Intervenções dos Estados Unidos no
Haiti: a continuidade da violência sob o pretexto de paz
Desde a
chegada de Cristóvão Colombo à Isla de Hispaniola em 1492, a presença de forças
estrangeiras no Haiti tem sido constante. Noam Chomsky, em seu livro Year
501: The Conquest Continues (1993), destaca a continuidade das
práticas colonizadoras desde a chegada dos europeus ao continente. Durante a
colonização, as potências europeias viam o Haiti e outras regiões do Novo Mundo
como espaços inabitados e sem cultura avançada, com pensadores como Adam Smith
e Hegel descrevendo tais povos nativos como inferiores, incapazes de se adaptar
à civilização europeia. Esse tipo de perspectiva endossava o genocídio
perpetrado contra a população autóctone da ilha, a qual, após a chegada de
Colombo, foi dizimada em pouco mais de uma década, reduzindo de um milhão para
dezenas de milhares.
O Haiti
foi um dos primeiros territórios americanos a ser subjugado pela colonização
europeia. A violência brutal contra os indígenas, seguida pela importação de
escravizados africanos, estabeleceram um sistema de exploração intensiva,
especialmente sob domínio francês. Saint-Domingue, como era chamada a colônia
haitiana, tornou-se a mais lucrativa do império francês, com a exploração de
meio milhão de africanos, o que gerou um processo contínuo de desumanização, no
qual o homem branco era idealizado como modelo de civilidade.
A
Revolução Haitiana (1791-1804) desafiou esse sistema e tornou o Haiti um
exemplo considerado temerário pelas elites de outras colônias escravistas. Sob
a liderança de Toussaint Louverture, os haitianos venceram as tropas
napoleônicas e proclamaram a independência em 1804, fundando a primeira
República Negra do mundo e desafiando a ordem colonial. Entretanto, conforme
denominou Eduardo Galeano em Os pecados do Haiti (2010), essa
vitória gerou um “delito da dignidade” para as potências coloniais, tendo em vista
a “humilhação imperdoável” conferida à raça branca com a conquista dos
revolucionários haitianos. Como uma represália, a França, por exemplo, exigiu
pesadas reparações financeiras do Haiti, forçando-o a contrair dívidas com os
próprios bancos franceses, o que perpetuou sua dependência econômica. O país
foi isolado internacionalmente, temendo que seu exemplo incentivasse outras
revoltas de escravizados, o que levou países como o Brasil a evitar o
reconhecimento do Haiti como nação independente.
Assim,
a dominação imperialista não cessou após a Revolução, e diversas intervenções
estrangeiras ocorreram, com a imposição de certa “pacificação” em nome da
restauração de determinada ordem almejada pelas potências interessadas no país.
Segundo Eduardo Galeano, também no texto Os pecados do Haiti, a
história de assédio contra o país caribenho está profundamente ligada ao
racismo da civilização ocidental. Isso porque a ordem colonial desempenhou um
papel crucial na criação de uma lógica racista, que legitimou a violência e a
exploração contra os haitianos, persistindo mesmo após a independência do país
em 1804.
Em meio
a essa dinâmica e em consonância com a Doutrina Monroe e o Corolário Roosevelt,
os Estados Unidos passaram a justificar intervenções militares no Caribe,
incluindo a ocupação do Haiti, com base na ideia de que deveriam impor a
“civilização” aos países da região. A ocupação estadunidense do Haiti de 1915 a
1934, por exemplo, foi marcada por um pensamento racista que via os haitianos
como incapazes de autogoverno, justificando uma intervenção “civilizatória” que
visava interesses imperialistas, especialmente nas finanças. Essa política de
intervenção militarizada, marcada pela violência e exploração, reflete a
continuidade do racismo colonial que permeia a política externa dos Estados
Unidos até hoje, mesmo que sob novas roupagens.
Sob
ordens do presidente Woodrow Wilson (o mesmo que clamava pela autodeterminação
dos povos ao propor a Liga das Nações), em 28 de julho de 1915 teve início a
intervenção militar estadunidense no Haiti, um processo que duraria quase duas
décadas. A justificativa oficial alegava a necessidade de restaurar a paz na
região, que estaria marcada pela instabilidade política e pela ação de grupos
rebeldes locais chamados “cacos”. Porém, é preciso desmistificar esse tipo de
discurso “civilizatório”, revelando os interesses políticos e econômicos
ocultos por trás dessa “pacificação”, que incluía a imposição de um regime de
violência institucionalizada.
Um
exemplo disso é a visão depreciativa do Haiti expressa por William Phillips,
subsecretário de Estado norte-americano naquele período, que o considerava um
“povo inferior”, incapaz de governar a si mesmo. Ao mesmo tempo, os principais
veículos de comunicação dos Estados Unidos, como o New York Times,
apoiaram ou permaneceram em silêncio sobre a intervenção, descrevendo-a como
altruísta e em nome da paz. No entanto, a realidade era mais complexa, pois em
1922 já se evidenciavam as atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas
e os protestos gerados por essa ocupação.
A
intervenção fazia parte de uma estratégia geopolítica dos Estados Unidos para
garantir sua hegemonia no Caribe, tal como ocorreu em relação ao Canal do
Panamá e com a instalação de bases navais estratégicas. Ao observar o contexto
da região no início do século XX, Leslie Manigat, em Introduction à
l’étude de l’histoire de la diplomatie et des relations internationales d’Haïti (2003),
afirma que a invasão de 1915 é o resultado de rivalidades acirradas entre os
“quatro imperialismos” pelo controle do país, em consonância com a divisão do
mundo entre grandes potências. A França se apegava à sua influência no Haiti,
enquanto a Alemanha, recém-chegada à “disputa”, realizava incursões visando
garantir uma base de abastecimento em carvão e estabelecer uma forte presença
econômica, financeira e estratégica no país. No entanto, os Estados Unidos já
haviam definido o papel que almejavam na ordem internacional e, para isso, o
controle do Mar do Caribe e das ilhas circundantes seria fundamental.
A
ocupação também visava garantir os interesses econômicos estadunidenses, tendo
em vista o controle da produção de cana-de-açúcar no Haiti e a garantia de um
comércio superavitário (tanto que 87% das importações do país vieram dos
Estados Unidos entre 1916 e 1927). Um fato central nesse processo foi a
imposição de uma nova Constituição em 1918, a qual permitiu que estrangeiros
comprassem terras no Haiti, beneficiando principalmente os investidores
estadunidenses e enfraquecendo o campesinato local. Além disso, os Estados
Unidos assumiram o controle do sistema financeiro haitiano, com o banqueiro
Roger Farnham, de Nova York, definindo o pagamento da dívida haitiana e
garantindo a supremacia do capitalismo estadunidense sobre os rivais europeus,
especialmente a França e a Alemanha. Nesse processo, o National City Bank de
Nova York incorporou o Banco Nacional Haitiano, aprofundando o domínio
econômico estadunidense.
Em
termos de violência, a ocupação foi marcada pela criação da Gendarmerie
d’Haïti, uma força policial local treinada pelos marines norte-americanos,
que utilizou práticas brutais contra os haitianos. O regime de violência estava
intimamente ligado ao racismo, com os soldados estadunidenses, em sua maioria
oriundos do sul daquele país, aplicando a mentalidade segregacionista em suas
interações com a população haitiana. Além disso, foi restabelecido o regime de
trabalho forçado, ou corvée, que obrigou muitos haitianos a
trabalharem em condições desumanas, alimentando o movimento de resistência. A
repressão foi tão brutal que figuras como Charlemagne Péralte, líder
guerrilheiro, tiveram partes dos seus corpos expostas publicamente como
símbolos de vitória sobre a resistência.
Cristóvão
Colombo, ao chegar em Hispaniola, prometeu trazer civilização e cristandade aos
nativos, mas seu Diário do Descobrimento revela seu verdadeiro interesse: a
busca incessante por ouro e o uso de brutalidade contra os indígenas que
desobedeciam a suas ordens. Da mesma forma, os Estados Unidos justificaram sua
intervenção no Haiti, entre 1915 e 1934, como uma missão de pacificação e
progresso, mas na realidade, tomaram controle do sistema econômico haitiano,
expropriaram terras, exploraram a força de trabalho e exterminaram a
resistência local. A invasão norte-americana no Haiti é um exemplo emblemático
de como a ideia de “pacificação” pode ser usada como pretexto para justificar a
violência racialmente motivada e a dominação externa.
A
análise das intervenções passadas no Haiti, em que a “pacificação” foi
utilizada como justificativa para o controle econômico e territorial, ilumina a
continuidade dessa lógica no contexto atual. Basta termos em mente o papel
influente dos Estados Unidos na implantação e manutenção da ditadura da família
Duvalier no Haiti entre 1957 e 1986, além de desempenharem um papel dominante
nas missões de paz da ONU no Haiti durante os anos 1990, principalmente por
meio da Operação Restaurar a Democracia (1994) e diante do cenário de
recondução do presidente Jean-Bertrand Aristide ao poder. No século XXI, os
Estados Unidos desempenharam um papel fundamental na criação da Missão das
Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) e na formulação de sua
missão. Eles, junto com outros países, pressionaram pela intervenção da ONU
após a crise política no Haiti, participando da articulação para que o Brasil
assumisse a liderança do componente militar (tendo em vista suas prioridades
militares diante da Guerra ao Terror no mesmo período).
Ao
compreender a história das imposições externas no Haiti, fica mais claro como
os esforços internacionais atuais, embora possam ser apresentados como soluções
altruístas para a instabilidade política e social, ainda podem servir para
perpetuar relações de dependência, exploração e controle. Além disso, o debate
sobre a resistência da população haitiana, tanto em relação às opressões
domésticas quanto à violência imposta pelas potências estrangeiras, é relevante
para a compreensão de como atuais dinâmicas de pacificação podem ser vistas
como uma continuidade das práticas repressivas do passado. O silenciamento dos
anseios e da resistência local, além da ausência de uma reflexão crítica sobre
o impacto das intervenções anteriores contribuem para a perpetuação de um ciclo
de violência e opressão.
Assim,
em um cenário no qual são evidentes as contradições da Missão Multinacional de
Apoio à Segurança no Haiti (MMS), estabelecida em 2023 sob forte demanda dos
Estados Unidos para combater a violência das gangues, e dos efeitos das gangues
que administram partes significativas do país, há a necessidade de um olhar
mais atento e crítico diante das propostas de pacificação atuais, tanto no
Haiti como em outros contextos globais. Em setembro de 2024, os Estados Unidos
apresentaram uma resolução no Conselho de Segurança da ONU propondo a
transformação da MSS em uma missão formal de manutenção da paz das Nações
Unidas. Diante da demanda dos estadunidenses em apoiar uma nova missão de
pacificação no Haiti, em moldes que não problematizam a forma como o país caribenho
está inserido no sistema internacional, resta aos haitianos continuar encarando
a permanência das dificuldades históricas que marcam o seu cotidiano.
________________
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O Haiti como prisma para a compreensão do passado e do presente
Nesta série especial, apresentamos
estudos e reflexões sobre o contexto haitiano a partir de diferentes
perspectivas (filosófica, histórica, política internacional, cultural, das
migrações, etc.). E elas são tão variadas quanto os campos que reúnem os
pesquisadores do grupo de pesquisa Haiti: descolonização e libertação –
estudos contemporâneos e críticos. Registrado junto ao CNPq e sob a liderança
da UNILA, o grupo reúne pesquisadores de diferentes instituições interessadas
em investigar as lutas populares por soberania, o pensamento haitiano no
contexto caribenho, continental e mundial e as migrações e a cooperação
internacional.
Recentemente,
o grupo publicou o livro Haiti na encruzilhada dos tempos atuais:
descolonialidade, anticapitalismo e antirracismo [de acesso aberto e
disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/haiti-na-encruzilhada-dos-tempos-atuais-descolonialidade-anticapitalismo-e-antirracismo/] Os capítulos
publicados nessa obra são um esforço desse coletivo, que inclui pesquisadores
haitianos, que se interessa e se compromete a contribuir com o conhecimento da
sociedade brasileira e regional acerca da realidade haitiana, contra as
intervenções estrangeiras e pelo reconhecimento da autonomia e soberania do
povo haitiano. Os artigos publicados nesta série pretendem apresentar ao
público brasileiro alguns achados dessas pesquisas.
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Confira a seguir a relação completa de artigos da série seguida da sua data de
publicação:
- Revolução, patrimônios difíceis
e dignidade no Haiti, por Loudmia Amicia Pierre Louis (publicado em 8 de
abril de 2025)
- Intervenções dos Estados Unidos
no Haiti: a continuidade da violência sob o pretexto de paz, por Tadeu
Morato Maciel e Sarah Rezende Pimentel Ferreira (publicado em 16 de abril
de 2025)
- Triste lembrança e memória
colonial da escravidão, tripla dívida da independência nacional, por Vogly
Nahum Pongnon (publicado em 22 de abril de 2025)
- Movimento popular, mulheres,
revolução haitiana e história da libertação latino-americana, por Carlos
Francisco Bauer (publicado em 29 de abril de 2025)
- A cooperação internacional e o
Haiti: assistência ou ingerência?, por Marina Bolfarine Caixeta e Roberto
Goulart Menezes (publicado em 6 de maio de 2025)
- Soberania comunitária haitiana:
alternativa contra o arranjo realista-liberal do Conselho de Segurança, por Renata de
Melo Rosa (publicado em 13 de maio de 2025)
- O Movimento Constitucional
Haitiano de 1801 a 1816 como precursor de um Constitucionalismo
Emancipatório Amefricano, por Maria do Carmo Rebouças dos Santos
(publicado em 20 de maio de 2025)
- A comunidade migrante acadêmica
haitiana na República Dominicana, por Judeline Exume (publicado em 27 de
maio de 2025)
- Colonialidade sem branquitude:
entre dilema e desafio da integração do Haiti no Sistema-Mundo neocolonial, por Samuel
Morancy (publicado em 3 de junho de 2025)
Fonte: Por Tadeu Morato Maciel e Sarah
Rezende Pimentel Ferreira, no Le Monde

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