Por
que títulos do Tesouro dos EUA são cruciais para economia global (e como sua
queda fez Trump pausar tarifas)
"Achei
que o pessoal estava passando um pouco dos limites. Estavam ficando um pouco
nervosos, um pouco assustados."
As
palavras do presidente dos EUA, Donald Trump, na tarde de quarta-feira (9/4),
após anunciar uma trégua de 90 dias na guerra comercial — para todos os
países, exceto a China — não poderiam
ser mais diferentes do tom adotado pela manhã.
Logo
cedo, Trump usava as redes sociais para garantir que "vai dar tudo
certo" e se dirigia a seguidores e investidores com um categórico
"FIQUEM TRANQUILOS!", chegando até a afirmar: "É UM ÓTIMO
MOMENTO PARA COMPRAR!!!".
Apenas
Trump sabe ao certo o que o fez mudar de ideia entre a manhã e a tarde.
Mas,
para um grande número de analistas, a razão é clara: o enfraquecimento dos
títulos do Tesouro americano.
"Durante
muito tempo nos perguntamos o que faria Trump mudar de opinião. Seriam
seus assessores? O Congresso? O
sistema judiciário? Os líderes empresariais? No fim das contas, foi o mercado
de títulos", disse no programa Newsnight, da BBC, o economista
Mohammed El Erian, conselheiro-chefe da Allianz e um dos maiores especialistas
em títulos públicos do mundo.
Durante
seu primeiro mandato, Trump sempre esteve atento à reação dos mercados às suas
decisões políticas. Se a bolsa reagia bem, ele avançava. Se
caía, ele recuava.
Esse
padrão, no entanto, deixou de funcionar no segundo mandato — para surpresa de
muitos analistas e investidores.
O
anúncio de que imporia uma tarifa geral de 10% a praticamente todos os países
(com exceções surpreendentes como a Rússia), incluindo aliados históricos dos
EUA, além de tarifas adicionais e muito elevadas a dezenas de outros, fez
as bolsas despencarem.
Mesmo
assim, Trump — numa postura quase como "Nero vendo Roma em chamas" — parecia inabalável
diante da catástrofe nos mercados, que em poucos dias viu trilhões de dólares
evaporarem.
Na
quinta-feira (10/4), os principais índices acionários dos EUA registraram mais
um dia de queda: o S&P500 (-3,46%), o Nasdaq Composite (-4,31%) e o Dow
Jones (-2,50%). No Brasil, o Ibovespa fechou com perdas de 1,12%, e o dólar
teve alta de 0,91%, sendo cotado a R$ 5,897.
Mas o
nervosismo acabou contaminando o mercado de dívidas. E aí, o medo foi real.
Assim
como em 2022, quando o colapso do mercado de títulos forçou a então
primeira-ministra britânica Liz Truss a recuar de
seus controversos planos fiscais — e, por fim, a renunciar ao cargo após apenas 45
dias —,
os títulos do Tesouro americano foram a gota d'água. E, segundo os analistas,
fizeram Trump enfim ceder.
Mas,
afinal, o que são exatamente os títulos do Tesouro? Como funciona esse mercado?
E por que o mercado de dívida pública dos EUA é tão crucial para o mundo?
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O que são os títulos do Tesouro?
Os
títulos são instrumentos de dívida emitidos por empresas ou por países para
conseguir financiamento.
Quando
quem emite é um país, esses títulos são conhecidos como títulos do Tesouro ou
títulos públicos.
No caso
desses títulos, os investidores — que podem ser empresas, governos ou pessoas
físicas como você ou eu —, ao comprar um título emitido por um Estado, estão,
na prática, emprestando dinheiro a esse governo para que ele possa financiar
seus gastos, como, por exemplo, pagar servidores públicos ou construir
estradas.
Esse
empréstimo de dinheiro é feito por um período acordado (5, 10, 30 anos) e em
troca de uma taxa de juros (também conhecida como "rendimento")
previamente definida, que é paga anualmente e chamada de "cupom".
Se, por
exemplo, você investir R$ 10 mil em títulos com vencimento em 10 anos e taxa de
3%, a cada ano o Estado ao qual você emprestou o dinheiro pagará R$ 300. E, ao
final desses 10 anos, você receberá de volta o valor investido originalmente:
R$ 10 mil.
Pode
ser que você tenha investido uma quantia em títulos do Tesouro com vencimento
em 10 anos, mas precise recuperar esse dinheiro antes — talvez porque decidiu
comprar uma casa ou teve um imprevisto e precisa de liquidez.
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Como é o mercado de títulos
Nesse
caso, você pode recorrer ao chamado mercado secundário, onde os títulos são
comprados e vendidos, e onde seus preços variam de acordo com a oferta e a
demanda.
Se
muitos investidores estiverem interessados em comprar títulos do Tesouro de um
país, o rendimento (ou juros) pago por eles tende a cair — o que permite ao
país se financiar por um custo menor.
Por
outro lado, se os investidores perderem o interesse nesses títulos e começarem
a vendê-los, o país terá que oferecer taxas de juros mais altas para atrair
compradores — o que torna sua dívida mais cara.
Os
títulos do Tesouro de economias estáveis são considerados investimentos de
baixo risco, pois não se espera que esses países enfrentem problemas graves a
ponto de não conseguirem honrar seus pagamentos.
"O
risco de um título está no emissor, ou seja, no fato de ele não te pagar. Se
você compra um título da vendinha da esquina, o risco de não receber é muito
alto. O risco de não receber de um Estado como os Estados Unidos é muito
baixo", explica à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, Javier Molina,
analista da plataforma de investimentos eToro.
Os
títulos do Tesouro dos Estados Unidos — assim como os de outros países com
economia forte — costumam ser vistos como investimentos de refúgio, para onde
muitos investidores direcionam seu dinheiro em momentos de crise nos mercados,
como quedas nas bolsas de valores.
No
entanto, após o anúncio de Donald Trump sobre uma série de tarifas extremas que
ele pretende impor a quase todos os países, as bolsas caíram — e, em vez de
atrair investidores, o mercado de títulos também começou a perder compradores.
"Os
títulos deveriam ter um bom desempenho em tempos de turbulência, à medida que
os investidores buscam segurança, mas a guerra comercial de Trump está agora
minando o mercado de dívida dos EUA", disse à BBC Laith Khalaf, chefe de
análise de investimentos da AJ Bell, empresa britânica que fornece plataformas
de investimento.
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Como a confiança afeta o mercado de títulos
O
mercado de títulos "é como um termômetro da confiança na economia",
explica Molina.
Quando
há muitas compras, isso é um sinal de confiança.
Mas, se
os investidores começam a vender — como aconteceu na última semana —, o preço
dos títulos cai. E, por isso, a rentabilidade (ou seja, os juros) sobe, já que
preço e rendimento se movem em sentidos opostos.
"Se,
de repente, Trump aparece e bagunça tudo, pode ser que você, com medo, decida
vender seu título e ir embora. E, ao vender, o que acontece com os juros? Eles
sobem, porque o preço cai. Se todo mundo começa a vender e cada vez menos gente
quer comprar, você precisa vender mais barato para conseguir um
comprador", explica o analista.
Nos
últimos dias, a taxa de juros (ou rendimento) dos títulos do Tesouro dos EUA
com vencimento em 10 anos aumentou de forma drástica — passou de 3,9% para
4,5%. Ou seja, uma alta de 15% em apenas alguns dias.
Os
títulos, explica Javier Díaz-Giménez, professor de Economia da escola espanhola
de negócios IESE, "são a forma mais imediata que o mercado tem de dizer ao
setor público: 'desse jeito, com essas políticas que você está propondo, eu não
brinco — porque isso vai contra os meus interesses'".
Segundo
Mohammed El Erian — ex-CEO da americana Pimco, uma das maiores gestoras de
títulos do mundo — uma das razões para o aumento expressivo do custo da dívida
dos EUA foi a "erosão" da percepção dos títulos americanos como um
porto seguro.
Outro
fator que pesou foi a preocupação com o impacto que as tarifas anunciadas por Trump
poderiam ter sobre a inflação e sobre o orçamento do governo dos EUA.
Para El
Erian, Trump não mudou de opinião apenas por causa da volatilidade nos preços
dos títulos.
"Ele
mudou porque começaram a surgir disfunções no mercado. E, quando você começa a
ver disfunções no mercado, corre o risco de cair numa falha institucional, numa
recessão...", analisou no programa Newsnight.
Assim,
conclui El Erian: "Foi o mercado de títulos que o fez mudar de ideia… por
enquanto."
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Qual impacto na economia e para a população?
"O
cidadão comum não é afetado diretamente pelo mercado de títulos, mas sim
indiretamente", aponta Javier Díaz-Giménez.
O
professor do IESE lembra que "foram os títulos que derrubaram, por
exemplo, a primeira-ministra britânica Liz Truss, porque ela propôs um plano
fiscal que o mercado considerou incompatível com a manutenção do preço dos
títulos. E agora foi o mercado de títulos que fez Donald Trump recuar."
Ou
seja, o impacto — embora indireto — pode ser muito real.
Os
Estados Unidos, lembra também Javier Molina, "precisam refinanciar quase 9
trilhões de dólares em dívida este ano, por isso Trump queria que as taxas de
juros caíssem".
Em
outras palavras: o Tesouro dos EUA precisa pagar o que já deve aos
investidores, mas, ao mesmo tempo, continuar financiando os gastos do governo —
o que significa emitir e colocar novos títulos no mercado.
"Se
o Tesouro emitir novos títulos com juros mais altos do que os que estava
pagando até agora, terá feito um mau negócio — porque estará pagando mais, vai
custar mais e, portanto, isso se traduzirá em mais impostos, já que o dinheiro
precisa sair de algum lugar", explica o analista.
Ou
seja, quem acaba pagando a conta são os cidadãos — seja por meio de impostos
novos ou mais altos, seja sentindo os efeitos de menos investimento público em
áreas que normalmente são responsabilidade do Estado, como infraestrutura.
Mas não
para por aí: essa desconfiança e volatilidade no mercado de títulos acaba se
espalhando para o restante do sistema financeiro, com novas consequências para
a população.
Se o
rendimento dos títulos dispara, mesmo que o Federal Reserve (o Banco Central
americano) decida não aumentar os juros, os bancos podem optar por aumentar as
taxas dos financiamentos imobiliários, por perceberem mais risco no ambiente
econômico.
"O
aumento da incerteza encarece o crédito, porque agora você precisa incluir
cenários mais estressantes na sua análise de risco", argumenta
Díaz-Giménez.
A crise
também pode afetar os fundos de pensão, a maioria com investimento na dívida
pública, acrescenta o professor de Economia:
"Qualquer
um que tenha, direta ou indiretamente, dívida pública na carteira será
impactado, porque agora esses títulos valem menos."
Ele
lembra que todos os fundos de pensão nos EUA sofreram perdas com a queda dos
preços dos títulos públicos:
"Então,
se alguém se aposentar agora e quiser sacar seu dinheiro, terá menos do que
teria alguns meses atrás."
Nos
mercados internacionais, o mesmo se aplica.
Se a
confiança na economia dos EUA cair, os mercados internacionais podem parar de
emprestar dinheiro para o país — o que seria um grande problema, considerando
que cerca de 70% da dívida dos EUA está nas mãos de estrangeiros.
E um
dos maiores detentores dessa dívida é justamente o país mais afetado pela
guerra comercial de Trump: a China.
Estima-se
que a China tenha cerca de US$ 759 bilhões (R$ 4,4 trilhões) em títulos da
dívida americana.
Um dos
temores da economia dos EUA, segundo Javier Molina, é que a China decida vender
esses títulos se Trump endurecer ainda mais sua posição contra o país.
Quanto
mais títulos a China vendesse, mais os juros subiriam. "Isso tornaria tudo
mais caro para os cidadãos, o Estado se financiaria a um custo mais alto,
precisaria aumentar os impostos para arrecadar e manter os gastos públicos, e
por aí vai", diz Molina.
Díaz-Giménez
conclui com um alerta. Quando você encurrala o seu adversário — "que
obviamente é a China (todo o resto é cenário, irrelevante) — você não sabe como
o outro vai reagir. Entramos num mundo onde o futuro se torna muito mais
incerto".
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Investir em ouro é boa saída em tempos de turbulência na
economia?
O preço
do ouro tem subido nos últimos meses, atingindo níveis recordes, à medida que
os investidores buscam investimentos mais seguros devido à incerteza nos mercados financeiros.
O metal
precioso é tradicionalmente visto como um ativo confiável e tangível em tempos
de dificuldade ou instabilidade financeira.
Mas
será que é realmente um porto seguro?
Em
reação aos temores diante dos planos tarifários do presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, uma das maiores
mudanças na política comercial global em um século, o preço do ouro bateu um
recorde acima de US$ 3.167 por onça troy (31.1034768 gramas) na semana passada.
A
cotação do metal precioso bateu uma sequência de recordes neste ano,
impulsionados pelas preocupações em relação às tarifas e uma guerra comercial.
A
instabilidade geralmente leva a um aumento nos preços do ouro.
Quando
os mercados financeiros despencam, pode haver uma súbita "corrida do
ouro", na qual um grande número de compradores busca adquirir o metal
precioso.
Mas,
afinal, quem está comprando?
"Podem
ser governos, investidores individuais ou investidores de varejo", diz
Philip Fliers, historiador econômico da Universidade de Belfast, na Irlanda do
Norte.
"As
pessoas estão abandonando em massa [os investimentos] em equity [como as
participações acionárias], e estão migrando para o ouro", acrescenta.
"E
isso faz realmente com que os preços subam."
Tradicionalmente,
o ouro tem sido o metal preferido quando há incerteza global no mercado
financeiro.
Em
2020, a pandemia de covid-19 causou uma
recessão econômica, e os preços do ouro dispararam subitamente.
No
entanto, a incerteza nos mercados financeiros também pode afetar o ouro.
Em
janeiro de 2020, quando veio à tona o surto de covid-19, o preço do ouro
disparou, mas em março daquele ano começou a cair.
"Ser
um investimento 'seguro' não significa que não tenha riscos", adverte
Fliers.
Mas o
ouro ainda tem a reputação de ser um investimento ao qual se recorre em tempos
de incerteza econômica, não só por causa do seu valor, mas também pelo fato de
que, ao longo da história e em diferentes culturas, ele tem sido altamente
valorizado e, portanto, facilmente negociável.
objetos
mais emblemáticos descobertos na tumba do faraó no Egito Antigo
Desde a
máscara mortuária de ouro de Tutancâmon, do Egito Antigo, até o trono de ouro
dos Ashanti, em Gana, e os tronos de ouro do Templo Padmanabhaswamy, na Índia,
o metal tem tido historicamente uma importância religiosa e simbólica.
Não é
de surpreender que muitas pessoas vejam o ouro como uma forma confiável de
armazenar sua riqueza.
O valor
dos itens e joias de ouro mantidos em casa geralmente não é afetado pelas
mudanças nos mercados financeiros globais.
Mas
qualquer grande investimento pode estar à mercê das ações de grandes agentes
financeiros.
"Suspeito
que muito disso", diz Fliers, referindo-se aos recentes aumentos nos
preços do ouro, "está sendo impulsionado pelos bancos centrais dos
governos que estão comprando ouro".
Eles
costumam comprar ouro em grandes quantidades para reforçar suas reservas, já
que se afastam dos investimentos em equity em tempos de incerteza.
Isso
significa que investir no metal pode ser perigoso.
"Ainda
é uma estratégia arriscada especular sobre o aumento do preço do ouro porque,
assim que os mercados se acalmarem e os governos caírem em si, as pessoas vão
abandonar o ouro novamente", explica o historiador.
"Eu
diria que coisas como investir em ouro devem ser feitas a longo prazo."
Fonte:
BBC Word Service

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