quinta-feira, 10 de abril de 2025

Luiz Marques: A economia do conhecimento

A cultura como civilidade ou como comercialização não descortina horizontes. Já a cultura como identidade desperta a consciência do povo para a luta pela liberdade e a igualdade

Muitas de nossas concepções sobre cultura são herança da Antiguidade clássica. A começar pelo cuidado com a formação do indivíduo (paideia) e os valores morais (areté) que enfatizam o papel da cidade-Estado como educadora dos cidadãos. No Renascimento, o legado configura uma nova mentalidade ressaltando a subjetividade e o protagonismo do indivíduo na história. O mundo torna-se mais complexo e as manifestações culturais recebem uma autonomia crescente.

No século XVIII, com a ascensão da burguesia os postulados do contrato, do mercado, da razão aplicada à ciência e do Estado-nação festejam o nascimento da Modernidade. Os valores passam a ser aceitos ou impingidos como universais. Contudo, junto vêm todas as contradições entre os fins particulares e os objetivos gerais da civilização. Injustiças sociais, opressão econômica, conflitos bélicos e corrupção ilustram a tragédia moderna. As disposições classistas assimétricas de produção (Karl Marx) e as ideias e crenças (Max Weber) refletem as estruturas sociais desigualitárias.

No século XIX e XX, o saber científico e positivo respalda o colonialismo. A Revolução Industrial e a divisão de classes sociais incrementam manifestações culturais. Fala-se em uma separação da alta cultura e da cultura popular, oficial e não oficial, rural e urbana. A indústria cultural e os meios de comunicação de massas se expandem, pasteurizam. Os gostos e os estilos de vida são enquadrados. Pelo poder que concentram, os veículos de mídia corporativa se revelam uma ameaça à democracia. Após a Segunda Guerra, irrompe o debate sobre a consciência empírica e possível.

Desse modo, a cultura se transforma em um permanente campo de batalhas, onde formas simbólicas de dominação abrem uma área específica de pesquisas. As diferenças destacam o multiculturalismo, as subculturas e as etnias na constituição da personalidade individual. Extratos médios da população se entregam ao consumo para imprimir sua identidade e uma capacidade de expressão.

Para os filósofos Agnes Heller e Ferenc Fehér, em A condição política pós-moderna: “Os que preferem habitar a Pós-Modernidade ainda vivem entre modernos e pré-modernos, pois a própria fundação daquela consiste em ver o mundo como uma pluralidade de espaços e de temporalidades heterogêneos”. Em termos políticos, o que caracteriza a conduta pós-moderna é se situar além da perspectiva teleológica das “grandes narrativas” (liberalismo, socialismo, fascismo).

·        Seduções e desenganos

No emaranhado de atividades diversas, quem procura uma unidade entre o surgimento de mitos, ritos, credos religiosos, obras de arte, teorias científicas deve procurar o denominador comum, não nos produtos, mas no processo criador que promete a transformação pessoal e social, com a unidade da desunião e da ambiguidade. O expressionismo, o simbolismo, o cubismo trazem a multiplicidade cambiante da experiência humana. O surrealismo projeta alternativas à realidade.

Perante um sistema multifacetado, os intérpretes concluem que não há uma Modernidade, senão uma constelação de modernismos em correspondência com a intersecção das classes sociais. Viena pela relação entre burguesia e aristocracia; Berlim pela relação entre burguesia e Estado; Paris em função do peso da pequena burguesia; São Paulo pelo peso da burguesia. Estações de trens, bares permitem aos trabalhadores sair dos bairros marginais para os cenários em ebulição.

Não obstante, pairam dúvidas sobre os discursos demasiado otimistas sobre mudanças com vistas à libertação dos aglomerados subalternos. Na globalização os discursos se fragmentam. O futuro é um desconhecido. A tecnologia e a informação modificam a percepção do tempo e do espaço. O capital invade todos os escaninhos da sociabilidade que até então não tinham sido mercantilizados, como as praças e escolas públicas e as reservas naturais. Agora corpos e até almas estão à venda.

Sob o teto do neoliberalismo, vivemos cindidos em segmentos sociais com regramentos legitimados pela ordenação pragmática da eficiência, desempenho, produtividade e rendimento que delineia nossas vivências e expectativas na cultura contemporânea. Tal é a lógica cultural do capitalismo tardio. Crescentemente consumimos os símbolos, o espetáculo (televisão, computadores, vídeos) na era das formas – publicidade, desenho, arquitetura. O figurativo (a imagem) supera o discursivo (a palavra). Os políticos sociopatas da extrema direita surfam com desenvoltura na onda.

Hoje o conceito de cultura possui diversas implicações. Vai do conjunto de valores compartilhados num período histórico ao que distingue a identidade nacional, étnica ou sexual. No limite, incita refregas e motivos para matar – Bosnia, Belfast, Ruanda. Pode designar a cultura policial ou da empresa ou do samba sem conexão orgânica. “O princípio inspirador da vida moral ou religiosa, da literatura, da arte, da ciência e da filosofia, bem como de sua organização política ou econômica não casa com o caráter híbrido e plural das formas culturais atuais”, sublinha o sociólogo Josep Picó, no ensaio Cultura y Modernidad: seducciones y desengaños de la cultura moderna.

·        Um significado último

A economia do conhecimento acumula mais riqueza do que a economia da produção. A linguagem informática é o novo esperanto. O real confunde-se com a imaginação. A coerção cede a vez à sedução para consumir o que, antes, era tido por supérfluo ao revés de básico. O arquétipo ideal do indivíduo neoliberal está vinculado ao mercado por intermédio da pedagogia, não para a cidadania, senão para os passeios no shopping center. Em ambas as situações, a política vai para o escanteio. Contam a estética da mercadoria e a espetacularização do consumo para performar.

A cultura é o trabalho sobre a natureza e, o trabalho, é exploração. Daí a frase de Walter Benjamin de que todo documento de civilização é também um registro da barbárie. Os meios coletivos de conquistar as metas libertárias da contracultura dos anos 60 são abandonados e esquecidos, sem a sua base política anticapitalista. Já o arcabouço convencional do fazer político (os partidos), sem desfraldar as utopias são postos sob suspeição e, qual os sindicatos, perdem filiados.

A cultura precisa reencontrar uma plataforma política que dialogue com a dimensão do social e do econômico, para vencer a fragmentação organizativa e de propósitos. Enfim, para fazer a vida valer a pena ser vivida e a sociedade interagir como uma verdadeira sociedade com os sócios. O valor transcendente da cultura está em materializar os sonhos coletivamente. Não basta denunciar os limites da existência no cotidiano, é necessário forjar os instrumentos de emancipação.

Movimentos que protestam contra alienações reproduzem a reificação através da sua fragmentação. Com efeito, as bandeiras capazes de construir a agenda global forte (o nacionalismo revolucionário, o feminismo, as lutas étnicas e ambientalistas) seguem fora de foco, apesar de a cultura enquanto identidade ser uma continuação da política por outros caminhos. As solidariedades de grupo são subestimadas, secundarizadas, com o que o potencial de mobilização nas ruas diminui.

A cultura como civilidade ou como comercialização não descortina horizontes. Já a cultura como identidade desperta a consciência do povo para a luta pela liberdade e a igualdade. Conforme Terry Eagleton, em A ideia de cultura: “A cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é em grande medida aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um sentido de significado último”. Que cada um siga o seu coração.

¨      Do efeito Ghibli à política do comum. Por Márcio Moretto Ribeiro

Na última semana, o estilo visual do Studio Ghibli tomou de assalto as redes sociais – não por meio de novas animações japonesas, mas por uma avalanche de imagens geradas por inteligência artificial. A estética artesanal, onírica e sutilmente melancólica dos filmes de Hayao Miyazaki foi capturada – ou melhor, simulada – por sistemas treinados com grandes volumes de dados visuais, em muitos casos sem qualquer consentimento dos artistas originais.

Vale lembrar que Hayao Miyazaki é notoriamente contrário ao uso de inteligência artificial na criação artística. Ainda assim, a viralização do chamado “efeito Ghibli” gerou entusiasmo entre usuários, que se divertiram ao ver suas próprias fotos transformadas no estilo visual do estúdio japonês. Ao mesmo tempo, o fenômeno provocou inquietação entre ilustradores, que denunciaram o uso não autorizado de estilos pessoais como mais um passo na automatização predatória da cultura. Assim, o episódio reaqueceu um debate antigo: como proteger a criação artística sem sufocar a inovação tecnológica?

Para começar, vale a pena voltar algumas décadas no tempo para colocar o debate em perspectiva. Durante os anos 2000, o movimento da cultura digital aberta expressava uma crítica ampla à forma como a indústria do entretenimento usava o aparato jurídico do copyright para conter a inovação e preservar modelos de negócio em declínio. A cultura da internet nascente – feita de blogs, fóruns e wikis – dependia da liberdade de transformar obras existentes em novas criações.

A defesa da circulação irrestrita de conteúdos não era apenas uma rebelião contra o velho mundo midiático, mas uma aposta no potencial emancipador das redes. Nesse espírito, autores como Yochai Benkler enxergavam na interconexão digital e na abundância de recursos computacionais a base para uma nova forma de geração de valor: a produção social em rede. Assim como a riqueza das nações havia sido explicada pela troca no mercado, a nova riqueza das redes viria da colaboração voluntária entre indivíduos conectados.

Projetos como a Wikipedia e o movimento “software livre” mostravam que pessoas motivadas por valores sociais, afetivos e intelectuais podiam produzir e distribuir bens culturais relevantes fora da lógica do lucro. Essa forma de organização otimizava o uso das capacidades técnicas, ampliava a autonomia individual e democratizava o acesso à cultura e à informação.

Naquele momento de entusiasmo tecno-otimista, os grandes vilões eram os lobbies da indústria do entretenimento que pressionavam por uma regulação mais rígida de direitos autorais e propriedade intelectual. Esses lobbies eram vistos como forças conservadoras que tentavam sufocar a inovação para proteger modelos de distribuição e estruturas de poder em declínio. A retórica predominante era de que a regulação – especialmente aquela centrada em copyright – impedia a livre circulação do conhecimento e ameaçava os próprios fundamentos da nova economia digital. A resistência a essas tentativas de controle era, ao mesmo tempo, uma defesa da liberdade de expressão e uma aposta em novas formas de produção e distribuição cultural baseadas na colaboração e no compartilhamento.

É importante lembrar que o copyright não é uma forma de propriedade no sentido tradicional, mas uma ferramenta regulatória criada para incentivar a produção e a difusão cultural. Como ideias e expressões criativas não são bens rivais, seu uso não exclui o uso por outros – por isso, o direito autoral é um monopólio temporário conferido artificialmente para estimular a criação.

Esse mecanismo, no entanto, foi historicamente distorcido pela indústria do entretenimento, que usou o copyright para bloquear reinterpretações e prolongar monopólios. Ironicamente, hoje vemos o movimento oposto: é a ausência de proteção que ameaça a criação artística, já que modelos de inteligência artificial se alimentam de acervos produzidos por artistas humanos sem compensação ou consentimento. Sem garantias mínimas, o risco é desestimular a produção cultural e empobrecer a diversidade estética.

A crença de que as redes digitais ampliariam a liberdade individual e fortaleceriam a democracia teve seu auge no início dos anos 2010, com mobilizações como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street e, por aqui, os protestos de Junho de 2013. As mídias sociais eram vistas como instrumentos de organização horizontal e de renovação da esfera pública, capazes de contornar estruturas de poder consolidadas.

Mas esse otimismo logo deu lugar ao ceticismo, à medida que as mesmas plataformas passaram a ser dominadas por estratégias de desinformação, manipulação algorítmica e polarização. O que antes parecia um espaço de emancipação se transformou em um ambiente marcado por radicalização e erosão dos consensos democráticos.

Em ambos os momentos históricos, o problema não está simplesmente na tecnologia, mas no uso do poder para operar sistemas complexos em benefício próprio. No primeiro caso, era a indústria do entretenimento que mobilizava o aparato jurídico e os mecanismos estatais para reforçar direitos autorais em moldes mais restritivos, tentando conter a transformação digital que ameaçava seus modelos de negócio.

No segundo, vemos populistas de extrema direita operando o sistema de comunicação digital criado pelas plataformas – um ecossistema desenhado para maximizar engajamento, não para promover o debate público ou o bem comum.

Diante desses desafios, respostas individuais – como a desobediência civil que desafiava o copyright no passado ou o boicote ao ChatGPT hoje – se mostram insuficientes. A crítica atomizada, por mais legítima que seja, não consegue enfrentar formas de poder que operam de maneira organizada e estratégica. Repetir a aposta de que as plataformas digitais poderiam, por si só, organizar de forma justa a comunicação e a cultura seria reincidir no erro dos tecno-otimistas do começo dos anos 2010.

Confiamos demais na arquitetura técnica das redes e negligenciamos o papel das instituições. Proteger a cultura exige uma resposta coletiva, com base em regras explícitas e legitimidade democrática – não um movimento espontâneo guiado por gestos simbólicos.

A produção artística é de interesse comum. Ela enriquece a vida pública, dá forma à memória coletiva e inspira inclusive os sistemas de inteligência artificial que hoje tentam simulá-la. Mas a Inteligência artificial não cria a partir do nada: ela depende de uma base vasta de conteúdos humanos. Sem proteção adequada aos criadores, essa base cultural corre o risco de empobrecer ou mesmo se esgotar.

Proteger quem cria não é frear a inovação, mas garantir que ela continue existindo de forma justa, plural e viva. Se queremos um futuro onde a cultura tenha espaço para florescer, não basta boicotar. É preciso regular.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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