O que ler nos novos dados da saúde mental?
Com o golpe de 2016, a reforma psiquiátrica
viveu um apagão. Entre os muitos impactos – que vão do desinvestimento em
serviços substitutivos e territoriais da Rede de Atenção Psicossocial, a RAPS,
à retomada de um paradigma psiquiátrico na orientação dos serviços e práticas
–, a transparência sobre informações em saúde mental foi diretamente afetada.
Depois de um intervalo de quase dez anos, é
muito bem-vinda a divulgação de dados sobre serviços da RAPS com a publicação
da 13ª edição do Boletim Saúde Mental em Dados. Esta publicação é uma retomada
histórica da prestação de informações sobre a RAPS e é essencial para
conhecermos os avanços e desafios – novos e antigos – na expansão e
qualificação da rede e para guiar a gestão da rede.
Gestão baseada em evidências
Os dados apresentados nesta edição formam um
retrato do ritmo em que o país tem avançado na consolidação de um modelo de
atenção em saúde mental com serviços de base comunitária e territorial, em
substituição ao modelo asilar. Ficamos sabendo que, no Brasil, ultrapassamos o
número de 3.000 Centros de Atenção Psicossocial e de 950 Serviços Residenciais
Terapêuticos habilitados, com mais de 4.000 pessoas beneficiadas pelo Programa
de Volta para Casa. E, ao mesmo tempo, diminuímos o número de leitos do SUS em hospitais
psiquiátricos, o que é positivo – embora ainda restem 10.980 desses leitos
cadastrados, um desafio para transformar de vez o modelo de atenção em saúde
mental, que ainda persiste e precisa ser superado.
Os dados também revelam como está a
distribuição de equipes na atenção primária em saúde: são 6.052 Equipes de
Atenção Primária (eAP) e 3.370 Equipes Multiprofissionais (eMulti) em
municípios com menos de 15.000 habitantes. Conhecer essas informações é fundamental
para compreender a cobertura dos cuidados em saúde mental em localidades que
não têm porte populacional para abrir um Centro de Atenção Psicossocial e que,
portanto, contam com a atenção primária como referência para esses cuidados.
Outros tantos dados sobre serviços da RAPS e
sobre estratégias de educação permanente e ações orçamentárias são
apresentados.
Mas também observamos que permanecem enormes
desafios, como o baixo número de Unidades de Acolhimento – um serviço
residencial transitório para pessoas com necessidades complexas relacionadas ao
uso de drogas. São apenas 86 em todo o território nacional. É fato que, entre
2018 e 2022, os municípios ficaram impossibilitados de solicitar a
implementação desses serviços. Mas também é fato que, contrastando com esse
número baixo, cresce o número de outra instituição: as comunidades
terapêuticas. Ainda que não saibamos ao certo quantas existem no país, sabemos
que, conforme dados do IBGE, em 2022 foram registradas 24.287 pessoas em
“domicílio coletivo” do tipo “clínica psiquiátrica, comunidade terapêutica e
similares”. Está longe de ser uma conta adequada, mas se temos certa ideia de
quantas pessoas podem estar em hospitais psiquiátricos, também podemos formular
alguma estimativa sobre aquelas que podem estar em “comunidade terapêutica e
similares” – e o número impressiona.
Enfim, como o próprio Boletim assinala, os
dados são importantes para subsidiar a gestão nos três níveis de governo no
planejamento da implementação da RAPS, pois revelam evidências sobre a
cobertura dos serviços e a necessidade de sua expansão.
Agora, para isso, é necessário recordar: os
serviços são implementados para responder às necessidades das pessoas. Dito de
outra maneira: é porque as pessoas têm necessidades variadas de cuidado – e
porque as pessoas têm direitos – que os serviços são inventados, expandidos e
qualificados. E como fazemos para obter dados sobre a qualidade do cuidado e a
garantia dos direitos das pessoas?
Evidências baseadas em práticas territoriais
É preciso uma mudança de perspectiva sobre
quais dados têm valor – e isso é um problema global.
O relatório do Relator Especial da ONU para o
direito à saúde, Dainius Pūras, aprovado em 2020 no Conselho de Direitos
Humanos da ONU, nos dá pistas de como fazer isso.
Neste relatório, o autor reflete sobre
caminhos para construir uma agenda de políticas públicas em saúde mental
baseada na defesa dos direitos, transformando paradigmas. Entre suas propostas,
ele trata criticamente da produção de conhecimento científico na área da saúde
mental.
Para o relator, é atribuído grande valor ao
que chamamos de “práticas baseadas em evidências”. Nessa perspectiva, pesquisas
produzem evidências para as quais é atribuída legitimidade científica, e como
consequência práticas são desenvolvidas com base nessas evidências. O problema
é que, globalmente – segundo ele –, há um uso tendencioso dessas evidências na
saúde mental, pois o paradigma psiquiátrico limita a agenda de pesquisa a
aspectos neurobiológicos. Ainda, mesmo sabendo que a garantia de direitos – como
moradia, trabalho, renda e acesso à educação – são determinantes sociais
essenciais para a saúde mental, essa agenda de pesquisa desconsidera tais
determinantes.
Daí que o relator sugere uma inversão de
raciocínio e prática: reconhecendo o uso tendencioso de evidências, ele propõe
que nos afastemos das “práticas baseadas em evidências” para, com foco na
promoção e garantia de direitos, reconhecer e legitimar as “evidências baseadas
em práticas”. Ou seja, no raciocínio proposto são as ações desenvolvidas nos
contextos e realidades locais e que garantem direitos que devem indicar
caminhos para as políticas públicas.
Portanto, são os impactos reais das práticas
inventadas nos serviços territoriais e substitutivos ao modelo asilar para
melhorar a vida e promover dignidade, são as ações que ampliam valor social das
pessoas e respondem às necessidades reais de vida, e são as estratégias criadas
junto às pessoas, no cotidiano de vida e nos territórios que promovem cuidado e
direitos que revelam as evidências a serem seguidas. As evidências emergem das
boas práticas, e reconhecemos determinada prática como evidência do cuidado
quando ela amplia a garantia de direitos da pessoa.
É nessa perspectiva que tem enorme relevância
para a saúde mental outro conjunto de dados: as descrições narrativas das
belas, potentes e engajadas práticas inventadas pelos serviços de saúde mental
e voltadas à promoção do cuidado em liberdade e cidadania. Conhecer o que os
serviços da RAPS têm feito – como as experiências compartilhadas no Projeto Nós
na Rede, muitas vezes realizadas sem investimento ou apoio direto – é ter
acesso a evidências de práticas territoriais que produzem cuidado e garantem direitos.
Quando os dados não nos dizem muito
O campo da saúde mental expandiu e, hoje, se
fala mais sobre saúde mental e mais grupos se autorizam a falar sobre saúde
mental – se isso é expressão da experiência da pandemia e/ou efeito de anos da
perda, com o golpe de 2016, de um eixo político da desinstitucionalização no
campo, é questão a se debater. O fato é que, vira e mexe, algum dado qualquer
sobre saúde mental é publicado.
Dados sobre a rede de serviços e sobre
experiências práticas que promovem cuidado e direitos são necessários porque
indicam os caminhos a seguir.
É preciso cuidado, no entanto, com dados
divulgados amplamente como verdades absolutas, mas que deveriam suscitar mais
indagações – seja sobre os cenários que lhes deram origem, seja sobre os
objetivos de sua divulgação – do que respostas. Um exemplo é a frequente
divulgação de dados sobre o aumento de índices de ansiedade e depressão por
diferentes fontes e meios, usualmente acompanhados de grande alarde.
Ora, não se trata de negar que as pessoas
estejam em sofrimento, mas é preciso perguntar: o que estamos definindo como
“ansiedade” e “depressão”? Como esses dados estão sendo obtidos? Quais
instrumentos são utilizados para isso? Esses instrumentos se baseiam em quais
saberes, em quais paradigmas, quem os formulou? A produção desses dados está a
serviço de quê?
Poderíamos ir além e questionar: quantas
dessas pesquisas investigam as condições de moradia das pessoas? Consideram as
condições de trabalho e renda? Levam em conta a rede de apoio e os contextos de
violência vividos? Qual é a história da experiência de sofrimento dessa pessoa?
Quais necessidades ela expressa?
Mais uma vez: não se trata de negar a
experiência de sofrimento, mas precisamos recordar que, em saúde mental, um
dado do tipo precisa ser compreendido junto das relações, contextos e
determinações dessas experiências. E isso é necessário porque as evidências
precisam servir para produzir percursos de cuidado e de garantia de direitos –
e não para promover a patologização ou a medicalização –, transformando para
melhor a vida das pessoas e dos territórios.
É para isso que servem as evidências – ou, ao
menos, é para isso que deveriam servir.
Fonte: Por Por Cláudia Braga, para sua coluna
Cuidar das pessoas, cuidar das cidades

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