Fernando
Nogueira da Costa: Rede monetária alternativa ao dólar
ou
detalhar didaticamente cada componente da rede monetário-financeira alternativa
ao dólar. Explicarei o estágio de desenvolvimento, a finalidade e a estrutura
institucional, de forma clara, para entendimento inclusive de leigos em
economia.
O CIPS
– Cross-Border Interbank Payment System (China) é o sistema
chinês de compensação e liquidação de pagamentos internacionais em renminbi.
Foi lançado oficialmente em 2015 pelo Banco Popular da China com a
finalidade de reduzir a dependência do sistema hegemônico SWIFT (Society for
Worldwide Interbank Financial Telecommunication) para transações
internacionais em renminbi. Promove a internacionalização do yuan (moeda
chinesa).
Está já
em estágio de desenvolvimento operacional e em expansão: mais de 1.300
instituições financeiras estavam conectadas em mais de 100 países no ano 2024.
Processa bilhões de dólares em transações diárias.
Didaticamente,
é designado como o “SWIFT chinês”, especializado em operações com a moeda
local. Tem integração limitada com o SWIFT para facilitar transições
internacionais.
O mBridge
– Multiple CBDC Bridge Project é a plataforma multilateral
para pagamentos transfronteiriços entre Moedas Digitais de Bancos Centrais. É
um projeto conjunto entre o Banco Popular da China, a Autoridade Monetária de
Hong Kong, o Banco Central da Tailândia, o Banco Central dos Emirados Árabes
Unidos e o Banco de Compensações Internacionais (BIS Innovation Hub),
conhecido como “o Banco Central dos Bancos Centrais”.
Sua
finalidade é testar pagamentos internacionais sem a necessidade de dólar como
intermediário. Visa usar CBDCs diretamente entre países com liquidação em tempo
real.
O atual
(2023–2024) estágio de desenvolvimento está em fase piloto avançado. Fez testes
bem-sucedidos com 160 transações reais entre 20 bancos de quatro países.
Didaticamente,
imagine um “Pix internacional entre Bancos Centrais”, com moedas digitais, sem
passar pelo dólar. Bye bye so long…
O SPFS
– System for Transfer of Financial Messages (Rússia) é o
sistema russo de mensagens interbancárias, criado como alternativa doméstica ao
SWIFT. Sua finalidade é garantir resiliência da infraestrutura bancária russa
diante sanções internacionais.
Está em
estágio de desenvolvimento desde 2014, mas foi ampliado após sanções de 2022,
devido à Guerra da Ucrânia. Mais de 500 instituições russas estão conectadas e
têm conectividade com sistemas de China, Irã e Índia em estudo.
Didaticamente,
é como fosse um “e-mail financeiro” interno da Rússia. Mas é capaz de se
conectar com redes parceiras fora do Ocidente.
O
INSTEX – Instrument in Support of Trade Exchanges (União
Europeia-Irã) é o mecanismo criado pela União Europeia em 2019 para facilitar
comércio com o Irã sem usar o dólar, evitando sanções dos EUA. Possibilita um
comércio humanitário de medicamentos e alimentos com o Irã contra o boicote
norte-americano. Evita o uso direto de bancos tradicionais ou SWIFT.
Seu
estágio de desenvolvimento era limitado por ser pouco utilizado, principalmente
por pressões políticas dos EUA. Em 2023, foi dissolvido após falhar em promover
transações significativas.
Didaticamente,
foi uma tentativa de criar uma câmara de compensação alternativa ao dólar, mas
com baixa adesão e sucesso limitado.
Finalmente,
a CDBC – Central Bank Digital Currency, moeda digital oficial
emitida por um banco central, como extensão da moeda fiduciária, é a meta de
diversos países, por exemplo: e-CNY (China) com piloto avançado, DREX (Brasil)
em testes, Digital Rupee (Índia) com piloto bem como o Project
Aurum (Hong Kong). O Jasper (Canadá) e o Ubin
(Singapura) são experimentais.
Didaticamente,
é o “dinheiro do banco central digitalizado”, com potencial de interoperar
internacionalmente via plataformas como o mBridge.
Visualmente,
em reducionismo, há duas redes globais em disputa geopolítica e
monetário-financeira. A dominante ainda é a rede tradicional dominada pelo
SWIFT/dólar, cujos centros estão em Washington, Londres, Bruxelas. Têm como
Infraestrutura os sistemas SWIFT, FedWire, CHIPS. A moeda de referência é o USD
(dólar americano como moeda de liquidação global). Possui domínio geoeconômico
no comércio internacional, commodities, reservas cambiais. Foi usado como
propósito geopolítico e estimulou reações das demais nações.
A
segunda é a Rede Emergente Alternativa ao Dólar com centros de compensação em
Pequim, Moscou, Teerã, Abu Dhabi. Sua infraestrutura abrange o CIPS (China),
com pagamentos interbancários em renminbi; o mBridge, uma
plataforma multilateral de CBDCs (China, Tailândia, Emirados Árabes, Hong
Kong); o SPFS (Rússia), sistema de mensagens interbancárias russo, o INSTEX
(UE/Iran), projeto europeu de bypass às sanções dos EUA. As
moedas de referência são RMB, rublos, dirhams, moedas locais com CBDCs.
Como de
hábito, os impactos para economias periféricas, como a do Brasil, envolvem
oportunidades e desafios. É oportunidade para uma ambicionada diversificação
monetária: redução da dependência do dólar em comércio bilateral com a China,
destacadamente o maior parceiro comercial do Brasil.
Cabe a
inclusão estratégica em novas infraestruturas com a possível adesão do Brasil
ao mBridge ou integração parcial com o CIPS. Estimula ainda
mais a criação de CBDC local (Drex) em sintonia com sistemas internacionais
não-dolarizados.
Os
problemas a serem enfrentados referem-se, primeiro, à assimetria tecnológica e
de governança: risco de nova dependência, agora tecnológica e financeira com a
China. Há pressões geopolíticas dos EUA contra aproximação com blocos não
alinhados ao dólar pode gerar retaliações indiretas.
Para
adquirir maior capacidade institucional, o Brasil precisaria adaptar sua
regulação cambial e bancária para interagir com CBDCs estrangeiras. Por
exemplo, o regime de câmbio fixo é adotado na China com proposital depreciação
da moeda nacional para adquirir maior competitividade comercial na economia
mundial.
É
interessante imaginar um estudo de caso com o uso do RMB Digital no Comércio
Sul-Sul. Um exemplo hipotético, porém, realista, seria o cenário do Brasil
exportar petróleo para a China e importa medicamentos da Índia.
A
solução tradicional seria por meio de transações intermediadas via bancos
ocidentais e liquidadas em dólar. Na nova solução com RMB Digital e mBridge, o
Brasil receberia pagamento em e-CNY por petróleo via CIPS. Converteria e-CNY em
rúpias digitais da Índia na plataforma mBridge para pagar
medicamentos. Nenhuma dessas etapas dependeria do SWIFT ou do dólar.
As
implicações geoeconômicas (e geopolíticas) envolvem a redução de custos de
transação e tempo. Evita a exposição cambial ao dólar. Reforça a autonomia
financeira do Sul Global. Diminui a capacidade de sanção financeira unilateral
dos EUA.
¨
Como acabar com o bitcoin (e outras
“criptocoisas”) sem dar um tiro. Por Daniel Negreiros da Conceição
Nos
últimos anos, assistimos a um fenômeno bizarro: uma multidão disposta a trocar
suas moedas emitidas por Estados soberanos (valiosas por força da soberania)
por ativos digitais sem emissor, sem garantias e sem qualquer valor de uso
concreto. A promessa? Liberdade, descentralização, proteção contra a inflação…
A realidade? Volatilidade extrema, demandas dependentes de campanhas de
marketing, e uma estranha devoção à ideia de que apenas a escassez programada
poderia ser fonte suficiente de algum valor.
O
crescimento dos criptoativos está menos associado à sua suposta revolução
tecnológica e mais à retroalimentação propagandística de uma demanda puramente
especulativa. Donos de criptoativos não ganham acesso às tecnologias em que
eles se baseiam para lhes darem aplicações úteis, nem ganham o direito de
negociar o acesso a tais tecnologias. É apenas a expectativa de valorização
futura que alimenta a demanda presente, que por sua vez gera mais valorização.
O ciclo se retroalimenta até que a combinação de um incentivo crescente à
liquidação realizadora de ganhos acumulados e à alavancagem cada vez maior leva
a bolha especulativa ao estouro inevitável. Antes de a bolha estourar, os donos
de tulipas na Holanda do século XVII provavelmente tinham tanta fé na sustentabilidade
da tendência altista dos preços de suas flores quanto os criptoentusiastas de
hoje.
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Valor, escassez e a função do Estado
Ao
contrário do que se apregoa nos pódios libertários, valor econômico não é uma
função da escassez isolada. Um objeto pode ser absolutamente escasso e, ainda
assim, não ter qualquer valor se não for desejado ou exigido. Objetos escassos
podem ser até mesmo negativamente valiosos se produzirem danos ao invés de
ganhos materiais, motivo pelo qual pagamos para nos livrar de coisas
insalubres, por mais raras que sejam. Por que o dinheiro fiduciário tem valor?
Porque o Estado exige que os impostos sejam pagos com ele. Ao anunciar punições
para sonegadores de impostos, o Estado torna a obtenção da sua moeda uma
necessidade. E como o Estado é o único agente capaz de criar a moeda com que
pagamos impostos, a moeda será tão custosa/escassa quanto o Estado desejar. É
justamente a combinação da escassez (o Estado controla acesso à moeda) e o seu
valor de uso (o Estado a torna necessária) que dá valor à moeda estatal.
Criptoativos,
por sua vez, não possuem qualquer mecanismo parecido que lhes dê valor.
Enquanto donos de moeda estatal recebem a garantia do Estado de poderem obter
algo valioso (evitar punições) em troca da moeda estatal, ninguém se compromete
a entregar algo valioso a quem tenha criptomoedas. Sua demanda é puramente
especulativa ou ideológica. E isso nos leva à seguinte pergunta: se o que
sustenta seus preços é apenas a expectativa de que outras pessoas continuarão
comprando criptomoedas porque esperam que outras pessoas continuem comprando…,
o que aconteceria se essa expectativa fosse neutralizada?
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Swaps cambiais: a arma secreta do Estado
Bancos
centrais (como o brasileiro) aprenderam a lidar com ataques especulativos
contra suas moedas usando uma ferramenta elegante chamada swap cambial. Em vez de vender
dólares, o Banco Central vende ao investidor o direito de receber uma
remuneração equivalente à variação cambial. Basicamente, o Banco Central do
Brasil oferece uma “versão brasileira” do dólar, pagável em reais criados por
ele próprio, sem que o investidor precise comprar dólar algum.
Essa
operação ajuda a estabilizar a taxa de câmbio. Se qualquer um pode se proteger
contra, ou lucrar com, a alta do dólar sem precisar comprar dólar, a demanda
especulativa por moeda estrangeira acaba neutralizada. E com menos demanda, há
menos pressão cambial. E como a demanda especulativa é justamente o componente
mais volátil e ameaçador da demanda por moedas estrangeiras, o efeito
estabilizador dessa política será tão maior quanto mais generosa for a oferta
dessas aplicações.
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Swapcripto: como acabar com a especulação sem censura ou proibição
A
proposta é simples, e talvez por isso mesmo radical: por que não usar o mesmo
princípio do swap cambial contra os criptoativos? Um Banco Central poderia
oferecer um derivativo que pagasse ao investidor, em moeda nacional, exatamente
a variação do preço do bitcoin (ou outro criptoativo) acrescida de um pequeno
prêmio. Ou seja: você não precisa comprar bitcoin para lucrar com a alta do
bitcoin. O Estado te ofereceria isso com liquidez, garantia e sem os riscos
operacionais, tecnológicos e jurídicos típicos dos mercados cripto.
Se a
remuneração especulativa é acessível sem que haja necessidade de comprar o
ativo, a demanda pelo ativo real evapora. E com ela, seu preço! O castelo de
cartas da escassez se desmancha no ar. O investidor especulativo ganha uma
alternativa mais segura e o criptoativo perde seu oxigênio: a demanda inflada
por expectativas.
Ainda
assim, é possível que reste uma demanda residual por criptoativos. Parte dela
viria de motivações ideológicas, ligadas à crença libertária de que toda moeda
estatal é ilegítima ou fadada ao colapso. Outra parcela poderia se sustentar em
expectativas irracionais de valorização – resistentes à lógica ou à evidência
empírica. E, por fim, pode restar a demanda criminosa: usos associados à
lavagem de dinheiro, evasão fiscal, tráfico ou outras atividades ilícitas que
dependem do anonimato e da baixa regulação. No entanto, ao reduzir
drasticamente a demanda especulativa legal e convencional, o swap cripto teria
um papel decisivo: isolaria essas demandas marginais, tornando-as visíveis,
identificáveis e politicamente mais fáceis de serem enfrentadas com regulação
específica.
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Riscos e objeções
Alguns
dirão: e se isso incentivar o endividamento em cripto? E se o Estado tiver
prejuízo? E se os mercados surtarem? Se a política for bem-sucedida, não haverá
valorização dos criptoativos. Sem valorização, o prêmio pago pelo Estado será
mínimo. Já as perdas patrimoniais por quem tiver suas riquezas aplicadas em
criptoativos sempre poderão ser (seletivamente) compensadas por intervenções
soberanas – como em 2008, quando instituições financeiras foram generosamente
resgatadas pelo Tesouro e pelo Fed norte-americanos, num dos maiores pacotes de
ajuda da história econômica. Idealmente, aliás, ao contrário do que se observou
em 2008, a seletividade estatal para repor perdas resultantes do colapso das
criptomoedas seria muito mais generosa com pequenos investidores para quem tais
perdas pudessem representar ameaças graves aos seus sustentos.
Finalmente,
como já aprendemos com os swaps cambiais, o custo fiscal nominal da operação
não deve ser confundido com um custo econômico real. Mesmo que haja algum custo
contábil para o Banco Central, a estabilização de mercados financeiros e a
redução do risco de crises financeiras justificam com folga esse custo.
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Conclusão: como matar um ativo com gentileza
O mais
irônico é que esse não é um projeto repressivo. Não se trata de proibir,
censurar ou prender entusiastas cripto. Trata-se apenas de competir com as
criptomoedas. Usar a força da soberania monetária para oferecer uma alternativa
tão eficaz que o próprio objeto da especulação perca a razão de existir.
O fim
dos criptoativos não precisa envolver conflitos políticos e batalhas
regulatórias. Basta que o soberano monetário ofereça uma alternativa mais
elegante, mais estável e, ironicamente, mais generosa. A história não é feita
apenas de confrontos diretos. Às vezes, basta oferecer às pessoas um caminho
alternativo melhor e observar o resto desmoronar por conta própria.
Fonte:
A Terra é Redonda/Le Monde

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