O
‘trumpismo’ e a crise global de liderança: TOD, autoritarismo e educação para a
democracia
Você se
sente mais inseguro, irritado ou desanimado em relação à política e à
convivência social nos últimos anos? Se sim, você não está só. Segundo dados do
Edelman Trust Barometer 2024, mais de 70% da população mundial acredita que as
instituições democráticas estão em risco e que o mundo está mais dividido do
que nunca, segundo levantamento realizado em mais de 28 países com mais de 32
mil entrevistados.1 O sentimento de desconfiança generalizada, a desinformação
e o medo coletivo têm impactado não apenas as eleições e as políticas públicas,
mas também as relações familiares, as decisões pessoais e a saúde mental da
sociedade, segundo o relatório, 76% da população mundial acredita que a
desinformação está em níveis alarmantes e 53% considera que a divisão social é
tão intensa que não poderá ser superada.
Em
2025, o mundo testemunha o retorno de Donald Trump à presidência dos Estados
Unidos e, com ele, a intensificação de um estilo de liderança que desestabiliza
alianças históricas, desafia acordos internacionais, ignora instâncias técnicas
e fragiliza instituições democráticas. Mas o Trumpismo – mais do que um projeto
de governo – expressa um padrão comportamental global que reflete e alimenta
uma crise “neurogeossociopolítica”.
Essa
crise se manifesta em quatro dimensões interdependentes:
·
Neurocognitiva, pela crescente incapacidade coletiva de regular emoções em
ambientes polarizados;
·
Geopolítica, com o avanço de lideranças autoritárias e a fragmentação das
alianças multilaterais;
·
Social, através da erosão da confiança nas instituições e no pacto democrático;
·
Cultural, marcada pela desvalorização da escuta, da linguagem construtiva e da
ciência.
Neste
contexto, torna-se essencial compreender os vínculos entre os comportamentos
individuais e o colapso institucional, buscando ferramentas conceituais que
revelem o que está por trás da liderança desafiadora e suas repercussões
coletivas. É aqui que o conceito de Transtorno Opositor Desafiador (TOD),
originalmente restrito à psicologia do desenvolvimento, ganha relevância como
chave interpretativa transdisciplinar. Ele nos permite observar como padrões
desafiadores, quando alçados ao poder, ameaçam o funcionamento saudável das
democracias, como veremos a seguir.
• O que é o Transtorno Opositor Desafiador
(TOD)?
O TOD é
um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por um padrão persistente
de comportamento desafiador, desobediente e hostil em relação às figuras de
autoridade: pais, chefes, autoridades da esfera jurídica, administrativa e
instituições. Embora mais comum em crianças e adolescentes, o TOD não surge
repentinamente na vida adulta. Trata-se de um padrão comportamental que, quando
não reconhecido e trabalhado desde a infância, pode evoluir e se cristalizar ao
longo do tempo, influenciado pelo tipo de parentalidade exercida, pelo ambiente
social e pelas experiências de vida. Quando se manifesta em adultos, sobretudo
em contextos de liderança, poder ou influência midiática, revela frequentemente
lacunas formativas e carências emocionais não elaboradas.
Os
principais sinais incluem: discussões frequentes com figuras de autoridade;
recusa em obedecer às regras; tendência a culpar os outros por seus erros, a
“terceirização da responsabilidade”; provocação deliberada, comportamento
rancoroso e hostilidade constante; baixa tolerância à frustração e explosões de
raiva.
No
jargão clínico, costuma-se dizer que o TOD é o “valentão em grupo”, aquele que
provoca, ameaça, coage e se impõe com agressividade, especialmente quando
respaldado por apoio social ou simbólico. No entanto, quando está sozinho, o
mesmo indivíduo frequentemente revela um lado mais vulnerável, marcado por
medo, sofrimento psíquico e paralisia emocional. Essa ambivalência
comportamental revela que, por trás da hostilidade, pode haver experiências
internas de insegurança, abandono ou baixa autoestima.
Nos
adultos, o TOD pode se expressar como padrões crônicos de oposição
institucional, deslegitimação do contraditório e recusa de normas sociais
amplamente aceitas. Quando associado a lideranças políticas, o TOD ganha
dimensão coletiva e institucional, com impactos profundos sobre a estabilidade
democrática e a cultura pública.
Segundo
o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o TOD
diferencia-se de transtornos de conduta mais graves, como os de personalidade
antissocial, narcisista ou hedonista, por não envolver, necessariamente,
violações sistemáticas de direitos alheios, comportamento manipulador
persistente ou ausência de remorso. Enquanto o TOD tende a expressar oposição
reativa e hostilidade situacional diante de figuras de autoridade, os
transtornos de conduta mais graves configuram padrões comportamentais
persistentes, invasivos e menos responsivos a contextos, com maior risco de
transgressão social, sofrimento coletivo e danos éticos. A menção a esses
quadros mais graves não implica diagnóstico direto de lideranças específicas,
mas convida à reflexão ética e cidadã sobre os impactos reais que estilos de
liderança hostis, autorreferentes e punitivos podem causar na vida de milhões
de pessoas, especialmente quando ocupam posições de poder. Para o psicólogo
clínico, Russell A. Barkley, referência clássica nos estudos sobre TOD na
infância, o transtorno envolve não apenas oposição comportamental, mas uma
profunda dificuldade na regulação emocional diante da frustração,
principalmente em contextos de autoridade. Estudos mais recentes, como os de
Daniel J. Siegel e Bessel van der Kolk, destacam também a influência de traumas
não elaborados no desenvolvimento de padrões desafiadores persistentes.
• Quando o TOD assume o poder: o caso
Trump e seus ecos globais
Entre
as figuras públicas que encarnam padrões comportamentais compatíveis com o TOD,
Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, se destaca como caso
emblemático. Durante seu primeiro mandato presidencial, adotou um estilo
confrontativo marcado por:
1.
Ataques à imprensa e ao judiciário: descreditou a mídia e o sistema judiciário
quando contrário a suas ações.
2.
Rejeição à ciência: ignorou especialistas durante a pandemia de covid-19.
3.
Desafios às normas institucionais: questionou a legitimidade das eleições de
2020 sem provas.
4.
Polarização social: incentivou a divisão e a lealdade incondicional a seu
governo.
No seu
segundo mandato, iniciado em 2025, esse padrão se intensificou. Diversas
medidas e posicionamentos recentes reforçam o caráter desafiador de sua
liderança:
5.
Política econômica e tarifaço: imposição de tarifas sobre importações,
especialmente da China, exacerbando disputas comerciais e contribuindo para uma
crise geopolítica.
6.
Relações internacionais: pressionou aliados da OTAN, enfraqueceu laços com a
União Europeia, fechou a USAID e sugeriu sair da OMS.
7.
Saúde e educação: cortou programas de saúde e perseguiu universidades críticas
ao governo.
8.
Imigração e segurança: endureceu políticas migratórias e estigmatizou minorias.
9.
Conflito Rússia-Ucrânia: tentou se aproximar da Rússia, enfraquecendo a
soberania ucraniana.
Essas
ações revelam uma liderança polarizadora, com graves repercussões internas e no
cenário global. Esse estilo, caracterizado pela negação do contraditório e pela
disrupção contínua, não permaneceu restrito aos Estados Unidos. Seus ecos podem
ser observados em outras lideranças contemporâneas, que, com variações
culturais e táticas, também manifestam traços de oposição sistemática às regras
democráticas.
Esses
casos, observados em diferentes partes do mundo, refletem a contaminação global
de uma lógica de poder baseada no confronto, na desinformação e na rejeição do
pluralismo institucional.
Esse
fenômeno, embora tenha em Donald Trump sua expressão mais conhecida nos últimos
anos, não é exclusivo. O estilo de liderança confrontativo, autorreferente e
desafiador de instituições também se manifesta em diversas regiões do mundo,
com variações culturais e políticas. Essas lideranças compartilham um padrão de
oposição sistemática às regras democráticas, à escuta e ao contraditório,
explorando o medo como instrumento de poder. Esse padrão pode ser identificado
em diferentes regiões do mundo, ilustrado por exemplos de lideranças que
expressam traços semelhantes:
Américas
– Trump (EUA), Bolsonaro (Brasil), Maduro (Venezuela), Ortega (Nicarágua),
Bukele (El Salvador);
Europa
e Eurásia – Putin (Rússia), Orbán (Hungria), Duda (Polônia), Lukashenko
(Bielorrússia);
Ásia e
Oriente Médio – Duterte (Filipinas), Erdogan (Turquia), Xi Jinping (China),
Modi (Índia), al-Assad (Síria), Kim Jong-un (Coreia do Norte);
África
– Mugabe (Zimbábue), el-Sisi (Egito), Kagame (Ruanda), Museveni (Uganda).
Alguns
desses líderes chegaram ao poder antes de Trump, outros depois, mas todos
ajudam a consolidar o arquétipo do “valentão político contemporâneo”: figuras
que deslegitimam instituições de controle, atacam a imprensa livre e
centralizam o poder em torno da própria vontade. Cada um, à sua maneira,
contribui para o avanço de uma lógica autoritária que transforma o Estado em
reflexo de si mesmo, em detrimento do pluralismo, da escuta e do pacto
democrático.
Os
cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em sua obra Como as
Democracias Morrem (2018), explicam como democracias não morrem apenas por
golpes militares, mas pela erosão gradual das instituições desde dentro,
liderada por figuras eleitas que deslegitimam o contraditório, toleram a
violência e atacam liberdades civis. Essa análise ajuda a compreender os riscos
reais de estilos de liderança que fragilizam os pilares democráticos sob
aparência legal e eleitoral.
• O contágio social e a desinformação
Esse
comportamento de liderança atua como modelo para segmentos sociais que
internalizam o discurso opositor como identidade. A contaminação é amplificada
pelas redes sociais e pela mídia digital, promovendo: normalização da
desinformação; rejeição a especialistas e à escuta dialógica e escalada da
polarização afetiva e política. Esse “efeito espelho” contribui para a
fragilização do pacto civilizacional, pois desloca a convivência para o campo
do conflito perene e da hostilidade ao contraditório.
• A resposta educativa: parentalidade,
andragogia e cidadania crítica
A
prevenção de padrões opositores destrutivos começa na infância, através da
parentalidade positiva, da educação afetiva e da promoção de referências e
exemplos de adultos que exercem a educação empática, compassiva e ética com
coerência.
Por
isto, a resposta mais urgente, porém ainda negligenciada, está na educação de
adultos, campo da andragogia social. Inspirada em autores como Malcolm Knowles,
Paulo Freire e Hannah Arendt, essa abordagem busca não apenas transmitir
conhecimento, mas formar consciência cidadã. Como destacou Knowles: “adultos
aprendem melhor quando sentem que o conteúdo tem aplicação imediata em suas
vidas e quando são tratados com respeito e autonomia” (The Adult Learner,
1980). Freire, por sua vez, afirmou: “A educação não transforma o mundo. A
educação muda as pessoas. As pessoas transformam o mundo” (Pedagogia da
Autonomia, 1996). E Arendt nos lembra que: “a educação é o ponto em que
decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos responsabilidade por
ele” (Entre o Passado e o Futuro, 1961).
Essa
perspectiva é essencial para ampliar a capacidade de convivência democrática e
reeducação social em tempos de polarização, fragmentação e intolerância:
estimular o pensamento crítico e a autorreflexão; fortalecer a consciência
cidadã e o engajamento coletivo e promover o diálogo intergeracional e a
cultura de paz.
• O papel das instituições: contenção
democrática
Diante
da expressão do TOD adulto em cargos de poder, o Estado Democrático de Direito
precisa agir como contenção estrutural:
·
Legislação que limite abusos e garanta separação de poderes;
·
Justiça independente e mecanismos de responsabilização;
·
Imprensa livre como fiscalizadora do discurso público;
·
Educação política como horizonte preventivo e restaurador;
· Saúde
inclusiva e universal como norteadora do bem-estar civilizatório.
A
democracia não pode depender da moderação espontânea das lideranças, mas sim da
força de suas instituições e da consciência ativa da sociedade civil.
• Conclusão: uma pedagogia para a
democracia
A
analogia entre o TOD e certos estilos de liderança política não busca
patologizar a política, mas oferecer uma lente interdisciplinar para
compreender como comportamentos individuais se transformam em padrões coletivos
de ruptura democrática.
A face
pública do TOD, confrontadora, provocadora, autoritária e bélica,
frequentemente oculta dimensão individual de insegurança, incoerência e
desorganização interna. Essa ambivalência, quando não reconhecida e tratada,
tende a se manifestar de forma cada vez mais destrutiva no espaço social e
institucional.
Por
isso, resistir ao autoritarismo exige mais do que respostas jurídicas e
institucionais: exige uma pedagogia da consciência democrática, sustentada por
uma educação transformadora de adultos, pela regeneração da cultura pública e
pela escuta ativa das emoções políticas do nosso tempo e cultura de paz que
promova a saúde mental coletiva.
Entender
o TOD como chave analítica do presente é também reconhecer que, por trás da
violência simbólica e da recusa ao diálogo, há sempre um apelo humano por
reconhecimento, pertencimento e sentido. E é nesse ponto que a política
reencontra sua vocação: não como espetáculo do poder, mas como espaço de
reconstrução do comum.
Seremos
capazes de construir uma política que escute antes de reagir, que acolha antes
de coagir, e que reeduque sem humilhar? Que tipo de educação — institucional,
emocional e cidadã — estamos dispostos a oferecer às próximas gerações para que
a democracia volte a ser um projeto comum?
Nota:
Este
artigo menciona figuras políticas reais, como Donald Trump, Jair Bolsonaro,
Viktor Orbán e Vladimir Putin, com o objetivo de oferecer exemplos analíticos
de comportamentos que se assemelham a padrões descritos na literatura sobre o
Transtorno Opositor Desafiador (TOD). Não se trata de diagnósticos clínicos,
mas de uma reflexão crítica sobre os impactos de certos estilos de liderança na
democracia e nas instituições. O autor declara não possuir vinculação
partidária nem conflitos de interesse com relação aos temas tratados. As
reflexões aqui expostas são fundamentadas em estudos acadêmicos, observações
empíricas e informações amplamente divulgadas por fontes científicas
confiáveis. Este artigo não questiona o direito à pluralidade ideológica, mas
propõe uma reflexão sobre os impactos que a escolha de determinados tipos de
liderança, independentemente do espectro político, pode ter sobre o tecido
democrático e os desafios da educação de adultos como instrumento de prevenção
de crises institucionais
Fonte:
Edelman Trust Barometer 2024

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