EUA
temem nova diplomacia da saúde chinesa
O
governo Donald Trump planeja pôr fim ao apoio financeiro dos EUA à Gavi, uma
iniciativa global para compra e distribuição de vacinas que imunizou mais de 1
bilhão de crianças desde seu lançamento em 2000.
Os
Estados Unidos foram um dos seis países a oferecer as doações que fundaram a
Gavi e atualmente são o terceiro maior contribuinte da iniciativa, fornecendo
mais de 12% do financiamento. O governo norte-americano compromete esses fundos
por meio de promessas plurianuais, que o Congresso então aprova em um
cronograma anual. Se o governo levar o plano adiante, cortará uma doação
americana de US$2,6 bilhões até 2030, mais da metade dos quais ainda não foram
destinados à Gavi.
Embora
o Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, tenha anunciado em março que o
governo havia finalizado sua revisão de projetos de ajuda externa, a decisão de
descontinuar o financiamento da Gavi ainda pode mudar, à medida que as
autoridades federais avançam em direção à implementação de suas medidas. Mas se
o governo não mudar de rumo, a Gavi enfrentará desafios consideráveis ao tentar
esticar seu orçamento.
A perda
do financiamento dos EUA pode deixar a Gavi com três opções para reduzir suas
operações: interromper o financiamento do fornecimento de vacinas para alguns
países beneficiários, reduzir o número de vacinas que a iniciativa apoia ou
reduzir o financiamento para o desenvolvimento de vacinas e sistemas de saúde.
Todas essas opções podem alterar significativamente a saúde e a expectativa de
vida de quase 100 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo.
Ao
recuar em seus compromissos com a Gavi, os Estados Unidos abrem caminho para a
China expandir sua influência no mercado global de vacinas por meio de seus
empréstimos estrangeiros, programas de ajuda e fornecedores de vacinas. Essa
abordagem pode refletir a diplomacia de vacinas da China durante a COVID-19,
quando forneceu vacinas a muitos países de baixa ou média renda que enfrentavam
barreiras de acesso.
·
Quais
países podem ser afetados?
A Gavi
direciona sua ajuda aos mais pobres do mundo, apoiando apenas países com renda
nacional bruta per capita recente inferior ou igual a US$1.820. O modelo de
financiamento da Gavi compra e adquire vacinas em parceria com países de baixa
renda, aumentando seus níveis de cofinanciamento à medida que a renda nacional
aumenta. Assim que uma nação se torna rica o suficiente para se tornar
inelegível, ela entra em uma fase de transição acelerada, um período de cinco
anos em que o país aumenta seus gastos com vacinas até se autofinanciar
totalmente.
Dos 54
países elegíveis para o apoio da Gavi, 11 se qualificam para o programa de
transição acelerada, e esse subconjunto enfrenta as maiores consequências com a
decisão dos EUA de interromper o financiamento.
Se
esses países de baixa e média renda perderem a capacidade de financiar
múltiplas vacinas simultaneamente devido ao corte de financiamento da Gavi, uma
alternativa viável seria recorrer à China — para empréstimos, ajuda externa e
os preços altamente concessionais que seus fornecedores de vacinas poderiam
oferecer. Desde 2000, a China forneceu mais de US$89 bilhões em assistência
cumulativa ao desenvolvimento para essas nações, todas membros de sua
Iniciativa Cinturão e Rota. Aproximadamente US$1 bilhão desse total — pouco
mais de 1% — foi alocado para assistência à saúde. Esses países já estão no
foco estratégico da estratégia de influência externa mais ampla da China,
inclusive no setor da saúde.
·
Quais
vacinas correm risco de desfinanciamento
Em seu
lançamento, a Gavi financiava vacinas para seis doenças infecciosas, mas hoje
esse número cresceu para vinte. Além das vacinas infantis de rotina contra
tétano, hepatite e sarampo-rubéola, a Gavi também forneceu acesso à vacina
contra o ebola em 2019 e à vacina contra a covid-19 em 2021. A iniciativa
lançou duas novas vacinas contra a malária nos últimos dois anos, financiou a
vacinação contra o papilomavírus humano (HPV) para prevenir o câncer cervical,
expandiu a disponibilidade das vacinas contra a raiva e, mais recentemente,
adquiriu e alocou centenas de milhares de vacinas contra a mpox durante o
último surto na África Central e Ocidental.
A Gavi
escolhe quais vacinas financiar com base em um processo rigoroso e sistemático.
A cada cinco anos, os parceiros públicos e privados da organização avaliam o
cenário atual de vacinas para determinar quais vacinas subutilizadas ou novas
teriam o maior impacto nos países elegíveis, considerando custo, resultados de
saúde e viabilidade programática. A implementação dessa prática em ciclos de
cinco anos permite à Gavi criar previsões estratégicas que proporcionam maior
visibilidade da demanda e oferta futuras para os países implementadores,
financiadores e fabricantes de vacinas, que devem planejar a expansão do
mercado.
De
particular risco devido aos cortes de financiamento, podem estar as vacinas
contra a malária recentemente implementadas, bem como as vacinas contra o HPV,
a encefalite japonesa e as que enfrentam emergências de saúde.
·
Apoio
da Gavi aos sistemas de saúde
A Gavi
auxilia os países na implementação de seus programas, para garantir a melhor
distribuição de vacinas possível. Esses esforços consistem em apoio à
infraestrutura dos sistemas de saúde, equipamentos da cadeia de frio e
investimentos em inovações que melhoram a eficácia do programa de vacinação e
impulsionam a eficiência.
Por
exemplo, a estratégia prioritária de inovação em vacinas da Gavi ajuda a
acelerar o uso de novos dispositivos de administração, como adesivos de
microarray, para substituir seringas. A estratégia também prioriza vacinas de
cadeia de temperatura controlada e termoestáveis, que requerem menos
refrigeração, e inovou um roteiro para códigos de barras de vacinas, para que
seu impacto possa ser rastreado com clareza.
Cortes
nesses programas de apoio desacelerariam o ritmo da inovação e criariam
incerteza para os fabricantes de vacinas, especialmente aqueles que visam
doenças infecciosas sem mercados de alta renda, como a malária.
·
A
China e os mercados estratégicos de vacinas
O
cancelamento de fundos dos EUA para a Gavi também representa um risco à
segurança nacional, pois a China terá a oportunidade de desempenhar um papel
maior no mercado global de vacinas.
A
participação da China na biotecnologia global está crescendo rapidamente, e
seus líderes têm buscado investimentos governamentais em larga escala em
pesquisa e desenvolvimento, investimento direto em fabricantes de vacinas e
treinamento para sua força de trabalho na área de produtos biológicos.
Empresas
chinesas já fornecem algumas imunizações para doenças preveníveis por vacinas a
países considerados estratégicos na África, Ásia Central, Ásia Meridional e
Pacífico Ocidental. Em outros casos, essas empresas ainda não penetraram em um
mercado financiado pela Gavi, mas estão prontas para tirar vantagem, pois
possuem uma grande capacidade de fabricação para abastecer o mercado interno
chinês. Esses fabricantes também têm um pipeline de novas vacinas em
desenvolvimento — vacinas que os países beneficiários da Gavi poderão comprar
no futuro.
Vários
desenvolvedores baseados na China receberam o status de aprovação da
Organização Mundial da Saúde (OMS) para vacinas selecionadas pela Gavi nos
últimos anos, superando um obstáculo fundamental para a distribuição aos países
de baixa e média renda. Desenvolvedores menores incluem a Xiamen Innovax
Biotech e sua vacina contra o HPV, o Instituto de Produtos Biológicos de Pequim
e sua vacina contra a poliomielite, assim como o Chengdu Pharmaceutical Group e
sua vacina contra a encefalite japonesa. A Sinovac, principal desenvolvedora de
vacinas da China, já desenvolve vacinas contra poliomielite e hepatite A com o
selo de aprovação de segurança da OMS, e a principal fabricante Zhifei está
trabalhando em conjunto com a multinacional GSK para comercializar uma vacina
contra o vírus sincicial respiratório e, simultaneamente, desenvolver uma nova
vacina pneumocócica.
·
A
diplomacia de vacinas da China em meio ao desfinanciamento da Gavi
O uso
de vacinas pela China como ferramenta de diplomacia estratégica não seria uma
novidade nem uma ideia abstrata.
Distribuir
vacinas para reforçar a influência regional e a posição global foi uma tática
chinesa durante a pandemia de covid-19, visando nações dentro e fora da
Iniciativa Cinturão e Rota, mas destinando suas doações a países ou regiões
específicas. As doações da Sinovac, principal fabricante chinesa de vacinas
contra a covid-19, superaram muitas outras durante as fases iniciais da
pandemia, e mais de 70% das doações de vacinas chinesas foram para o Sul e
Leste da Ásia no primeiro ano de sua disponibilidade, apesar de essas regiões
apresentarem menor incidência de casos do que a África Subsaariana e a América
Latina.
Reduzir
ou interromper as contribuições dos EUA para a Gavi pode prejudicara cobertura
vacinal das crianças mais vulneráveis do mundo, impedindo que até 75 milhões de
crianças sejam vacinadas e permitindo a ocorrência de 1 milhão de mortes que
poderiam ser evitadas. A decisão desacelerará o desenvolvimento de vacinas e
dispositivos de aplicação, diluindo o interesse dos fabricantes em permanecer
no mercado global de vacinas.
Embora
esses sejam motivos suficientes para manter o apoio financeiro à Gavi, o
governo dos EUA deve se lembrar do peso estratégico que os cortes de
financiamento terão no mercado global de vacinas e das consequências
geopolíticas de perder para a China em uma competição de diplomacia de vacinas.
Fonte:
Por Prashant Yadav e Chloe Searchinger, no Think Global Health – Tradução:
Guilherme Arruda

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