sábado, 19 de abril de 2025

Uma nova ordem mundial?

Em 2 de abril, Donald Trump anunciou a imposição de tarifas abrangentes a países de todo o mundo, atingindo aliados e inimigos com enormes barreiras comerciais, no que equivaleu a um ataque direto à ideologia do livre comércio. Uma tarifa de 34% seria imposta à China, 20% à União Europeia, 49% ao Camboja, 48% ao Laos, 46% ao Vietnã e assim por diante: números elaborados de acordo com uma fórmula matemática simplificada, na qual o déficit comercial de mercadorias dos EUA com qualquer país era dividido pelo valor das importações dos EUA para esse país, e esse número era então dividido pela metade.

Wall Street Journal lamentou que Donald Trump estivesse “explodindo o sistema de comércio mundial” e voltando à “velha era do protecionismo comercial”. Para o Financial Times, foi “um ato surpreendente de automutilação”, que “derrubaria a ordem econômica global e mancharia a prosperidade dos EUA”. Os investidores logo entraram em colapso. Os principais índices de ações despencaram e cerca de US$ 10 trilhões em valor de mercado sumiram.

À medida que os rendimentos dos títulos subiam, uma Casa Branca nervosa parecia mudar de rumo, reduzindo a tarifa para 10% para a maioria dos países, com a notável exceção da China, onde agora foram aumentadas para 125%. Outros aumentos estão suspensos por noventa dias. Uma vez terminado esse período de espera, não está claro se o plano original do “Dia da Libertação” de Donald Trump será restabelecido, diluído ou descartado. Mas mesmo em sua forma atual, as tarifas representam uma grande mudança na economia global – que os comentaristas de todo o espectro estão lutando para interpretar.

A ideia de que a agenda de Donald Trump é ditada pelas gigantes empresas de tecnologia ficou para trás, já que poucas empresas têm mais a perder com as tarifas do que a Amazon e a Tesla. Também não é verdade, como alguns argumentaram, que as tarifas são uma resposta ao declínio do capitalismo americano. Antes da posse de Donald Trump, a economia dos EUA era relativamente robusta, com alto crescimento da produtividade, fortes investimentos e gastos com P&D e retornos maciços para suas multinacionais.

Outros especularam que Donald Trump quer pressionar os Estados a aderirem a um “Acordo de Mar-a-Lago” global, no qual o dólar seria enfraquecido para reforçar a competitividade da manufatura americana. Mas isso também é implausível, uma vez que desestabilizaria profundamente o sistema do dólar, que é um dos principais pilares do poder global dos EUA que Donald Trump está obcecado em aprimorar.

As tarifas de Donald Trump parecem, pelo valor de face, representar uma ruptura com o papel histórico do Estado americano de supervisionar o capitalismo global. Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA têm perseguido firmemente um único projeto hegemônico: construir um “império informal” composto por estados soberanos oficialmente independentes ligados entre si por meio de fluxos transfronteiriços de comércio e investimento.

Os EUA assumiram a liderança na criação do sistema de Bretton Woods, cujos controles e salvaguardas permitiram a outros países alguma flexibilidade na implementação de políticas fiscais e monetárias independentes e que forneceram uma estrutura estável para buscar uma maior integração, eliminando tarifas e, eventualmente, barreiras não tarifárias. Na década de 1970, Bretton Woods foi deixado de lado e substituído pelos fluxos contínuos de comércio e investimento da globalização neoliberal: uma ordem integrada unida pela livre circulação de capital sob a liderança americana.

Por meio desse processo, o Estado dos EUA passou a representar não apenas os interesses de sua burguesia doméstica, mas também os do capital global, impondo um “estado de direito” internacional para proteger os direitos de propriedade e coordenar entre diferentes nações. Isso envolveu a negociação de acordos de livre comércio, bem como a criação de uma rede de instituições internacionais – FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio – que transformaram as estruturas internas de cada Estado-nação, à medida que assumiam a responsabilidade de garantir as condições para a acumulação internacionalizada.

Criar um mundo contínuo de acumulação de capital também significava controlar a inflação e espremer o trabalho. Isso exigiu a centralização do poder estatal dos EUA nas agências executivas mais diretamente responsáveis por gerenciar essa internacionalização, especialmente o Federal Reserve, o Departamento do Tesouro e o Escritório do Representante de Comércio dos EUA – cujo isolamento das pressões eleitorais ajudou a afastar os desafios protecionistas.

A nova ordem global sustentou uma aliança simbiótica entre o capital financeiro e industrial. Ao permitir o aumento da mobilidade do capital, a financeirização desencadeou poderosas forças competitivas que serviram para disciplinar tanto os Estados quanto os trabalhadores – restaurando os lucros e resolvendo a crise da década de 1970.

O Estado neoliberal, contudo, perdeu legitimação porque teve de atender às necessidades de acumulação, revertendo programas sociais por meio da imposição de austeridade permanente, enquanto esvaziava as instituições democráticas por meio da burocratização do poder estatal. Como resultado, a política social-democrata chegou a um impasse, já que nenhum setor do grande capital estava disposto a apoiar um compromisso com os trabalhadores que pudesse ter legitimado mais uma vez a acumulação. O fracasso da esquerda em oferecer um caminho plausível para sair do agravamento das consequências sociais abriu caminho para as vitórias eleitorais de Donald Trump.

A crise de legitimação da qual o trumpismo emergiu foi resultado da força do capital norte-americano, não de seu declínio. Donald Trump agora está tentando explorar a relativa autonomia do executivo, um baluarte histórico da agenda da globalização, para minar essa ordem global. As tarifas têm sido uma ideia fixa para Donald Trump, que parece acreditar que elas são a chave para o rejuvenescimento do capitalismo nacional. No entanto, há também uma dinâmica política mais profunda em ação aqui. Partes da direita nacionalista se uniram em torno da visão de que o papel dos EUA como gerente do sistema mundial tem um custo muito alto.

Os “trabalhadores americanos”, argumentam eles, sofreram com a desindustrialização, bem como com a pressão descendente sobre os salários e a migração; pequenas e médias empresas têm lutado para lidar com importações baratas e um dólar alto; e a sociedade em geral viu recursos excessivos canalizados para a manutenção de um elaborado estado imperial.

Donald Trump apresenta esses problemas como resultado de concessões feitas por governos anteriores para trazer outros Estados para o sistema liderado pelos EUA. Ele afirma que, assim, foi diminuída a supremacia econômica e política americana – como indicado pelo déficit comercial do país, especialmente em relação à China, cuja ascensão econômica deu crédito a essa narrativa. A solução, dizem-nos, é reverter os “maus acordos comerciais” e reconstruir a capacidade de fabricação após décadas de deslocamentos da produção para o exterior (offshoring) e, assim, de internacionalização da produção: um plano que envolveria tirar o financiamento de seu pedestal e substituí-lo até certo ponto pela indústria doméstica.

Mas isso é muito difícil de fazer e quase certamente não funcionará. A globalização não pode ser simplesmente revertida com golpes de caneta que criam tarifas. Isso, para evolver, envolveria muito mais do que simplesmente impor tarifas; exigiria uma série de controles de capital, bem como uma política industrial abrangente – medidas que constituiriam um desafio mais sério para as frações dominantes de capital do que qualquer coisa que Donald Trump esteja disposto a contemplar. [Tudo isso, entretanto, enfrentaria o problema da taxa de lucro declinante].

A sua decisão abrupta de mudar de rumo das coisas assim que encontrou os limites estruturais dos mercados financeiros ressalta o fato de que a autonomia do Estado neoliberal permanece estritamente relativa. Somente um governo com uma clara determinação de enfrentar o capital e as forças sociais e políticas para perseguir significativamente esse desafio seriam capazes de realizar tais ambições.

Isso não é, no entanto, subestimar o impacto das tarifas – tanto as que já foram implementadas quanto as que ainda estão por vir. A política comercial inconstante de Donald Trump terá efeitos duradouros sobre o investimento e a confiança das empresas e, nos próximos meses, ainda podemos ver uma guerra comercial em espiral – uma situação que a globalização liderada pelos EUA há muito evita.

Mesmo que Donald Trump recue totalmente ou perca a Casa Branca para os democratas na próxima eleição, outros estados ainda terão perdido a fé na administração americana, o que dificultará o retorno ao regime anterior de livre comércio. Enquanto isso, as tarifas certamente gerarão pressões inflacionárias, agravando as crises sociais que ajudaram a impulsionar Donald Trump ao poder e aumentando a probabilidade de uma recessão.

Dados os efeitos prejudiciais da globalização sobre os trabalhadores, é surpreendente que setores do movimento trabalhista – principalmente o líder do United Auto Workers, Sean Fain – tenham apoiado as tarifas como um meio de derrubar a ordem existente. Mas as tarifas por si só são insuficientes para reverter a globalização. Ademais, essas tarifas que têm sio impostas não farão nada para fortalecer o poder da classe trabalhadora, nem para melhorar os padrões de vida da população em geral; na verdade, elas provavelmente farão o oposto.

O retorno das empresas (onshoring) não significará necessariamente o retorno de “bons empregos” ao coração do gigante do Norte, nem interromperia o processo de desenvolvimento tecnológico responsável por uma grande proporção das perdas de empregos na indústria. Provavelmente assumirá a forma de investimento no Sul em que prevalecem de baixos salários e trabalhadores não sindicalizados, o que ameaça minar ainda mais a solidariedade de classe.

Há também uma forte chance de que as políticas de Donald Trump sirvam para desacreditar os desafios da esquerda ao livre comércio e à globalização no futuro. Concentrar-se estritamente nas tarifas desvia a atenção da tarefa mais urgente de construir um movimento da classe trabalhadora que possa lutar pela redistribuição de renda, melhoria da segurança no emprego, programas sociais e uma transição verde.

O que está em jogo aqui não é a “competitividade americana”, mas sim a necessidade de democratizar o investimento. Isso envolveria a imposição de limites à capacidade do capital de disciplinar Estados e trabalhadores por meio da ameaça do movimento de “saída” (exit). Mas também significaria desenvolver mecanismos de planejamento por meio dos quais as forças populares possam exercer controle sobre os recursos da sociedade. Na ausência de tais mecanismos, será impossível construir um sistema comercial que atenda aos trabalhadores dentro e fora dos EUA.

¨      O boicote da Europa aos EUA é real e já está sendo sentido em um de seus setores mais lucrativos: o turismo

David Pereira tem 53 anos e mora na França. Como muitos europeus, cresceu imerso na cultura dos Estados Unidos. As músicas que ouvia, os filmes do cinema da cidade, os carros dos sonhos — tudo vinha de lá. Quando conseguiu juntar dinheiro, decidiu viajar e conhecer o país de perto. E não foi só uma vez. Ele já esteve nos EUA quase uma dúzia de vezes e, há dois anos, percorreu os parques nacionais da Costa Oeste.

A ideia era voltar neste verão, agora com a família, para visitar Yellowstone. Mas depois de dois meses de governo Trump, Pereira mudou de planos. Em entrevista à CNN, contou que decidiu cancelar a viagem. E ele não é o único.

O setor de turismo dos EUA já começou a sentir os efeitos dessa mudança de clima entre os dois lados do Atlântico. Agências de viagem na Europa relatam uma queda no interesse, e autoridades americanas falam em diminuição da demanda.

O dado mais claro veio em uma reportagem do Financial Times, com um título direto: “Turistas europeus cancelam viagens aos EUA por causa das políticas de Trump”. Segundo números da Administração de Comércio Internacional, a quantidade de visitantes da Europa Ocidental que passaram ao menos uma noite nos EUA caiu 17% em março, em comparação com o mesmo mês de 2024.

Uma queda importante para uma indústria que representa cerca de 2,5% do PIB americano. E tem mais: a rede hoteleira francesa Accor informou que as reservas para o verão caíram 25%.

<><> E não é só impressão

Apesar de Trump estar na presidência há menos de três meses, começam a surgir números e relatos que apontam para uma mudança concreta — e negativa — no turismo dos EUA.

Financial Times compilou dados que mostram queda no número de turistas vindos de países como Áustria, Reino Unido, Suíça, Alemanha, Noruega e Espanha. Em alguns casos, as perdas ultrapassam 20%. Além disso, também foi detectada uma redução nos voos de diferentes regiões com destino aos EUA.

<><> A frase tem se repetido no setor: “algo está acontecendo”

Segundo a Administração de Comércio Internacional (ITA), o total de visitantes estrangeiros que viajaram aos EUA em março foi 12% menor do que no mesmo mês de 2024 — e esse número nem inclui turistas do Canadá e do México, que também mostram desinteresse pelos destinos americanos.

É verdade que em 2024 a Semana Santa caiu em março e em 2025 será em abril, o que pode influenciar um pouco a comparação. Mas para o setor, a tendência é mais profunda. A consultoria Tourism Economics foi clara: “Está acontecendo algo... e é uma reação a Trump”.

No começo de abril, a rede hoteleira francesa Accor confirmou à Bloomberg TV que as reservas feitas por europeus para visitar os EUA neste verão despencaram 25%. Os turistas estão preferindo destinos como Canadá, América do Sul e Egito.

Na Espanha, a Confederação de Agências de Viagem (CEAV) também afirmou que nota uma perda de interesse dos viajantes pelo país norte-americano.

Diante desse cenário, a Tourism Economics atualizou suas previsões: em fevereiro, esperavam uma queda de 5% no turismo dos EUA em 2025. Agora, a expectativa já é de um recuo de 9,4%. A operadora francesa Voyageurs du Monde também relatou à CNN uma queda de 20% nas reservas desde a posse de Trump.

<><> Mas afinal… por quê?

Para o CEO do grupo Accor, talvez a resposta esteja ligada a um sentimento mais subjetivo: “Provavelmente é a ansiedade de entrar em um território desconhecido”, disse ele em entrevista à Bloomberg.

O fato é que essa mudança de comportamento dos turistas acontece num contexto geopolítico tenso. O retorno de Trump à Casa Branca provocou um distanciamento entre Washington e Bruxelas, reacendeu conflitos na guerra comercial, levantou discussões sobre recessão, defesa europeia e, segundo Paul English — cofundador do Kayak —, também mexeu com a reputação internacional dos Estados Unidos.

Além disso, vários países europeus revisaram suas recomendações para viagens aos EUA. Algumas atualizações incluem alertas sobre políticas migratórias e de fronteira mais rígidas, além de mudanças que afetam diretamente pessoas trans.

A Dinamarca chegou a emitir um aviso oficial, e o Ministério das Relações Exteriores da Espanha também atualizou suas diretrizes de segurança para quem pretende viajar ao país.

Somam-se a isso as frequentes notícias sobre detenções nas fronteiras — tudo isso acaba impactando a imagem e o apelo dos EUA como destino turístico.

<><> E não é só a Europa que está mudando de postura

Na China, o governo já emitiu alertas sobre o “deterioramento das relações econômicas e comerciais” com os Estados Unidos. A orientação aos cidadãos é clara: “Avaliem cuidadosamente os riscos de viajar aos EUA e viajem com precaução”.

No Canadá, os números também chamam atenção. Segundo o órgão oficial de estatísticas, os deslocamentos de carro com destino aos EUA caíram 23% em fevereiro. O tráfego aéreo teve um recuo menor, mas ainda significativo: 13%.

Esses dados, somados aos da ITA, apontam para um movimento maior — que vai além do turismo. Há meses, especialmente na Europa e no Canadá, cresce um boicote silencioso a produtos dos Estados Unidos.

O consumo tem se voltado para mercadorias locais ou de outros países. Algumas plataformas e perfis nas redes sociais passaram a divulgar listas de produtos americanos com sugestões de substitutos. Entre eles estão páginas como Made in CA, Boykot varor fra USA e Choose.Europe.

Na Dinamarca, algumas lojas decidiram ir além e passaram a identificar com estrelas os produtos fabricados dentro da Europa.

 

Fonte: Por Stephen Maher e Scott M. Aquanno, em A Terra é Redonda /Xataka.com

 

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