Alejandro Galliano: A ingovernabilidade do
capitalismo 4.0
Em
tempos recentes, as sociedades ocidentais compartilham a sensação de estar
atravessando dois processos simultâneos: por um lado, uma aceleração
tecnológica e econômica; e por outro, uma crise dos valores e das instituições
políticas da democracia liberal, dominantes durante
os últimos 40 anos. Para muitos analistas, é irresistível vincular ambos os
processos: ou as novas tecnologias corroem a capacidade de governança das
instituições democrático-liberais, ou esse sistema político, que o Ocidente
consagrou no pós-guerra e tentou globalizar com relativo sucesso, tornou-se
obsoleto diante das mudanças tecnológicas e econômicas que já não consegue
conter. No entanto, seria conveniente não se deixar deslumbrar pela novidade da
aceleração. Em 1886, Werner von Siemens dizia: "Esta lei,
claramente reconhecível, é a da aceleração constante do atual desenvolvimento
da nossa civilização". É mais, poderia-se narrar toda a história do
capitalismo como a das sucessivas crises de
ingovernabilidade que
a disrupção técnica e econômica gera, e as novas formas de governabilidade que
essas mesmas tecnologias tornam possíveis.
Em
2001, no contexto da crise das pontocom, o coletivo
anarquista Tiqqun publicou "A hipótese cibernética".
Nele, sustenta-se que:
A
relação entre capitalismo e
cibernética se
inverteu ao longo do século: enquanto que, após a crise de 1929, foi construído
um sistema de informações sobre a atividade econômica para servir à regulação –
esse foi o objetivo de todos os planejamentos –, a economia, após a crise de
1973, faz descansar o processo de autorregulação social sobre
a valorização da informação (...). O problema da cibernética não é
mais o da previsão do futuro, mas sim o da reprodução do presente. Já não se
trata de uma ordem estática, mas sim de uma dinâmica de autoorganização. O
indivíduo já não é legitimado por nenhum poder: seu conhecimento do mundo é
imperfeito, seus desejos lhe são desconhecidos, ele é opaco para si mesmo.
Tiqqun se
dissolveu pouco depois do atentado contra as
Torres Gêmeas.
Seus herdeiros, do Comitê Invisível, chamaram a atenção do Buró Federal de
Investigação (FBI) e, mais tarde, ficaram envolvidos em um sabotagem
ferroviária na França que resultou em prisões e nove processos
criminais. Suas ideias têm um antecedente, citado explicitamente: o Manual
de sobrevivência, publicado por Giorgio Cesarano em 1974. Nele,
diz-se:
O
capital quer se tornar nada mais nada menos que o gestor cibernético e
quantificador do "Outro", o caldo de cultivo das "comunas"
autoanalíticas, onde cada um autogestione sua própria reestruturação
descentralizada (se transforme em uma "terminal biológica" do
computador que o minimiza estatisticamente…).
Próximo
ao operaísmo italiano e herdeiro tanto do marxismo quanto do vitalismo
irracionalista fascista, Cesarano participou da reflexão que seguiu ao
refluxo de 1968, e na crise do Estado de
Bem-Estar viu
uma nova forma de governança capitalista.
Meio
século antes de Cesarano, no alvorecer do fordismo e no meio da
inquietante paz que se estendeu entre as duas guerras mundiais, o jornalista e
funcionário estadunidense Walter Lippmann observou que o ambiente
tecnológico e informacional estava evoluindo a uma velocidade maior que a
espécie humana e sua capacidade de se adaptar: "A sociedade moderna não é
visível para ninguém nem inteligível de forma contínua como um todo (...). Já é
suficientemente ruim hoje (...) estar condenado a viver sob um bombardeio de
informações ecléticas". Ele propôs usar esse mesmo parque infotécnico para
"fabricar consenso" por meio da propaganda de um governo dirigido por
especialistas.
E um
século antes de Lippmann, o médico e geólogo escocês Andrew Ure publicou The
Philosophy of Manufactures [A Filosofia das Manufacturas], onde
concebia a fábrica como um autômato, e a mecanização, como uma via de
disciplinamento humano por uma força autorregulada:
"Por
causa da fraqueza da natureza humana, acontece que quanto mais hábil é o
trabalhador, mais obstinado e intratável tende a se tornar e, claro, menos apto
como componente de um sistema mecânico. O grande objetivo, portanto, do
fabricante moderno é, por meio da união do capital e da ciência, reduzir a
tarefa de seus trabalhadores ao exercício da vigilância e da destreza."
A
aparente crise de governabilidade que marca nosso presente é outro
capítulo da dialética entre um fluxo tecnoeconômico que abala e
eventualmente derruba as instituições e valores existentes para governar a
sociedade, e os novos mecanismos de governo que esse fluxo tecnoeconômico torna
eventualmente possíveis. Um resumo esquemático dessa dinâmica nos permitiria
situar melhor nossa época e tentar vislumbrar as possíveis saídas.
·
Quatro
versões do software capitalista
A fim
de evitar caracterizações opacas como "neoliberalismo", "fordismo",
"capitalismo manchesteriano" e um longo etc., optarei por periodizar
cada fase e transformação do capitalismo como versões de um mesmo software.
A metáfora é inspirada no já esquecido conceito de "indústria 4.0" proposto
por Wolfgang Wahlster, diretor do Centro de Pesquisas de Inteligência
Artificial da Alemanha, durante a Feira de Hannover de 2011. E se fundamenta no
fato de que qualquer sistema econômico é um conjunto de procedimentos para
circular matéria, energia e informação (o que comumente chamamos de
"riqueza"), ou seja, um software, que deve ser instalado
em um hardware: um ambiente mais estável de instituições, recursos,
territórios, etc. Assim, o capitalismo é um software que deve desenvolver
diferentes versões para enfrentar as sucessivas crises que gera sua própria
disrupção.
O capitalismo 1.0 corresponde ao
período da chamada "Revolução Industrial", que se estendeu durante a
primeira metade do século XIX, quando os fluxos mercantis que se vinham
desenvolvendo desde o século XVII se consolidaram em torno de um paradigma
tecnológico (a máquina a vapor e, por extensão, a termodinâmica) e um modelo de
negócios (a empresa capitalista conduzida por seu proprietário). A crise de
governabilidade do capitalismo 1.0 torna-se evidente se observarmos
que nasceu em um ambiente conflituoso (as guerras e revoluções que se sucederam
de 1756 a 1815) e os traços de seu desenvolvimento acelerado (a mecanização da
produção, a globalização do comércio e a proletarização do trabalho) alteraram
a estrutura arraigada das sociedades que ia incorporando em suas redes. Este é
o problema que atacaram tanto Andrew Ure como Charles Babbage, Henri de
Saint-Simon, Karl Marx e John Stuart Mill, entre outros, todos
interessados em governar, de uma forma ou de outra, a nova sociedade emergente
com suas próprias ferramentas, mas governá-la no fim das contas.
Para
meados do século, um conjunto básico de instituições (o padrão ouro, a
hegemonia britânica e as sucessivas "leis dos pobres") ordenaram a
aceleração do capitalismo 1.0. Mas, a médio prazo, essa mesma aceleração levou
a uma saturação da oferta, que resultou na grande depressão do final do século
XIX. Dessas crises, e dos diferentes experimentos políticos e empresariais
pensados para superá-las, surgiu o capitalismo 2.0, caracterizado por
um novo e mais complexo paradigma tecnológico (a eletricidade, a motorização e
a produção em série) e um tecido institucional mais robusto (Estados
intervencionistas, grandes sociedades empresariais oligopolistas). Sob
o capitalismo 2.0, as empresas se transnacionalizaram, e o consumo e o
trabalho se massificaram.
A nova
escala do capitalismo 2.0 tornou obsoleta a hegemonia britânica para
garantir uma ordem global e produziu tensões entre as nações e dentro das
sociedades que resultaram na grande crise de 1914-1945 (guerras, revoluções,
quebras financeiras). Essa crise de governabilidade foi resolvida
apenas durante a Segunda Guerra Mundial com a consolidação dos Estados Unidos dentro de um
sistema aparentemente bipolar (desde a década de 1960,
a União Soviética estava economicamente e tecnologicamente
atrás, e militarmente na defensiva).
As
preocupações de Lippmann e John Maynard Keynes sobre a
viabilidade de um sistema de tal escala encontraram eco no complexo tecido de
instituições públicas nacionais e internacionais montado em Bretton Woods com o objetivo
de garantir a governança nacional e global do capitalismo 2.0. Mas, tal
peso institucional não conseguiu evitar que a ordem fosse cedendo nas bordas:
desde o final da década de 1960, a periferia do mundo começou a resistir à hegemonia
dos Estados Unidos, a disciplina laboral começou a se ressentir nas grandes
plantas industriais e os novos atores da sociedade de massas (estudantes,
trabalhadoras, aposentados) começaram a reclamar maiores benefícios. O peso
fiscal das instituições que tentavam atender a esses conflitos por meio da
intervenção militar (warfare state) ou da compensação econômica (welfare
state) tornou-se intolerável para o capital, que aproveitou suas redes
transnacionais para se evadir de qualquer regulação estatal. Foi uma crise de
governabilidade da periferia, do trabalho e do capital.
A saída
que o capital encontrou para essa crise deu origem ao capitalismo 3.0,
baseado em um novo modelo de negócios: a empresa conectada a fluxos financeiros
globais e adaptada a ciclos de negócios curtos por meio da terceirização, offshoring e
mercantilização crescente de áreas inteiras da sensibilidade humana, desde o
lazer com o turismo até a imaginação com a publicidade. De alguma forma,
consagrou-se a "cibernética"
que Cesarano denunciou nos anos 70 e que Tiqqun viu crescer
no final do século XX. Ao redor desse modelo de negócios, desenvolveram-se
novas tecnologias (a microeletrônica, a informática, os organismos
geneticamente modificados), novas instituições internacionais ou velhas
instituições adaptadas ao novo sistema financeiro
global (a
Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o Sistema da
Reserva Federal, a Bolsa de Valores de Nova York).
Os
sistemas fiscais nacionais também se reconverteram: deixaram de distribuir a
riqueza para baixo, a fim de estimular a demanda agregada, e começaram a
fazê-lo para cima, cortando gastos sociais para reduzir impostos sobre o
capital e estimular o investimento. Também se manteve a velha hegemonia dos
Estados Unidos, atingida pela crise dos anos 70, mas revitalizada pelo colapso
do bloco comunista no final dos anos 80. Tratava-se de um sistema extremamente
frágil e instável, que no início do século XXI se sustentava em redes
financeiras tão aceleradas quanto volúveis e um endividamento sistemático dos
Estados, indivíduos e empresas.
A crise
de 2008 veio para derrubar o capitalismo 3.0. O capitalismo 4.0 é o que está
nascendo dessa crise, que já vai para sua segunda década. Seria fácil citar a
suposta afirmação do líder chinês Zhou Enlai com aquilo de que
"é muito cedo para opinar" (em referência à Revolução Francesa), mas a crise de
governabilidade global é tão evidente que não podemos suspender os
julgamentos até que a coruja de Minerva abra suas asas. Qualquer análise
histórica de um presente que se precipita para o futuro corre o risco de se
tornar obsoleta, mas, mesmo assim, vale a pena tentar.
O
paradigma tecnológico de nossa época parece se acomodar em torno da chamada
"inteligência
artificial"
(IA), na verdade, o aprendizado de máquinas em redes focadas em funções
específicas. A IA vem para expandir um sistema ciberfísico já em
curso, de crescente integração de objetos e pessoas com a web por
meio de plataformas. A difusão e adoção, muitas vezes experimental, da IA em
diferentes modelos de negócios altera tanto as formas das empresas (que podem
prescindir cada vez mais de ativos graças à digitalização e a um sistema de
financiamento nos fluxos financeiros globais), como a produção, o consumo e,
finalmente, a subjetividade. Essas microeconomias e modelos de negócios são
possíveis por uma infraestrutura física de escala quase planetária composta por
cabos submarinos, centros de dados, satélites, antenas, servidores, etc., e uma
disputa aberta em torno da hegemonia que governará este capital global. Essas
são as bases da atual crise de governabilidade.
·
Da
precarização à pós-normalidade
Para
caracterizar sumariamente a ingovernabilidade do capitalismo 4.0, vou
delimitar duas tendências que considero nodais, embora de nenhuma maneira
esgotem as características do sistema: a precarização global
e a deriva da web. São duas denominações arbitrárias,
comecemos pela primeira. Precarização é um conceito normativo porque
supõe o deterioro de uma condição normal (seja o trabalho formal, o
melhoramento das condições materiais, a previsibilidade de certos processos na
vida das pessoas, etc.). Denunciar uma "precarização" muito
disseminada no tempo ou dentro da sociedade implica assumir que essa
"condição normal" está deixando de ser.
Atualmente,
o deterioro da "normalidade" é impulsionado por dois fatores
estruturais e globais. O primeiro fator é a crise climática, um fenômeno difícil
de datar e que está longe de ser novo, mas cujos efeitos (inundações, secas,
variações térmicas atípicas, redução da biodiversidade) já fazem parte dos
cálculos e considerações de governos e empresas. Também há uma consciência
generalizada de que não se trata de fenômenos naturais, mas da irrupção de
forças planetárias em que se entrelaçam processos naturais com fatores
artificiais ou humanos: emissões de dióxido
de carbono,
epidemias sintetizadas pelo tráfego global, pântanos soterrados que inundam
cidades. É evidente que esses processos precarizam a existência humana ao
racharem o suporte material de nossa civilização e de nossas vidas individuais:
uma nova inundação ou incêndio florestal desloca populações inteiras, uma nova
variação de vírus pode se transformar em uma epidemia, etc.
O
segundo fator é a digitalidade como paradigma tecnoeconômico, do qual
o aprendizado automático por redes é apenas uma parte. A difusão e aplicação
dessas tecnologias a diferentes modelos de negócios e seu impacto na economia
já foram bastante estudados: a empresa se encolhe em startups, os ciclos de
negócios se encurtam, as intermediações (logística, comercialização) são
puladas, mais empregos são destruídos do que criados e os novos trabalhadores
são desassalariados. É a famosa "disrupção" que, além de seus ecos
schumpeterianos e seu viés ideológico, descreve uma dinâmica de instabilidade e
precarização.
Já na
década de 1990, os epistemólogos Silvio Funtowicz e
Jerome Ravetz falaram
da "era pós-normal" ou "pós-normalidade" para designar uma
escala de problemas que escapam aos parâmetros da ciência normal e à abordagem
dos especialistas. À medida que a precarização se universaliza montada sobre
dois fenômenos estruturais, globais e de tendência crescente como a crise
climática e a disrupção tecnológica, o problema epistemológico
que Funtowicz e Ravetz diagnosticaram há mais de 30 anos se
transforma em um problema global: a voz dos especialistas se deteriora, a
incerteza dá lugar à pura e simples ignorância, os dados se tornam maleáveis e
os valores sociais se tornam rígidos. Pudemos ver isso em 2020 nos debates
sobre o isolamento social e a vacinação obrigatória, já havíamos visto
anteriormente nos debates sobre a crise climática, e parece que veremos isso
com cada vez mais frequência em qualquer tema supostamente consensuado durante
os anos de hegemonia democrática liberal.
Para Ravetz e Funtowicz, essa ingovernabilidade responde à
contradição principal da modernidade: queremos viver melhor e temos os meios
técnicos para isso, mas desconhecemos o impacto material desses meios. Isso nos
leva ao segundo fator de ingovernabilidade.
Uma
rápida e canônica história da internet começa em 1969, quando duas
universidades da Costa Oeste norte-americana conseguiram conectar seus
computadores para se comunicar no âmbito do programa Arpanet, desenvolvido
pelo Departamento de Defesa durante a Guerra Fria. Vinte anos depois, em um
contexto de distensão geopolítica e maior acessibilidade das tecnologias, Tim Berners-Lee criou uma série
de protocolos e linguagens que conectavam essas informações em uma teia de
hipertextos, a web. Se em 1969 o Arpanet havia descoberto
um mundo imaterial, em 1990 a web traçou as ruas e sinais de trânsito que nos
permitiriam passear por ele de forma tranquila e
segura. Berners-Lee estava totalmente consciente do sentido político
de sua inovação: tornar a internet acessível a todos. A partir de 2001, após a
crise das "dotcoms", com a consequente concentração do setor
digital em um punhado de big techs, e no meio da virada
securitária após o atentado contra as Torres Gêmeas, começou a surgir a
web 2.0: redes sociais e plataformas que já não compartilham seus dados com a
web e retêm o usuário dentro delas por meio de uma série de gadgets e
funcionalidades internas. Aqui predomina o chamado design centrado no usuário,
o feedback constante da experiência dos usuários com as
interfaces digitais. Foi a primeira deriva da web:
se Berners-Lee fez da internet uma cidade, as plataformas são bairros
privados que exploram recursos públicos sem contribuir para seu
desenvolvimento.
Desde
então, se acumularam análises de diferentes tons e qualidades que falam sobre o
deterioramento da web como espaço de troca e seu impacto sobre os usuários como
um novo sujeito social. Desde a "enshittification" (decadência
das plataformas) (Cory Doctorow), a "silicolonização
do mundo" (Éric Sadin) e o "capitalismo de vigilância" (Shoshana Zuboff), até abordagens mais complexas e atraentes
como o "tecnofeudalismo"
(Cédric Durand),
o "tecnoceno" (Flavia Costa) ou o
"nanofundismo" (Agustín Berti). A priori, todas
essas análises se concentram na capacidade de controle social das novas
tecnologias. Existe um ecossistema digital envolvente que permite capturar
dados de cada um de nós, fundi-los em um montão estatístico e devolvê-los a um
indivíduo redefinido como perfil de targeting, que vai desde um
potencial cliente até um possível terrorista. O volume de informação extraída
dos usuários da internet e processada permite cruzar e escalar os antigos dados
biométricos com os novos dados comportamentais registrados
pela digitalidade. O resultado é um sujeito plano e transparente, do
qual é mais importante prever o comportamento do que compreender os motivos.
No
entanto, seria um erro considerar o novo sujeito como argila dócil nas mãos do
algoritmo. A web 2.0 é um recipiente de sites e programas formatado
por seus usuários, que foram projetando plataformas e aplicativos, e
transformando uma rede pensada para o intercâmbio e compartilhamento de
agradáveis sujeitos neoliberais em um espaço de reafirmação identitária e
cultivo de seguidores. O mesmo pode ser dito sobre muitas redes sociais,
videogames, etc. Foi substituída uma lógica de comunicação massiva e industrial
(poucos meios de comunicação produzindo informações homogêneas para muitos
usuários) pela horizontalização da rede: todos os usuários produzindo
informações personalizadas para pequenos grupos. O feedback dentro
desse ecossistema derivou em uma conectividade cada vez menos
orientada ao intercâmbio e mais voltada à reafirmação de um "eu"
tribal e emocional, sobrecarregado de informações polêmicas que não consegue
absorver. Tem que escolher, além de qualquer evidência. E no exercício dessa
liberdade não racional rompe qualquer previsibilidade e ordenamento
coletivo. O mesmo ecossistema tecnológico que nos tornou transparentes
para um algoritmo nos tornou opacos para nós mesmos.
Vários
analistas incorporam esse ambiente tecnológico como um fator
da ingovernabilidade atual. Para William Davies, a sobrecarga
informativa não só desautorizou as vozes de especialistas com um fluxo de dados
tão precisos quanto variáveis, mas também permitiu "personalizar" a
verdade. No século XXI, a autoridade dos dados deixou de ser um sol que
brilha para todos e passou a ser um conjunto de estrelas cadentes ao redor de
cada um. Para Martin Gurri, em algum momento do
século XXI as novas tecnologias deram voz a um público massivo, que abandonou o
papel passivo ao qual havia sido reduzido durante aquele século pelo mainstream das
instituições autorizadas e concentradas, que Gurri chama de
"Centro". Agora esse público se organiza em seitas de opinião
marginais, que o autor chama de "Fronteira": "O resultado é uma
paralisia por desconfiança. Já está claro que a Fronteira pode neutralizar o
Centro, mas não substituí-lo. As redes podem protestar e derrubar, mas não
governar. A inércia burocrática confronta o niilismo digital. A soma é
zero."
As
análises de Davies e Gurri, embora relativamente recentes, ainda
tomam como base a já antiga web 2.0. Hoje entramos em uma
terceira deriva desse ambiente digital. A IA não faz mais do que
extremar as tendências sociais da web 2.0. Trata-se de uma tecnologia – o
aprendizado automático por redes – que vem sendo desenvolvida desde 1943, mas
que passou por um "inverno" de desinvestimento durante as décadas de
1970 e 1980, quando se espalhou a desconfiança em replicar o funcionamento
neuronal com eletrodos. O desenvolvimento da web nos anos 90 forneceu a essas
redes um volume de dados até então inacessível, e assim retornou a
"primavera" da IA. Em 2012, uma equipe liderada por Geoffrey Hinton e associada
ao Google apresentou uma
rede neural artificial capaz de reconhecer objetos com 70% mais precisão do que
outras redes. Nascia o "aprendizado profundo": o processamento
paralelo por várias redes neurais e o treinamento dos algoritmos por
retropropagação em direção a um objetivo específico. O design centrado no
usuário segue sendo fundamental: "Não vamos compreender plenamente o
potencial e os riscos sem que os usuários individuais realmente brinquem com
ela", diz Alison Smith, responsável pela IA da consultoria Booz
Allen Hamilton]. Essa nova primavera da IA se alimenta dos
dados e conteúdos que brotam do seio da web. Os preconceitos e estereótipos, a
desinformação deliberada, a violação dos direitos autorais e a agressividade
fazem parte dos nutrientes que ela assimila.
Se até
10 anos atrás a cidadela da internet se preocupava com a pirataria, o discurso
de ódio e as teorias da conspiração que assolavam subúrbios como
o 4chan ou o Megaupload, agora esse material emana dos prédios
do centro: Google, Microsoft, Meta, Amazon, Alibaba, Baidu e Tencent.
Todos embarcaram em uma corrida para desenvolver uma tecnologia que
amplificasse uma única entrada: nós mesmos, a irracionalidade humana. Se a
web estava ligada desde o início ao substrato irracional da humanidade,
a IA digere essa internet para dar origem a algo humano, demasiado
humano. E ingovernável.
·
"China
ou o caos": em busca de uma governança 4.0
Gurri considera
que essa nova ingovernabilidade pode levar tanto ao "caos quanto à China". A dicotomia é
pertinente. De um lado, estão aquelas projeções que se concentram no novo
paradigma tecnoeconômico como mecanismo de controle e veem
a China como um laboratório replicável no Ocidente.
Um ecossistema digital semicerrado, com aplicativos nativos
(Baidu, Weibo, TikTok), centros de dados próprios, empresários
vorazes e uma quantidade imensa de dados que ficam dentro do mesmo ecossistema,
gerido por um Estado com menos barreiras legais para intervir nesse ecossistema
e na vida dos seus usuários.
Se
a China conseguiu desenvolver seu próprio ecossistema digital, outros
também tentarão. Ainda mais quando há novas fronteiras a serem conquistadas: a
inteligência artificial e a computação quântica, entre outras. A
desglobalização que caracteriza o capitalismo 4.0, com seu reshoring e
disputas pela hegemonia, também pode se estender à web. Esse modelo de
governança fechado e desglobalizado pode permitir que ressurjam certo grau de
diversidade tecnológica e cultural, após meio século de homogeneização global
das tecnologias e consumos. Mas também pode apresentar problemas de governança
mundial, ao fragmentar o capitalismo 4.0 em blocos competitivos entre
si, sem uma hegemonia clara que os regule.
Por
outro lado, existe a opção caótica: transformar a ingovernabilidade em uma
governança por si só. Um dos ensaios mais vendidos sobre isso é Os
engenheiros do caos, do consultor ítalo-suíço Giuliano da Empoli.
Essencialmente descritivo e consideravelmente superficial em suas
conceituações, o livro aborda vários "engenheiros do caos"
(Gianroberto Casaleggio, Dominic Cummings, Steve Bannon, Milo
Yiannopoulos, consultores políticos ou especialistas em marketing que entenderam
que, na opinião pública digital e na nova política, "o jogo já não
consiste em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, pelo
contrário, em inflamar as paixões de tantos grupos quanto possível e depois
somá-los, até mesmo aos predeterminados. Para obter uma maioria, não irão
convergir para o centro, mas se unirão aos extremos". Mais uma vez, o
ambiente digital é determinante para essa engenharia do caos:
Esses
engenheiros do caos estão no caminho de reinventar a propaganda adaptada à era
dos selfies e das redes sociais e, como consequência, transformar a própria
natureza do jogo democrático. Sua ação é a tradução política do Facebook e Google.
É naturalmente populista, porque, assim como as redes sociais, não admite
qualquer tipo de mediação e coloca todos no mesmo plano.
Aqui
também é preciso não exagerar na novidade: já em 1942, Franz
Neumann considerava que a estrutura e a prática de poder do regime
nacionalsocialista alemão eram essencialmente caóticas. Se a proposta é
governar por meio do caos, inflamar as paixões e destruir as mediações, também
temos um modelo oriental: a Grande Revolução
Cultural Proletária chinesa, proclamada e conduzida por Mao Zedong entre 1966 e
1976, uma mobilização exaltada de juventudes e milícias não apenas contra os
restos da cultura burguesa (o Partido Comunista Chinês estava no poder desde
1949), mas contra qualquer forma de autoridade (a família, os professores, os
especialistas e intelectuais) e, especialmente, contra os próprios líderes do
Partido, suspeitos de querer burocratizar a revolução como o
"revisionismo" soviético posterior a Stalin. No centro dessa
espiral de caos, o próprio Mao reforçava seu poder e liderança pessoal.
Dentro dos modestos limites materiais da República Popular da China, o
maoísmo também explorou seu ambiente tecnológico: o governo instalou um
sistema de alto-falantes nos telhados de cada prédio de apartamentos, nas
escolas rurais e nas bases militares, transmitindo a rádio estatal em alto
volume desde as 6 da manhã.
Como
modelo para o Ocidente, a engenharia do caos maoísta não tem muito a oferecer:
extinguiu-se no próprio apetite de destruição, colapsou economicamente a nação
e não conseguiu evitar a efetiva burocratização da liderança comunista.
No
entanto, para o cientista político Roland Lew, o maoísmo,
involuntariamente, lançou as bases para o posterior desenvolvimento acelerado
do capitalismo na China: destruiu grande parte das instituições
tradicionais que poderiam obstruir o fluxo de capital e disciplinou tanto a
sociedade quanto a liderança comunista para a sobrevivência e flexibilidade
diante da constante instabilidade. Enquanto a Rússia saltou de um
comunismo planejado para um capitalismo caótico, a China conseguiu
transitar de um comunismo caótico para um capitalismo planejado. Talvez a
maior lição maoísta que o Ocidente possa extrair seja que a engenharia do caos
prepare o caminho para um capitalismo 4.0 ordenado. E é
difícil não pensar que a democracia liberal hoje seja vista como uma dessas
instituições e práticas tradicionais que podem obstruir o fluxo de capital.
Fonte: Nueva Sociedad

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