Como bacalhau virou prato típico da
Sexta-Feira Santa
Em seus quase 40 anos de sacerdócio, não
foram poucas as vezes em que o padre Eugênio Ferreira de Lima questionou o
costume, tradicional em muitas famílias católicas brasileiras, de não comer
carne vermelha na quaresma — alguns, apenas na Semana Santa; outros,
exclusivamente na Sexta-Feira Santa, dia em que o protagonista à mesa costuma
ser o bacalhau.
"Sobretudo porque bacalhau é mais caro
do que certas carnes", disse Lima, em troca de mensagens com a reportagem
da BBC News Brasil.
"Também não vejo sentido em fazer jejum
ou não comer carne e não dar o que deixou de comer para os mais pobres. Às
vezes me sinto uma voz isolada nesse sentido."
O questionamento levantado pelo religioso faz
muito sentido, sobretudo em tempos de inflação, que tem reduzido a oferta de
alimentos na mesa dos brasileiros.
Mas, ao mesmo tempo, é uma crítica que
instiga: de onde veio o costume do bacalhau na sexta-feira que antecede à
Páscoa?
Para especialistas, é uma história longa em
que não há uma única explicação. E, claro, tem suas raízes na influência de
Portugal enquanto país colonizador do que depois se tornaria o Brasil. Outra parte
da explicação está no fato de ser um produto que pode ser conservado por mais
tempo sem refrigeração.
"Quando o assunto é o 'não se pode comer
tal coisa' e 'é permitido consumir tais produtos', a regra não é tanto baseada
na questão econômica", explica o historiador André Leonardo Chevitarese,
professor titular do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e autor do livro Jesus de Nazaré: O Que a História Tem a Dizer
sobre Ele, entre outros.
"E o caso do bacalhau tem a ver com a
colonização portuguesa", observa.
"A chave para pensar essa questão, se
não é econômica, tem a ver com a questão religiosa. Por isso é tão tensa essa
questão. Nem todo cristão faz jejum ou abre mão de comer carne vermelha durante
a Semana Santa", lembra Chevitarese.
"O que leva alguém a consumir ou não
carne vermelha diz respeito a olhares, formas de se ler teologicamente o que
vem a ser o sacrifício de Jesus na cruz", completa ele.
É por isso que a abstinência de carne suscita
comentários que vão desde o "a Igreja Católica proibiu sem base
bíblica" aos que defendem que regulamentações oriundas de documentos ou da
tradição católica estariam, sim, ancoradas pelos ensinamentos dos livros
sagrados, como contextualiza Chevitarese, em "simbologias teológicas do
ato do sacrifício de Jesus".
"Ou seja: eu não discutiria questões
econômicas, mas pensaria em simbologias", conclui ele.
E aí há algumas questões que precisam ser
levadas em conta: a prática do jejum, o simbolismo do peixe, o prazer de comer
carne vermelha e, por fim, a disseminação do bacalhau no mundo lusitano.
• Jejum
"Tudo começa, na verdade, com o
jejum", afirma a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história
do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
"Desde os primeiros séculos do
cristianismo tal prática é observada, mas sem focar em um alimento específico.
Até porque, na era primitiva do cristianismo, havia essa preocupação de romper
com as práticas judaicas em alguns aspectos, embora a influência, do ponto de
vista cultural, fosse mais que evidente. É na Idade Média que se começa a
desenhar tal preceito."
Chevitarese ressalta que desde os primeiros
cristãos já havia uma reflexão sobre "pensar o sacrifício de Jesus"
experimentando alguma forma de abstinência.
"A ideia de jejuar, de ter uma ascese,
representaria, sob muitos aspectos, uma austeridade, um autocontrole diante dos
prazeres humanos, sempre em dimensão ao sacrifício feito por Jesus na
cruz", pontua.
O historiador, teólogo e filósofo Gerson
Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, ressalta
que essa ideia de jejum, no catolicismo, está ligada ao sacramento da
penitência, ou seja, um sacrifício feito para a remissão dos pecados.
"No catolicismo, é um conceito que
trabalha de modo muito forte com a ideia de reconciliação", diz Moraes.
Ora, a quaresma é, por assim dizer, o momento
perfeito para a ocorrência dessa experiência religiosa. “Porque é um período de
perdão, de reconstrução. E é dentro dessa lógica toda que aparece a abstinência
da carne, como um símbolo dessa vida que pede para ser reconciliada”,
acrescenta o historiador.
Afinal, a simbologia está na narrativa: a
quaresma é o percurso que resulta na Páscoa. E a Páscoa, a festa da
ressurreição, seria o ápice dessa história de renovação, essa possibilidade de
que cada um se torne um novo ser humano.
Moraes aponta que essa prática de abstinência
não costuma ser seguida por cristãos protestantes, evangélicos ou de outras
denominações.
Segundo ele, a raiz dessa diferença está
justamente na questão dos sacramentos — se para os católicos, são sete,
incluindo a penitência ou arrependimento dos pecados, protestantes têm apenas
dois: batismo e eucaristia.
• Peixe
Mas se a ideia é jejuar, por que o peixe
seria permitido?
São muitas as explicações que, somadas,
resultam numa unânime permissão. Em primeiro lugar, é preciso lembrar como
peixes eram importantes no contexto do Jesus histórico, ou seja, no dia a dia
daquelas comunidades do Oriente Médio de cerca de 2 mil anos atrás.
Não à toa, os primeiros seguidores de Jesus
são apresentados, nos evangelhos, como pescadores. "Ele tinha entre os
discípulos, pescadores. É lógico que o peixe é um alimento importante na
cultura judaica. Mas não há uma relação explícita, direta, [disso com a ideia
da troca da carne pelo peixe]", diz Moraes.
O que há, lembra Chevitarese, é uma questão
ortográfica. Peixe, no grego antigo, era ichthys.
Os cristãos primitivos, naqueles tempos em
que eram perseguidos por sua fé, decidiram usar o peixe como símbolo atribuindo
à palavra um acrônimo: Iesous Christos Theou Yios Soter, que significa Jesus
Cristo, Filho de Deus, Salvador.
"Assim, o consumo do peixe também passa
por um conjunto de simbolismos, na experiência, na prática cotidiana de muitos
cristãos", argumenta o historiador.
"As letras que compõem a palavra ichthys
formam o sentido que está muito relacionado ao cristianismo", afirma.
"Este peixe é, por si só, simbolicamente algo que se remete a Jesus como
salvador."
• Carne
vermelha
OK, havia a prática do jejum, já disseminada.
E havia o hábito do peixe, acrescido da simbologia toda. Mas qual o problema
com a carne vermelha, afinal?
A teoria mesmo veio apenas no século 13,
graças ao filósofo, teólogo e frade italiano São Tomás de Aquino (1225-1274),
um dos grandes pensadores do mundo medieval.
"Quando ele prescreveu uma orientação
aos fiéis a respeito do jejum, apontou a carne como um dos alimentos mais
prazerosos, juntamente com os laticínios", conta Medeiros.
"Fez isso porque o jejum era concebido
como o ato de se abster de algo que mais se gostava, não necessariamente
privar-se de carne. Mas a carne, em si, por satisfazer o prazer do paladar,
estava muito associada à luxúria, aos pecados sexuais, comumente chamados de
'pecados da carne'."
"A teologia [da abstinência de carne
vermelha] foi trazida por Tomás de Aquino", concorda Chevitarese.
Medeiros atenta para a recorrência de
exemplos que confirmam essa ideia. Por exemplo, a regra de São Bento, documento
atribuído ao monge São Bento de Núrsia (480-547) e que rege a ordem beneditina.
"Exigia que os monges só comessem carne
em caso de necessidade extrema ou por questão de saúde", afirma a
estudiosa do catolicismo.
Ela conta que o tema foi muito debatido em
sínodos da Igreja ao longo de séculos.
"Foi colocado em questão, inclusive, se
a carne moída e o presunto poderiam ser consumidos no lugar da carne [em si]
porque, uma vez triturados, teriam perdido suas propriedades 'carnosas'",
exemplifica Medeiros.
"Por fim, na Idade Média, os fiéis
observavam o chamado 'jejum magro', que previa a abstinência de carne em várias
épocas do ano, incluindo na sexta-feira", conta a pesquisadora. A regra
atual consta de dois documentos do Vaticano: o Código de Direito Canônico de
1917 e a Constituição de 1966, do papa Paulo 6º (1897-1978).
Não são poucos os artifícios retóricos que
buscam explicar a diferença entre carnes de diversos bichos, de modo a
autorizar o consumo do peixe e proibir o de outros animais, por exemplo.
"Há o elemento do peixe como uma carne
cujo sangue é frio, em detrimento ao sangue quente da carne vermelha dos
bovinos e do frango", comenta Chevitarese.
As nuances não são muito claras tampouco na
hora de definir o que é um peixe ou não. Nesse sentido, a religião não
necessariamente bebe nas fontes da ciência.
"Na tradição judaica, o peixe seria o
animal que tem escama e barbatana. Embora consideremos peixes muitos outros
animais marinhos que não necessariamente tenham escama e barbatana",
explica o historiador.
Ele relata que já se deparou com
entendimentos bastante afrontosos ao conhecimento taxonômico.
"Por exemplo, em Nova Orleans [nos
Estados Unidos] houve um bispo que disse que jacaré deve ser considerado um
peixe. Então os católicos de lá podem comer carne de jacaré na Sexta-Feira
Santa", conta.
"Tem culturas que encaram a capivara
como peixes, então católicos podem comer capivara na quaresma. E em Quebec [no
Canadá], um bispo disse que castores também são peixes…"
"Então, a regra varia muito sobre o que
é peixe [no âmbito religioso], como definir o que é peixe…" acrescenta
ele. "Há muitas brechas."
• Bacalhau
"Não há nenhuma prescrição da Igreja
sobre o uso do bacalhau", frisa Medeiros. Ela vai direto ao ponto: a
tradição pegou no Brasil "simplesmente porque fomos influenciados pelos
costumes portugueses". Ora, pois…
"Eles trouxeram a iguaria para cá no
século 19. Por ser considerado um peixe de longa conservação, muitos fiéis o
consumiam durante toda a quaresma", acrescenta ela.
Aí parece estar o pulo do gato — ou o salto
do peixe. Em tempos anteriores à invenção da geladeira, sobretudo em que a
quaresma ocorre no verão, como o Brasil, era preciso facilitar essa ideia de
comer peixe.
Como o bacalhau costuma ser curado, em um
processo com adição de sal e desidratação, ele é um produto que pode ser
conservado por mais tempo sem refrigeração. Em resumo: não foi por fé no
bacalhau, foi por puro pragmatismo.
O historiador Chevitarese explica que o
consumo do bacalhau foi trazido ao Brasil com a chegada da corte portuguesa ao
Rio de Janeiro em 1808. Aos poucos, a iguaria começou a estar disponível nos
famosos empórios de secos e molhados.
"A lógica da penitência impõe ao fiel
que ele obedeça, de livre e espontânea vontade, a um momento penitencial
importante", enfatiza Moraes. "A Páscoa é uma excelente oportunidade
para isso. Na Sexta-Feira Santa, então, o sujeito faz essa substituição [da
carne pelo bacalhau], que é uma coisa histórica, tradicional."
"Somos um país criado sob a influência
do catolicismo, então essa observância dos fiéis católicos vem desde a época da
colonização e é algo muito evidente, ancorado pela orientação dos padres daqui.
E o peixe [o bacalhau] apareceu como uma tradição da própria corte
portuguesa", diz ele.
O teólogo sintetiza: se o ritual da
abstinência veio com a colonização, a prática se acentuou com a chegada da
corte portuguesa ao Rio.
"Então o bacalhau, com praticidade de
algo que fazia parte da culinária portuguesa e não se estragava com facilidade,
foi inserido. E aquilo foi sendo ressignificado ao longo do tempo",
comenta.
Sim, porque com todos os ingredientes, é a
hora de lembrar da frase bíblica que apregoa que as coisas de Deus devem ser
deixadas a Deus e as coisas de César, a César. Porque o deus mercado é capaz de
fazer perpetuar as mais diversas tradições inventadas…
“O consumo do bacalhau, trazido pela corte,
caiu no gosto do brasileiro. Vivemos num modo de produção capitalista e quando
algo cai no gosto da prática mercantilista comercial, tudo vira mercadoria: tem
gente que vende e gente que consome", reflete Moraes. "Então está aí:
ficou sendo uma prática muito explorada até hoje. E os vendedores de peixe
agradecem."
Fonte: BBC News Brasil

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