“A
batalha da rua Maria Antônia” ou sobre tudo que um incêndio e uma ditadura são
capazes de destruir
Pode
ser difícil de imaginar à primeira vista, mas na experiência humana o passado é
aquilo que mais muda com o correr do tempo. A revisão e a elaboração
ininterruptas do que foi e do que poderia ter sido parecem constituir um objeto
de investigação constante da experiência individual e coletiva. Nesse sentido,
viver parece mesmo ser um constante rasgar-se e remendar-se, a fim de
encontrar, produzir e formular outros e novos significados a partir da
experiência vivida e dos indesejáveis bloqueios estabelecidos. Talvez esse seja
um bom modo de iniciar um texto a respeito da experiência histórica concernente
ao ano de 1968 — essa espécie de instante mágico no qual, segundo Décio de
Almeida Prado, muito se fez e se desfez. Enquanto boa parte do mundo parecia abrir-se
a uma revolução sexual e a um abalo generalizado das estruturas de vida e
pensamento, herdadas de um já conhecido paradigma moderno, o Brasil parecia
enclausurar-se entre a ideia de um milagre econômico e a atrocidade da
violência generalizada que, principalmente a partir daquele mesmo ano, com a
edição do decreto do AI-5, haveria de produzir ainda mais torturas, mortes e
desaparecimentos em massa. Por isso mesmo, motivos não faltam para que o Estado
brasileiro de fato formalize um pedido de desculpas às famílias e vítimas de
sua ditadura militar. Macaé Evaristo, atual ministra do Ministério dos Direitos
Humanos e da Cidadania, em cerimônia realizada em 24 de março deste ano, no
Cemitério Dom Bosco, em Perus (o mesmo onde foram abertas valas clandestinas
para o despejo das ossadas de vítimas do golpe), chegou a mencionar a
necessidade de fazer enfim valer no Brasil o direito inalienável à verdade. E é
na esteira dessa difícil busca por nos garantir a inauguração e manutenção do
que não pode sequer ser negociado, além da produção de uma versão digna e
coerente dos fatos históricos, levando em conta sua triste memória, suas
manchas e contornos, que o espectador brasileiro ganhou um excelente registro
nessa última semana: como um trabalho prático e bem-sucedido de rememoração e
resistência, A batalha da rua Maria Antônia acaba de estrear em grande parte
dos cinemas nacionais.
Dirigido
por Vera Egito após 12 anos de constante idealização, entre escritas e
reescritas do projeto, o longa-metragem a respeito do episódio homônimo
ocorrido em São Paulo nos dias 2 e 3 de outubro de 1968 é formado por 21
quadros. Filmados em um intervalo de apenas duas semanas, produzem um
inteligente e estruturado plano sequência, que tenta conduzir o olhar do
espectador junto a um registro vivo que não cabe no enquadramento das cenas,
transbordando-as enquanto matéria excedente de uma opressão que ainda não
parece ter cessado em definitivo. A forma ininterrupta das cenas, sem cortes em
cada um dos quadros, estabelece vínculos que são difíceis de descrever e
mensurar, sendo interrompidos apenas pela ordem da necessidade de uma ruptura,
de um corte que parece mesmo externo ao próprio funcionamento do material,
levando o espectador a acompanhar uma contagem regressiva rumo a um estrago
irreparável. O limite imposto ao país, que barrou sua inteligência e
desenvolvimento do início da década de 1960, ganha agora formato estético, em
película de 16mm, todo em preto e branco, firmando esteticamente a experiência
de um país estrangulado pelos desmandos ditatoriais da violência policial.
Já de
início, na própria configuração espacial do projeto cênico, o conflito fica
inteiramente posto, marcado por apenas uma rua. A famigerada Maria Antônia, no
centro de São Paulo, é segmentada em cada um dos lados das calçadas: à direita
da tela, as letras na parede apontam que o CCC voltou; do outro lado, à
esquerda, uma faixa assegura a tentativa de fundar e propagar um movimento
revolucionário. Em outros termos, de um lado temos a Universidade Presbiterana
Mackenzie e seu abrigo ao grupo paramilitar treinado para caçar comunistas.
Traduzindo a fina flor da burguesia, com seus ternos, gravatas e seu sempre
presente ódio a qualquer política de avanço dos trabalhadores e estudantes, o
Mackenzie marcava a efetiva consolidação da revanche da província, dos pequenos
proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em leis e
etc., de acordo com a conhecida expressão de Roberto Schwarz. Do outro lado da
rua, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo, tentando arrecadar fundos para a realização do XXX Congresso da
UNE, em Ibiúna, pedindo contribuições nas esquinas. Após a Batalha, ocorrida
naquele mês de outubro de 1968, a Faculdade (em boa medida desmembrada em suas
disciplinas) seria realocada na Cidade Universitária, no bairro do Butantã, em
um dito prédio provisório que permanece o oficial até a atualidade. O estilo
inusitado e irreverente das personagens da Faculdade de Filosofia dá o tom do
que poderia ser uma revolução nos costumes da sociedade brasileira, com seus
cigarros, jaquetas e botões abertos nas blusas, em oposição aos terninhos
engomados que produzem toda a caretice do lado direito. Um olhar em
retrospectiva poderia afirmar, contudo, que ao menos parcialmente, com o
esvaziamento de suas pautas e demandas verdadeiras, um tanto desta tal
revolução chegou mesmo a se solidificar, abrindo as portas do que pode ser
considerado como um pós-modernismo à brasileira: a completa estetização da
desgraça e da desordem, revelada a partir de seu esvaziamento e da pura
apresentação como mercadoria. Desse processo, nem a arte, nem a arquitetura,
nem a educação puderam fugir. Por esse motivo, também a diretora e a equipe de
produção do filme tiveram de buscar outra locação para realizar suas gravações:
é que, passados tantos anos, o lixo comercial que hoje inunda a rua Maria
Antônia em São Paulo, com seus bares, academias e luzes de Led, nem sequer
deixa entrever a história que reside em suas paredes e calçadas.
Ao
longo de 85 minutos, os atravessamentos cênicos são diversos, de toda ordem, e
apenas ganham outros e novos contornos a cada cena: o que termina com o
incêndio de todo um prédio — ato que concretizava também o projeto de expulsão
de uma forma de vida e pensamento do centro de São Paulo para os confins da
Cidade Universitária, na Zona Oeste — parece iniciar-se também como uma
preocupação aparentemente legítima de parte do corpo docente em relação aos
estudantes: “A aula é a última coisa que importa para eles”, lamenta Leda,
professora, interpretada por Gabriela Carneiro da Cunha, para quem “Aristóteles
é Aristóteles: não importa muito o tempo em que a gente está”. A fala da
docente, que será agredida nos minutos finais do longa-metragem, abre um
difícil dilema que há tempos edifica a prática de trabalho de qualquer
professor minimamente atento e engajado: de que modo conjugar os conteúdos
objetivos, da aparente formação intelectual de um sujeito, com a urgência das
lutas e demandas práticas da vida? Até que ponto a segunda já funciona como a
maior de todas as matérias, garantindo um ensinamento e uma aplicabilidade que
se constrói junto à vida de cada um? Ora, por acaso existe vida e pensamento
fora de uma realidade social? Afinal, como se forma um filósofo em uma época de
horizontes bloqueados? Por que — e para que — se estuda filosofia?
Quantas
seriam as lições que ainda teríamos de aprender com Paulo Freire, esse ídolo e
amálgama do ódio direitista, sempre excludente, altamente classista? Quantos
sentidos e funções cabem na palavra estudante, chamados de vagabundos a céu
aberto, no meio das ruas? Em sala de aula, quais e quantos são os sentidos que
um estudo apurado acerca da definição de tragédia pode ainda assumir antes de
revelar-se como pura farsa antidemocrática? “Nem sempre dá pra fugir da
confusão”, exclama Ângela, personagem central da trama, interpretada por
Isamara Castilho. Daí a necessidade da escolha: afinal, em 1968, deve-se
preparar uma aula sobre Aristóteles, Pitágoras ou sobre a democracia? A
resposta, para além das predileções individuais de cada docente, traduz o engajamento
da própria universidade e o nível da responsabilidade intelectual que ela é
capaz de abarcar para si mesma, no processo de formação de um novo sujeito
político.
A
composição imagética dos quadros cênicos possui forte potência também naquilo
que não diz verbalmente, mas que se mostra e enuncia na leitura a partir do
cruzamento entre as próprias imagens. O entrelaçar de informações que se dá
entre uma professora explicando a definição aristotélica de tragédia, de acordo
com a famosa Poética grega, e os cartazes colados nas paredes, em defesa do
Congresso da UNE e da participação popular, de um movimento eficaz que unisse
estudantes e trabalhadores, dá o tom da urgência de um momento em que a
História se mostrava em seu real potencial de construção. Nos corredores, havia
a percepção de que o prédio da Faculdade de Filosofia ficara pequeno demais
para os sonhos e projetos de toda uma juventude revolucionária que, naquele
momento, defendia sobretudo o direito às vagas excedentes, à ocupação do espaço
público — projeto avesso a qualquer sistema ditatorial, de opressão. Quando o
que predomina é a prática da violência e o ódio gratuito à liberdade, “é
preciso preservar o nosso direito de escrever poesia”, exclama um docente,
engajado em seu fazer cotidiano, o qual efetivamente só alcança seu verdadeiro
sentido no enfrentamento entre a vivacidade e urgência das pautas e a prevista
passividade das carteiras.
Ora, se
poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a
ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar
saídas, alternativas e outros horizontes. Não à toa, em conversa dentro da sala
que guarda a importante urna de votação da UNE, cuja sede fora igualmente
incendiada já no ano de 1964, o conhecido episódio de espancamento dos atores e
de depredação dos cenários da montagem de Roda Viva, de Chico Buarque, em julho
daquele ano, no Teatro Ruth Escobar, aparece enquanto memória e lembrança,
produzindo suas marcas. Certamente, o país que espanca seus intérpretes e que
prende seus artistas outorga para si mesmo uma terrível identidade — identidade
essa da qual ainda hoje recolhemos frutos, uma vez que também ela ainda está
aqui.
Nesse
interregno, não existe possibilidade alguma de isenção. “Quando a Sra. se
envolver, vem falar comigo!”, diz à professora da unidade o então líder do
movimento estudantil, interpretado pelo ator Caio Horowicz, que personifica um
tanto da conhecida figura de José Dirceu. É a partir desta relação difusa e
complementar entre professor e aluno que, no 16º dos quadros apresentados, uma
imagem discreta tem força total: dois professores, Leda e Rubens, do alto do
andar superior, murmuram entre si que, certamente, aquilo vai acabar mal. O
olhar de cima para baixo, do alto da cátedra para o chão prático da luta,
aponta para a distância que parte do corpo docente toma da batalha que se firma
no avançar de cada quadro.
Em
depoimento dado no ano de 1987, o professor e pesquisador Simão Mathias,
presidente designado para organizar uma Comissão que se propusesse a averiguar
as minúcias de todo o acontecimento em 1968, reconheceu que havia três grupos
de professores em atividade naquele momento: “um grupo pequeno de professores
reacionários, um grupo de professores de centro, que era moderado, e um grupo
de professores que lutava pela verdadeira universidade” — porque não há
universidade, verdadeira em seu propósito, sem o respectivo engajamento a favor
da cidadania e da participação popular. Aqui, mesmo sabendo da distância e
diferença de viver em outro país, como não se lembrar de um teórico como
Adorno, por exemplo? Como não reverberar, na distância e no julgamento entre professores
e alunos, algo similar aos gritos dos estudantes franceses exclamando que as
estruturas não descem às ruas? O Brasil da Maria Antônia apresentava-se com
toda a particularidade das disputas nacionais, mas certamente não constituía um
caso de isolamento diante dos problemas basilares que se davam também em outros
cantos do mundo. Seu desenvolvimento seria diverso mas não alheio ao dos outros
países, para fazer valer uma expressão muito cara a toda a geração do Seminário
de Marx, que também encontrou régua e compasso nos encontros, corredores e
discussões de uma antiga Faculdade de Filosofia.
Se a
situação já não era passível de alguma angústia até aqui, mesclando todas as
possibilidades que um horizonte de luta pode ou não abrir, na contagem
regressiva da sequência dos quadros, é a partir do 15º deles que um nó na
garganta toma conta dos espectadores. Como pode uma mesma e única câmera, em um
incansável plano sequência, dar forma às atrocidades múltiplas do início de um
incêndio? No primeiro dos muitos Molotovs lançados contra a USP, incendiando a
parte superior do prédio, o espectador é forçado a fazer da lente da câmera seu
próprio olhar, reconhecendo que muito lhe escapará, mas que também isso é parte
da violência excedente de um regime que ultrapassou os limites de qualquer
exercício de cidadania e dignidade. De certa forma, também o espectador é
levado a vivenciar um tanto daquele ânimo que conduziu os estudantes em 1968 —
aquele que, nas palavras de Consuelo de Castro, traduziu-se em um difícil
questionamento: “O que fazer quando não há o que fazer?”. A angústia que toma o
espectador, em parte similar àquela que outrora fomentou a necessidade de
engajamento na luta armada, na urgência por uma ação e resposta, como um ato
desesperado que fosse também uma alternativa real às prisões, mortes e
desaparecimentos vividos, parece agora embriagar-se com o licor da experiência
da derrota que, como se sabe, deu o tom dos últimos anos. Naquele instante, em
1968, o mundo parecia estar em aberto, por vezes até sem a necessidade de
mediações entre a urgência do ato e os processos desejados. A bandeira do Brasil,
pendurada na entrada do prédio de Filosofia, parecia mesmo sinalizar um símbolo
em disputa — e que era o equivalente a todo um país, no limite da análise.
Todavia, quando o que existe de mais urgente é apagar o fogo e reparar o
tamanho de um estrago que já teve início e que não parece cessar nem mesmo por
um minuto — o ataque ao prédio de Filosofia durou cerca de 10 horas
ininterruptas —, a formulação de novas alternativas, a instauração de um regime
efetivamente democrático parece mesmo se tornar um exercício difícil de se
pensar e constituir. Em um depoimento de agosto de 1987, José Dirceu, então
líder do Movimento Estudantil, reconhecia: “Maria Antônia foi uma realidade que
só a força das armas conseguiu acabar”. Talvez seja importante sinalizar que as
armas usadas em 1968 já haviam sido parcialmente empregadas e prometidas em
momentos anteriores da História, como quando em setembro daquele mesmo ano a
intranquilidade reinou mais uma vez no prédio da Faculdade de Filosofia da USP
diante da ameaça do lançamento de bombas, que não chegaram a ser encontradas.
Ora, sem ter como negar ou fugir deste imbróglio, resta pensar: afinal,
poderiam os estudantes lutar com as mesmas armas de seus oponentes? Com quais
armas pode a educação lutar contra a polícia? Há algum parâmetro possível para
se comparar as duas forças? Com quais armas podem — e devem, sempre — lutar os
estudantes?
A
câmera que foca no vidro quebrado do prédio de Filosofia marca os estilhaços de
uma estrutura que não era apenas física, mas também de todo um projeto
democrático, um dia marcado pelo MCP, pelo Teatro de Arena e pelo Cinema Novo,
por exemplo. Um pouco de tudo isso se desfez com a destruição do prédio. Não se
tratava apenas de destruir um prédio, mas de demolir todo um projeto
civilizatório — que agora haveria de recuar para a emergência conservadora que
edificou alguns caminhos até aqui. A contagem regressiva dos quadros em cena
parece mesmo ser uma espécie de bomba relógio que, aos poucos, anuncia a
progressão da ruína da inteligência nacional. Errado seria imaginar que o
conflito apresentado se inicia com ovos e pedras e se encerra no embate entre
USP e Mackenzie. A verdade é que a Batalha da Maria Antônia foi um ataque
pensado e estruturado para destruir a Faculdade de Filosofia, tal como já havia
ocorrido com a sala do Grêmio do prédio em 1964 e 1967 (nas duas ocasiões,
pichada com dizeres como “CCC voltou!”, “Fora o comunismo!” e afins). “Ali [do
lado da Mackenzie] não tem estudante, não”, lembra ao espectador uma das
personagens, tentando explicar a gravidade dos acontecimentos e episódios a
Lilian, que ganha corpo, voz e entendimento a partir da interpretação de Pamela
Germano. Na contramão disso, a estudante que mora no prédio universitário, que
o ocupa e o transforma em seu lar (a mesma que elucida os conflitos a Lilian),
Maria Helena, interpretada por Julianna Gerais, dá indícios do que pode significar
a universidade e a própria educação quando seu sentido é mesmo civilizatório e
democrático, longe dos fantasmas e aberrações de grupos paramilitares. Talvez
uma parte desse furor possa ter sido reencontrada em 2015, com a ocupação das
escolas estaduais em São Paulo. Todavia, também nos anos mais recentes, a
resposta do Estado ainda seguiu exatamente a mesma: à tentativa de integração e
redação de um projeto civilizatório, a polícia logo responde com suas armas,
escudos e cavalos — e, no caso da Batalha da Maria Antônia, posicionando-se
ainda em defesa do Mackenzie e dos interesses privados, a despeito da coisa
pública, atendendo exclusivamente ao chamado da então reitora Esther Figueiredo
Ferraz. Ao que parece, não há modo mais transparente de o Estado dizer de que
lado efetivamente está.“Eu sou professora” é uma frase que nem sequer consegue
ser terminada, dada a brutalidade da resposta, que vem na forma de um soco
policial. À imagem, difícil de ver e de assistir, logo segue outra agressão,
dessa vez a uma estudante, lançada contra a parede e arrastada pelos cabelos.
Que tipo de país produzimos quando permitimos a agressão a estudantes e
professores? Que projeto civilizatório pode existir quando o saber é
substituído por balas que atravessam a cabeça de um estudante secundarista,
morto na calçada em frente ao prédio nos minutos finais do longa-metragem, em
memória de José Guimarães? E como não se lembrar também de Edson Luís e de
tantos outros estudantes e professores — todos mortos, desaparecidos, torturados?
Nada mais triste e desconfortante que ouvir a voz de uma estudante cantando
“Roda viva” e perceber o som de seu timbre falhando em “A gente quer ter voz
ativa”, enquanto a câmera percorre os corredores já cheios de feridas e de
feridos.
A Maria
Antônia seria, então, um retrato efetivo da potência de nossa manifestação e da
cruel consequência proveniente desse ato? Como saber exatamente o que ali se
encontrava em disputa diante da desproporcionalidade das ações? Como um ovo
arremessado contra uma estudante pode gerar o incêndio de todo um prédio e a
prisão de professores? Quantas muitas coisas perdemos nessa Batalha? Quantas
outras também teriam desaparecido junto àquele Livro Branco sobre os
acontecimentos da Rua Maria Antônia, relatório assinado por Antonio Candido,
Carlos Alberto Barbosa Dantas, Carlos Lyra, Eunice Durhan e Ruth Cardoso, a
responsável pelo registro da experiência destrutiva dos difíceis dias 2 e 3 de
outubro de 1968, finalizado cerca de um mês após o ocorrido e abafado logo em
seguida, sem a circulação imediata? De todas as personagens da trama, talvez
uma seja a mais emblemática: Vânia. Sempre ausente das cenas, desaparecida
política da ditadura, membro do Movimento Estudantil, renegada pela própria
família — que a tem como terrorista —, da personagem sobra apenas a circulação
da mais importante mensagem, aprendida com nossos vizinhos: Hasta la victoria
siempre! Se na cena inicial um jovem ainda no Ensino Médio desejava conhecer
mulheres mais livres e descoladas, o desenrolar das cenas permite que
justamente essas tomem o centro de todo o filme. Seja no espancamento dos
inimigos, seja na resistência em sala de aula ou ainda na mensagem deixada, que
decerto faz ecoar, são as mulheres que executam as ações principais do filme,
passando da resistência ao ato sexual, que agora também se mostra disforme, sem
contornos, mesclando a satisfação e o desconforto, a preservação de si mesmo,
princípio de uma pulsão sexual atuante, e a distorção da própria imagem. Se o
amor fez uma revolução enquanto afeto em 1968, também a sua imagem sofreu
distorções ao longo dos anos, cabendo também aqui às mulheres certo exemplo de
luta e participação. Especialmente às mulheres negras, duas das atrizes
principais, cujos contornos aparecem sempre relembrados nas menções, nas
paredes e cartazes, aos Black Panthers.
Em um
de seus depoimentos, o brilhante professor Paul Singer lembrou que a
transferência da FFCL à Cidade Universitária encerrou um ciclo, cujo fim foi
selado pela aposentadoria de Florestan Fernandes, José Arthur Giannotti,
Octávio Ianni, Bento Prado Jr., dentre outros. Com a aposentadoria compulsória
de vários docentes, determinada em 1969, um ano após todo o conflito, decerto
um modelo de trabalho e pensamento parecia encontrar seu limite, sem deixar
entrever o que viria a partir daí, garantindo para muitos apenas o desemprego e
o trabalho em outras profissões. Longe da ciência e da prática docente,
distante dos debates e discussões efetivos acerca da realidade nacional.
Quantas outras coisas também se encerraram naquele curioso cruzamento com a Rua
da Consolação ainda estão para ser analisadas, no desmonte frequente das
universidades e nas condições precárias e insalubres do trabalho em sala de
aula. Em respeito e em defesa de todas elas, A batalha da rua Maria Antônia,
que já ganhou os prêmios de Melhor Filme na Première Brasil do Festival do Rio
(2023), Melhor Longa-Metragem de Ficção (Escolha do Júri) no Festival de
Atlanta (2024) e o Prêmio Especial do Júri no Panorama Coisas de Cinema (2024),
move-se como um exercício de memória e resistência em um tempo de horizontes
ainda bloqueados.
Fonte:
Por Matheus Cosmos, no Blog da Boitempo

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