segunda-feira, 21 de abril de 2025

A “boiada do petróleo” passa na foz do Amazonas

No início da pandemia de COVID-19, em maio de 2020, o então ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro, Ricardo Salles, sugeriu numa reunião ministerial que era a hora de “passar a boiada” sobre a legislação ambiental. Salles queria aproveitar o foco da imprensa na doença, que apavorava a população, para provocar estragos no clima e no meio ambiente, temas tão desprezados tanto por ele como por seu chefe.

Mas, nos quatro anos de Bolsonaro na presidência, assim como nos dois anos e meio de Michel Temer no cargo, não houve qualquer oferta ao mercado de áreas para exploração de combustíveis fósseis na foz do Amazonas. Aliás, foi no governo Temer que a então presidente do Ibama, Suely Araújo, hoje coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC), negou uma licença para a francesa Total Energies perfurar um poço de petróleo numa área próxima ao atual FZA-M-59, da Petrobras. Foi uma decisão técnica, baseada nas evidências do alto risco que tal empreendimento representa para uma região ao mesmo tempo rica e frágil em termos ambientais. A foz só seria lembrada no final de 2022, no apagar das luzes do governo Bolsonaro, quando a petroleira estatal brasileira começou o processo de licenciamento no órgão ambiental para o bloco 59.

Por isso, é chocante que, em seu esforço para reconstruir uma Petrobras combalida pela tentativa de privatização do governo anterior, Lula esteja olhando para o passado fóssil ao invés do futuro renovável. Justo o governo que colocou o Brasil de volta ao multilateralismo climático abandonado por seu antecessor, vem agora oferecer 47 blocos na foz do Amazonas a petroleiras. A confirmação da oferta dessas áreas no leilão que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) promoverá em junho foi feita na 2ª feira (14/4).

A inclusão destes blocos no certame contradiz frontalmente a tentativa de Lula de protagonizar a agenda global de transição energética. E também coloca em xeque suas prioridades: se o interesse privado de um punhado de empresas por explorar petróleo no Brasil “até a última gota” ou a segurança e o bem-estar da população brasileira diante dos eventos extremos oriundos das mudanças climáticas, que têm na queima de combustíveis fósseis sua principal causa.

Sem falar que a venda dessas áreas no litoral amazônico se dará a menos de cinco meses da COP30, que vai acontecer em Belém, a cerca de 500 km do FZA-M-59, e mais perto ainda de áreas da foz que estarão no leilão, como se vê no mapa das áreas disponibilizado pela ANP. Os petroestados que participarão da conferência do clima certamente estão agradecendo por este salvo-conduto para manter os fósseis longe das decisões da COP.

A “boiada do petróleo” sobre a foz do Amazonas, contudo, não se restringe ao leilão da agência, já que em muitas licitações não há oferta das petroleiras, mesmo com interesse prévio das empresas. Só que o novo “leilão do fim do mundo” espera a decisão do Ibama sobre a licença para a Petrobras perfurar um poço no bloco 59. É essa a “porteira” a ser aberta para a “boiada” atropelar o grande sistema recifal amazônico, os manguezais do litoral Norte e os Povos Indígenas e as comunidades ribeirinhas do Amapá, sem contar o clima do nosso planeta. Esse é o motivo de tantos impropérios e ataques “nível 5ª série” que o Ibama tem recebido. Não se trata de um eventual problema com a competência técnica do órgão, mas de uma disputa econômica feita em baixíssimo nível.

A estratégia do mercado petrolífero é óbvia: a Petrobras, como uma empresa controlada pelo governo, pode tentar “atropelar” as decisões técnicas do Ibama, fazendo pressão política sobre o órgão ambiental. É por isso que Alexandre Silveira, titular do Ministério de Minas e Energia (MME), pasta à qual a petroleira estatal está vinculada, ampliou seus ataques ao Ibama. É por isso que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), responsável por votar [ou não] matérias de interesse do governo, disse que o órgão “boicotava o Brasil”. É por isso que o presidente Lula, que, embora entusiasta da exploração de combustíveis fósseis na foz do Amazonas, mantinha-se neutro no debate, resolveu, desde fevereiro, acusar o Ibama de “lenga-lenga” e de “atuar contra o governo”.

O novo “leilão do fim do mundo” deixa óbvio que não se trata apenas de uma “licença para fazer pesquisa numa pequena área” no litoral da Amazônia, como os defensores da exploração de petróleo no Brasil “até a última gota” tentam difundir. A autorização para a Petrobras no FZA-M-59 facilitará outros pedidos de licença para explorar combustíveis fósseis na região. Como o jogo imposto pelas petroleiras é fazer crer que a decisão técnica não importa, se o Palácio do Planalto aceitar esse jogo, tudo dependerá da vontade política de quem o ocupar.

Só que já sentimos na pele os estragos que “vontades políticas” podem causar. A “boiada” de Bolsonaro quase causou o genocídio do Povo Yanomami; abriu a Floresta Amazônica para o desmatamento e para o garimpo ilegal; e não investigou um megavazamento de petróleo que atingiu toda a costa do Nordeste.

A emergência climática é real. É ela que está afetando a produção dos alimentos, jogando seus preços para o alto e afetando a inflação, algo caro para Lula e que está corroendo sua popularidade. Que deixou o Rio Grande do Sul debaixo d’água por um mês há quase um ano. Que provocou secas severas por dois anos consecutivos na Amazônia, afetando a vida de populações ribeirinhas. Que vem provocando ondas de calor fora de época em todo o país e alimentando incêndios no Pantanal, na Amazônia e no Cerrado.

E tudo isso causado principalmente pela queima de combustíveis fósseis que a “boiada do petróleo” quer passar sobre a foz do Amazonas, sob as bênçãos de parte do governo.

•        Licença para exploração abriria a porteira

A licença do Ibama que a Petrobras e parte do governo tanto querem para perfurar um poço de combustíveis fósseis no bloco FZA-M-59, na foz do Amazonas, é só uma “cortina de fumaça” para uma ambição muito maior. A autorização, se concedida, será uma “porteira aberta” para a exploração de petróleo e gás fóssil em toda a foz do Amazonas. Abrirá precedente também para a indústria petrolífera em outras bacias sedimentares da costa amazônica, como Pará-Maranhão e Barreirinhas.

É o que mostra a reportagem da série “Até a última gota”, da InfoAmazonia, que já mostrou que a região amazônica, incluindo os países vizinhos, tornou-se a nova fronteira do petróleo em todo o mundo. No Brasil, a busca por combustíveis fósseis se concentra no mar. E o que acontecer com o bloco 59, no litoral do Amapá, será decisivo para o futuro da exploração de combustíveis fósseis na Amazônia brasileira.

“Se a Petrobras tiver autorização e achar algo lá, vamos segui-la”, disse no ano passado Décio Oddone, CEO da Brava Energia. A petroleira, resultado da fusão da Enauta com a 3R Petroleum, detém a concessão de um bloco na foz, assim como a PetroRio, atual PRIO. Os demais seis blocos concedidos pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) na bacia são da Petrobras, entre eles o 59.

Além desses, há mais 16 áreas sob concessão na costa amazônica. São cinco na bacia do Pará-Maranhão, nas mãos de Petrobras e Brava, e 11 em Barreirinhas, concedidos pela ANP para essas duas petroleiras e para as gigantes Shell e BP. E a agência ainda poderá oferecer mais 47 blocos na foz no próximo leilão que fará, em 17 de junho. A lista final da licitação será divulgada neste mês.

Essas empresas estão ávidas pela resposta do Ibama sobre o 59 porque apostam na pressão política da Petrobras. Tecnicamente, vários pedidos de licença já foram negados pela altíssima sensibilidade ambiental da região e a falta de informações sobre os impactos da atividade petrolífera. “Se a Petrobras, uma empresa brasileira que tem o governo como principal acionista, não está conseguindo, ninguém vai conseguir [a autorização]”, afirmou João Correa, presidente da TGS no Brasil, empresa norueguesa que faz levantamentos sísmicos na margem equatorial.

Enquanto isso, as empresas se valem de brechas na regulação para ganhar tempo e manter suas concessões. Pelas regras da ANP, o descumprimento dos prazos contratuais obrigaria a devolução dos blocos ao governo. E 20 dos 25 blocos concedidos – a maioria desde 2013, quando a atual presidente da Petrobras, Magda Chambriard, era diretora-geral da ANP e ofertou essas áreas em leilão – não iniciaram a exploração como estabelecido em contrato.

Contudo, a agência permite a prorrogação de prazos em “casos fortuitos”, ou seja, fora do controle das concessionárias. Com esse argumento, as petroleiras justificaram os atrasos no licenciamento ambiental para manter os contratos ativos. E assim mantêm o risco de a costa amazônica virar uma nova fronteira exploratória de petróleo e gás fóssil no Brasil.

Mas, se parte do governo quer explorar petróleo “até a última gota”, inclusive na Amazônia, a chefe da assessoria especial do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para a COP30, Alice Amorim, “lembrou” que a transição para um mundo sem combustíveis fósseis precisa começar. Ela participou de um evento promovido na 4ª feira (2/4) por petroleiras, quando foi apresentada uma proposta de critérios para definir que países cortariam primeiro sua produção com a implantação do transitioning away proposto na COP28, em Dubai.

A inclusão da expressão na declaração de Dubai foi um avanço em relação a conferências do clima anteriores, que não citaram o tema em seus documentos finais. Mas, desde então, não houve evolução em relação a como esse movimento será feito, explica Nicola Pamplona na Folha. Por isso há uma expectativa que o debate seja retomado em Belém, na COP30.

•        Pressão do governo ganha reforço

A tropa de choque governamental que pressiona o Ibama pela licença para a Petrobras perfurar um poço no bloco FZA-M-59, na foz do Amazonas, vai ganhar mais um integrante. Confirmado pelo presidente Lula como ministro das Comunicações, o deputado federal Pedro Lucas Fernandes, do Maranhão, líder do União Brasil na Câmara, preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Exploração de Petróleo na Margem Equatorial, criada em abril de 2024.

Fernandes tem as bênçãos de outro defensor ferrenho da exploração: o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Com a agenda do governo amarrada ao Congresso, a “fome” do presidente Lula por explorar petróleo no litoral do Amapá se juntou à “vontade de comer” de Alcolumbre de capitalizar politicamente o fato em seu estado.

Fernandes também defendeu mudanças no Ibama, comandado por Rodrigo Agostinho, destacam Folha e Brasil 247. Segundo o deputado, o órgão ambiental tem um “pensamento ideológico” muito forte e que isso “é muito ruim para o governo”. Esqueceu que o Ibama é um órgão de Estado, que segue a legislação ambiental e toma decisões técnicas, que podem, inclusive, ser questionadas pelos empreendedores – como a Petrobras está fazendo na foz.

A petroleira espera para “breve” a licença para o poço que quer perfurar no bloco 59, informa o Metrópoles. Foi o que disse a diretora de Exploração e Produção (E&P) da petroleira, Sylvia dos Anjos, a mesma que, em outubro, num arroubo de negacionismo, disse que a presença de corais na região marítima da Amazônia onde a empresa quer perfurar era “fake news científica”.

A executiva voltou a repetir a falácia de que explorar combustíveis fósseis na foz do Amazonas e em outras bacias da Margem Equatorial é necessário para repor reservas e garantir que o Brasil não volte a importar petróleo, relata o Estadão. Só que dados recentes da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostram que o país tem petróleo até 2038 no atual ritmo de produção.

Como o país exporta óleo, pois produz muito mais do que consome, basta ajustar as vendas externas para expandir esse prazo-limite. Sem falar nas projeções de queda de demanda, tanto da Agência Internacional de Energia (IEA) como da própria Petrobras, e nas possibilidades no pré-sal, que ainda está sendo explorado. A mesma Petrobras anunciou duas descobertas na região recentemente.

Sylvia, porém, não parou aí na defesa da exploração da foz. Repetindo Pietro Mendes, presidente do conselho de administração da Petrobras e secretário de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia (MME), disse que na região do bloco 59 “circulam mais de mil cargueiros, navios”, por isso não haveria problema em abrir um poço. Mas cargueiros e navios não perfuram o subsolo marinho. Nem correm o risco de despejar milhões de barris de petróleo no mar no caso de um acidente na perfuração.

É algo que a Petrobras sabe, já que tentou perfurar um poço perto do bloco 59 em 2011 e teve de abandonar a atividade por causa das fortes correntezas da região, sem falar no fluido de perfuração que despejou no mar. Sylvia, no entanto, disse que a petroleira pode atuar “de maneira segura”, segundo o Valor.

Em tempo: Um estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) indica que 27 países programaram licitações de novas áreas exploratórias este ano. Os investimentos em exploração também se recuperaram da queda na pandemia e atingiram, em 2024, o mesmo nível de 2019. Como lembra Nicola Pamplona na Folha, a EPE é parte da ala governista que defende a exploração de combustíveis fósseis na foz do Amazonas

•        Congresso tem PLs contra e a favor de explorar petróleo na Amazônia

Não é segredo que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não são nada amigáveis ao clima e ao meio ambiente. O “Pacote da Destruição”, listado pelo Observatório do Clima (OC), com 25 projetos de lei e propostas de emenda à Constituição que tentam flexibilizar leis ambientais e climáticas, prova isso. Felizmente há iniciativas de parlamentares que pretendem barrar esses ataques. Mas também há quem queira engrossar ainda mais o “caldo destruidor”.

Exemplos desse antagonismo envolvem a exploração de combustíveis fósseis na Amazônia. Enquanto o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) apresentará um projeto de lei para vedar a exploração de petróleo e gás fóssil na região, o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) propôs uma legislação ambiental específica para a autorizar a atividade na foz do Amazonas, além de repasses de royalties.

Além de proibir a exploração na Amazônia, a proposta de Valente, que será apresentada hoje (16/4), prevê uma moratória para projetos já existentes, com a recuperação das áreas já impactadas pela atividade petrolífera, destaca a Folha. Com o projeto, o PSOL pretende abrir uma discussão na base de apoio do presidente Lula no parlamento sobre a exploração, que rachou o governo: a área ambiental é contra, enquanto o Ministério de Minas Energia (MME) e o próprio presidente pressionam o IBAMA pela licença de exploração para a Petrobras.

O deputado reforça que “o Brasil não pode seguir abrindo novas frentes de exploração de combustíveis fósseis justamente na Amazônia, um dos territórios mais estratégicos para o equilíbrio climático do planeta”. Por isso, sua iniciativa tem o apoio de diversas organizações ambientais e climáticas. Além do OC, apoiam o projeto o Greenpeace, Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), WWF, Instituto Arayara e Painel Mar.

Na contramão está o PL 1.247/2025, do senador Mecias. O texto propõe a inclusão de três artigos na Lei do Petróleo (9.478/1996) criando um regime específico para o licenciamento ambiental da exploração de petróleo e gás fóssil na região, informa a agência eixos.

O senador diz que seu projeto é rígido nas exigências ambientais e torna a atividade petrolífera na região “ainda mais rigorosa”, com tecnologias para minimizar impactos ambientais e sociais. No entanto, propõe que a foz do Amazonas seja tratada como “de relevância estratégica para a segurança energética nacional”, o que cai como uma luva para quem quer atropelar decisões técnicas do IBAMA e explorar a região para “financiar a transição energética” (acredite se quiser).

O risco é suplantar o licenciamento e transferir para o MME e para a Agência Nacional do Petróleo (ANP) competências que hoje são do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do IBAMA – que (surpresa!) não participaram da elaboração do texto. Além disso, a coordenadora de políticas públicas do OC, Suely Araújo, classificou a proposta como “desnecessária”, pois a legislação atual já prevê os instrumentos necessários para o pagamento de royalties e suas aplicações.

“Por que regras específicas para a foz do Amazonas? Quem definirá essa ‘relevância estratégica’? Se acham que estarão obrigando a concessão de licenças ambientais dessa forma estão equivocados. Esse projeto de lei não reúne condições mínimas de prosperar no Legislativo. Se virar lei, vai cair no Supremo Tribunal Federal”, sentencia Suely.

 

Fonte: ClimaInfo

 

Nenhum comentário: