cross-Border Interbank Payment System (China) é o sistema chinês de compensação e liquidação de pagamentos internacionais em renminbi. Foi lançado oficialmente em 2015 pelo Banco Popular da China  com a finalidade de reduzir a dependência do sistema hegemônico SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) para transações internacionais em renminbi. Promove a internacionalização do yuan (moeda chinesa).

Está já em estágio de desenvolvimento operacional e em expansão: mais de 1.300 instituições financeiras estavam conectadas em mais de 100 países no ano 2024. Processa bilhões de dólares em transações diárias.

Didaticamente, é designado como o “SWIFT chinês”, especializado em operações com a moeda local. Tem integração limitada com o SWIFT para facilitar transições internacionais.

mBridge – Multiple CBDC Bridge Project é a plataforma multilateral para pagamentos transfronteiriços entre Moedas Digitais de Bancos Centrais. É um projeto conjunto entre o Banco Popular da China, a Autoridade Monetária de Hong Kong, o Banco Central da Tailândia, o Banco Central dos Emirados Árabes Unidos e o Banco de Compensações Internacionais (BIS Innovation Hub), conhecido como “o Banco Central dos Bancos Centrais”.

Sua finalidade é testar pagamentos internacionais sem a necessidade de dólar como intermediário. Visa usar CBDCs diretamente entre países com liquidação em tempo real.

O atual (2023–2024) estágio de desenvolvimento está em fase piloto avançado. Fez testes bem-sucedidos com 160 transações reais entre 20 bancos de quatro países.

Didaticamente, imagine um “Pix internacional entre Bancos Centrais”, com moedas digitais, sem passar pelo dólar. Bye bye so long…

O SPFS – System for Transfer of Financial Messages (Rússia) é o sistema russo de mensagens interbancárias, criado como alternativa doméstica ao SWIFT. Sua finalidade é garantir resiliência da infraestrutura bancária russa diante sanções internacionais.

Está em estágio de desenvolvimento desde 2014, mas foi ampliado após sanções de 2022, devido à Guerra da Ucrânia. Mais de 500 instituições russas estão conectadas e têm conectividade com sistemas de China, Irã e Índia em estudo.

Didaticamente, é como fosse um “e-mail financeiro” interno da Rússia. Mas é capaz de se conectar com redes parceiras fora do Ocidente.

O INSTEX – Instrument in Support of Trade Exchanges (União Europeia-Irã) é o mecanismo criado pela União Europeia em 2019 para facilitar comércio com o Irã sem usar o dólar, evitando sanções dos EUA. Possibilita um comércio humanitário de medicamentos e alimentos com o Irã contra o boicote norte-americano. Evita o uso direto de bancos tradicionais ou SWIFT.

Seu estágio de desenvolvimento era limitado por ser pouco utilizado, principalmente por pressões políticas dos EUA. Em 2023, foi dissolvido após falhar em promover transações significativas.

Didaticamente, foi uma tentativa de criar uma câmara de compensação alternativa ao dólar, mas com baixa adesão e sucesso limitado.

Finalmente, a CDBC – Central Bank Digital Currency, moeda digital oficial emitida por um banco central, como extensão da moeda fiduciária, é a meta de diversos países, por exemplo: e-CNY (China) com piloto avançado, DREX (Brasil) em testes, Digital Rupee (Índia) com piloto bem como o Project Aurum (Hong Kong). O Jasper (Canadá) e o Ubin (Singapura) são experimentais.

Didaticamente, é o “dinheiro do banco central digitalizado”, com potencial de interoperar internacionalmente via plataformas como o mBridge.

Visualmente, em reducionismo, há duas redes globais em disputa geopolítica e monetário-financeira. A dominante ainda é a rede tradicional dominada pelo SWIFT/dólar, cujos centros estão em Washington, Londres, Bruxelas. Têm como Infraestrutura os sistemas SWIFT, FedWire, CHIPS. A moeda de referência é o USD (dólar americano como moeda de liquidação global). Possui domínio geoeconômico no comércio internacional, commodities, reservas cambiais. Foi usado como propósito geopolítico e estimulou reações das demais nações.

A segunda é a Rede Emergente Alternativa ao Dólar com centros de compensação em Pequim, Moscou, Teerã, Abu Dhabi. Sua infraestrutura abrange o CIPS (China), com pagamentos interbancários em renminbi; o mBridge, uma plataforma multilateral de CBDCs (China, Tailândia, Emirados Árabes, Hong Kong); o SPFS (Rússia), sistema de mensagens interbancárias russo, o INSTEX (UE/Iran), projeto europeu de bypass às sanções dos EUA. As moedas de referência são RMB, rublos, dirhams, moedas locais com CBDCs.

Como de hábito, os impactos para economias periféricas, como a do Brasil, envolvem oportunidades e desafios. É oportunidade para uma ambicionada diversificação monetária: redução da dependência do dólar em comércio bilateral com a China, destacadamente o maior parceiro comercial do Brasil.

Cabe a inclusão estratégica em novas infraestruturas com a possível adesão do Brasil ao mBridge ou integração parcial com o CIPS. Estimula ainda mais a criação de CBDC local (Drex) em sintonia com sistemas internacionais não-dolarizados.

Os problemas a serem enfrentados referem-se, primeiro, à assimetria tecnológica e de governança: risco de nova dependência, agora tecnológica e financeira com a China. Há pressões geopolíticas dos EUA contra aproximação com blocos não alinhados ao dólar pode gerar retaliações indiretas.

Para adquirir maior capacidade institucional, o Brasil precisaria adaptar sua regulação cambial e bancária para interagir com CBDCs estrangeiras. Por exemplo, o regime de câmbio fixo é adotado na China com proposital depreciação da moeda nacional para adquirir maior competitividade comercial na economia mundial.

É interessante imaginar um estudo de caso com o uso do RMB Digital no Comércio Sul-Sul. Um exemplo hipotético, porém, realista, seria o cenário do Brasil exportar petróleo para a China e importa medicamentos da Índia.

A solução tradicional seria por meio de transações intermediadas via bancos ocidentais e liquidadas em dólar. Na nova solução com RMB Digital e mBridge, o Brasil receberia pagamento em e-CNY por petróleo via CIPS. Converteria e-CNY em rúpias digitais da Índia na plataforma mBridge para pagar medicamentos. Nenhuma dessas etapas dependeria do SWIFT ou do dólar.

As implicações geoeconômicas (e geopolíticas) envolvem a redução de custos de transação e tempo. Evita a exposição cambial ao dólar. Reforça a autonomia financeira do Sul Global. Diminui a capacidade de sanção financeira unilateral dos EUA.

¨      Como acabar com o bitcoin (e outras “criptocoisas”) sem dar um tiro. Por Daniel Negreiros da Conceição

Nos últimos anos, assistimos a um fenômeno bizarro: uma multidão disposta a trocar suas moedas emitidas por Estados soberanos (valiosas por força da soberania) por ativos digitais sem emissor, sem garantias e sem qualquer valor de uso concreto. A promessa? Liberdade, descentralização, proteção contra a inflação… A realidade? Volatilidade extrema, demandas dependentes de campanhas de marketing, e uma estranha devoção à ideia de que apenas a escassez programada poderia ser fonte suficiente de algum valor.

O crescimento dos criptoativos está menos associado à sua suposta revolução tecnológica e mais à retroalimentação propagandística de uma demanda puramente especulativa. Donos de criptoativos não ganham acesso às tecnologias em que eles se baseiam para lhes darem aplicações úteis, nem ganham o direito de negociar o acesso a tais tecnologias. É apenas a expectativa de valorização futura que alimenta a demanda presente, que por sua vez gera mais valorização. O ciclo se retroalimenta até que a combinação de um incentivo crescente à liquidação realizadora de ganhos acumulados e à alavancagem cada vez maior leva a bolha especulativa ao estouro inevitável. Antes de a bolha estourar, os donos de tulipas na Holanda do século XVII provavelmente tinham tanta fé na sustentabilidade da tendência altista dos preços de suas flores quanto os criptoentusiastas de hoje.

<><> Valor, escassez e a função do Estado

Ao contrário do que se apregoa nos pódios libertários, valor econômico não é uma função da escassez isolada. Um objeto pode ser absolutamente escasso e, ainda assim, não ter qualquer valor se não for desejado ou exigido. Objetos escassos podem ser até mesmo negativamente valiosos se produzirem danos ao invés de ganhos materiais, motivo pelo qual pagamos para nos livrar de coisas insalubres, por mais raras que sejam. Por que o dinheiro fiduciário tem valor? Porque o Estado exige que os impostos sejam pagos com ele. Ao anunciar punições para sonegadores de impostos, o Estado torna a obtenção da sua moeda uma necessidade. E como o Estado é o único agente capaz de criar a moeda com que pagamos impostos, a moeda será tão custosa/escassa quanto o Estado desejar. É justamente a combinação da escassez (o Estado controla acesso à moeda) e o seu valor de uso (o Estado a torna necessária) que dá valor à moeda estatal.

Criptoativos, por sua vez, não possuem qualquer mecanismo parecido que lhes dê valor. Enquanto donos de moeda estatal recebem a garantia do Estado de poderem obter algo valioso (evitar punições) em troca da moeda estatal, ninguém se compromete a entregar algo valioso a quem tenha criptomoedas. Sua demanda é puramente especulativa ou ideológica. E isso nos leva à seguinte pergunta: se o que sustenta seus preços é apenas a expectativa de que outras pessoas continuarão comprando criptomoedas porque esperam que outras pessoas continuem comprando…, o que aconteceria se essa expectativa fosse neutralizada?

<><> Swaps cambiais: a arma secreta do Estado

Bancos centrais (como o brasileiro) aprenderam a lidar com ataques especulativos contra suas moedas usando uma ferramenta elegante chamada swap cambial. Em vez de vender dólares, o Banco Central vende ao investidor o direito de receber uma remuneração equivalente à variação cambial. Basicamente, o Banco Central do Brasil oferece uma “versão brasileira” do dólar, pagável em reais criados por ele próprio, sem que o investidor precise comprar dólar algum.

Essa operação ajuda a estabilizar a taxa de câmbio. Se qualquer um pode se proteger contra, ou lucrar com, a alta do dólar sem precisar comprar dólar, a demanda especulativa por moeda estrangeira acaba neutralizada. E com menos demanda, há menos pressão cambial. E como a demanda especulativa é justamente o componente mais volátil e ameaçador da demanda por moedas estrangeiras, o efeito estabilizador dessa política será tão maior quanto mais generosa for a oferta dessas aplicações.

<><> Swapcripto: como acabar com a especulação sem censura ou proibição

A proposta é simples, e talvez por isso mesmo radical: por que não usar o mesmo princípio do swap cambial contra os criptoativos? Um Banco Central poderia oferecer um derivativo que pagasse ao investidor, em moeda nacional, exatamente a variação do preço do bitcoin (ou outro criptoativo) acrescida de um pequeno prêmio. Ou seja: você não precisa comprar bitcoin para lucrar com a alta do bitcoin. O Estado te ofereceria isso com liquidez, garantia e sem os riscos operacionais, tecnológicos e jurídicos típicos dos mercados cripto.

Se a remuneração especulativa é acessível sem que haja necessidade de comprar o ativo, a demanda pelo ativo real evapora. E com ela, seu preço! O castelo de cartas da escassez se desmancha no ar. O investidor especulativo ganha uma alternativa mais segura e o criptoativo perde seu oxigênio: a demanda inflada por expectativas.

Ainda assim, é possível que reste uma demanda residual por criptoativos. Parte dela viria de motivações ideológicas, ligadas à crença libertária de que toda moeda estatal é ilegítima ou fadada ao colapso. Outra parcela poderia se sustentar em expectativas irracionais de valorização – resistentes à lógica ou à evidência empírica. E, por fim, pode restar a demanda criminosa: usos associados à lavagem de dinheiro, evasão fiscal, tráfico ou outras atividades ilícitas que dependem do anonimato e da baixa regulação. No entanto, ao reduzir drasticamente a demanda especulativa legal e convencional, o swap cripto teria um papel decisivo: isolaria essas demandas marginais, tornando-as visíveis, identificáveis e politicamente mais fáceis de serem enfrentadas com regulação específica.

<>< Riscos e objeções

Alguns dirão: e se isso incentivar o endividamento em cripto? E se o Estado tiver prejuízo? E se os mercados surtarem? Se a política for bem-sucedida, não haverá valorização dos criptoativos. Sem valorização, o prêmio pago pelo Estado será mínimo. Já as perdas patrimoniais por quem tiver suas riquezas aplicadas em criptoativos sempre poderão ser (seletivamente) compensadas por intervenções soberanas – como em 2008, quando instituições financeiras foram generosamente resgatadas pelo Tesouro e pelo Fed norte-americanos, num dos maiores pacotes de ajuda da história econômica. Idealmente, aliás, ao contrário do que se observou em 2008, a seletividade estatal para repor perdas resultantes do colapso das criptomoedas seria muito mais generosa com pequenos investidores para quem tais perdas pudessem representar ameaças graves aos seus sustentos.

Finalmente, como já aprendemos com os swaps cambiais, o custo fiscal nominal da operação não deve ser confundido com um custo econômico real. Mesmo que haja algum custo contábil para o Banco Central, a estabilização de mercados financeiros e a redução do risco de crises financeiras justificam com folga esse custo.

<><> Conclusão: como matar um ativo com gentileza

O mais irônico é que esse não é um projeto repressivo. Não se trata de proibir, censurar ou prender entusiastas cripto. Trata-se apenas de competir com as criptomoedas. Usar a força da soberania monetária para oferecer uma alternativa tão eficaz que o próprio objeto da especulação perca a razão de existir.

O fim dos criptoativos não precisa envolver conflitos políticos e batalhas regulatórias. Basta que o soberano monetário ofereça uma alternativa mais elegante, mais estável e, ironicamente, mais generosa. A história não é feita apenas de confrontos diretos. Às vezes, basta oferecer às pessoas um caminho alternativo melhor e observar o resto desmoronar por conta própria.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Le Monde

 

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