Lula:
mais agitprop e menos marketing
Existem
muitos motivos para deplorar o império das pesquisas de popularidade sobre o
comportamento dos agentes políticos.
As
pesquisas levam a que a ação de governantes e parlamentares seja guiada pela
expectativa do impacto no curtíssimo prazo, o que contribui para impedir a
adoção de um programa mais coerente. São centrais para produção da chamada
“campanha permanente”, reconhecida como um dos fatores de decadência da ordem
democrática. Incentivam a transferência cada vez maior de poder decisório para
os marqueteiros, vistos como aqueles que teriam a capacidade milagrosa de
orientar o público e redefinir essa popularidade. O logro e a mistificação
tornam-se, mais do que nunca, a essência de toda a política.
Em vez
da ampliação da capacidade de escrutínio crítico e de interlocução efetiva com
seus representantes pelos cidadãos comuns, o horizonte é a busca por fórmulas
para manipular seu comportamento de maneira instantânea.
Tudo
isso com base em números que são mais do que discutíveis. Não estou nem falando
das dificuldades crescentes que os institutos de pesquisa enfrentam para
produzir amostras confiáveis da população – e essas dificuldades existem, ainda
que os responsáveis pelas empresas, preocupados com a manutenção do mercado
milionário em que atuam, costumem ser discretos ao tratar do assunto.
Assim,
Felipe Nunes, dono da Quaest, escreve (em livro em coautoria com Thomas
Traumann) que os institutos de pesquisa “não fazem sondagens com o intuito de
predizer o resultado numérico da eleição. Eles produzem estimativas da intenção
de voto dos eleitores no momento em que as entrevistas são realizadas. Revelam,
portanto intenções – que podem ou não ser executadas de fato, já que o
comportamento do eleitor é determinado por uma série de fatores”.
Com
isso, as sondagens se tornam imunes a críticas. Nunca há uma realidade contra a
qual seus resultados possam ser confrontados – o que permite que os números
sobre atitudes, crenças e valores, que não têm uma eleição como horizonte
final, continuem transitando como indiscutíveis.
Mas a
questão é mais profunda, diz respeito ao estatuto epistemológico das sondagens
de opinião (ou surveys, no termo inglês que se tornou de uso corrente). Essa
discussão tem sido feita há décadas, por autores como Herbert Blumer, Pierre
Bourdieu, Patrick Champagne, Karina Duailibe e tantos outros.
Para
começar, como escreveu Bourdieu num artigo hoje clássico, do início dos anos
1970 (“L’opinion publique n’existe pas”, a opinião pública não existe), a
disseminação do uso de surveys modificou o sentido de opinião pública, que
passou a se referir a uma coleção de opiniões privadas, ecoando uma ideologia
que parece democrática (cada um teria direito a um “voto” na sondagem), mas que
é enganosa, já que no mundo social em que vivemos as opiniões de alguns grupos,
que controlam recursos escassos como dinheiro e acesso à mídia, têm maior
visibilidade e maior influência.
Além
disso, o survey leva as preocupações de um campo específico (política, mercado,
academia) à sociedade, no que provoca um deslocamento – que pode ser grave – na
compreensão da realidade social. Ninguém acorda de manhã e, se olhando no
espelho ao escovar os dentes, pensa: “Que nota eu dou hoje para o governo Lula,
numa escala de 0 a 10?” ou “Minha maior preocupação é a economia ou a segurança
pública?”
O que o
questionário coleta, portanto, são respostas às suas perguntas, não
necessariamente opiniões. Para saber se há opiniões de fato, isto é, posições
com algum grau de reflexão que orientam comportamentos, o survey precisa ser
complementado e corrigido por outras técnicas de investigação, a começar pelas
próximas da etnografia. Sem isso, corremos o risco de encontrar uma distância,
às vezes grande, entre a resposta ao questionário e a ação efetiva. Um exemplo
famoso é o survey entre estudantes na França no começo de 1968, que revelou que
era a geração mais apática e desmobilizada da história. Semanas depois, eclodiu
a grande rebelião juvenil…
Muitas
vezes, os respondentes têm dificuldade de se transportar às hipóteses – um dos
fatores que explica a pouca confiabilidade de pesquisas de intenção de voto em
período muito distante da eleição. A maioria das pessoas não está se
preocupando com isso e só vai começar a formar uma decisão depois que a
campanha efetivamente começar.
Os
surveys, assim, funcionam em primeiro lugar como um amuleto – servem para dar
aos agentes políticos algum grau de certeza, ainda que enganosa, em meio a um
mundo social difícil de decifrar.
Também
grande parte da Ciência Política ainda prefere tratá-las como atalhos
infalíveis para entrar na mente do público – por comodismo, creio eu, mais do
que por uma análise aprofundada de sua real validade metodológica.
(Isso é
frequente. Anos atrás, publiquei um artigo com uma crítica epistemológica e
metodológica aos índices de valência, que eram muito usados em estudos de mídia
e política. Perdi a conta das vezes em que vi notas de rodapé com referência ao
meu texto, seguida de uma observação do tipo “ainda assim, acho útil trabalhar
com essa medida” – só porque ela é fácil de operacionalizar e leva a
resultados, muitas vezes, retumbantes, ainda que simplificadores ou mesmo
enganosos.)
Mas os
amuletos funcionam – como falam os antropólogos a respeito da magia, ela é
eficaz se todos acreditam nela. As pesquisas de popularidade e as sondagens
antecipadas de intenção de voto orientam escolhas de diversos operadores
políticos, como dirigentes partidários, cabos eleitorais, financiadores de
campanha. Estar bem posicionado nelas é, assim, um atrativo que permite
angariar recursos importantes. Quase uma profecia autorrealizável.
(Por
isso, aliás, Champagne, de forma provocativa, sugeriu inverter a velha proposta
legislativa e proibir a divulgação de resultados de pesquisas de intenção de
voto não perto do momento da eleição, quando poderiam orientar o voto
estratégico de todos os eleitores, mas meses antes, quando não se referem a
nenhuma realidade concreta.)
Essa é
a questão para Lula. As sondagens mostram uma renitente avaliação negativa do
governo, a despeito de alguns indicadores econômicos que, segundo certa
sabedoria convencional da política, deveriam gerar efeito oposto – em
particular o baixo índice de desemprego, uma elevação (ainda que muito modesta)
da massa salarial e o crescimento do PIB.
O
governo insiste que o problema está na “comunicação” – e aumenta a pressão
sobre o ministro Sidônio Palmeira, colocado no cargo com a expectativa de que
faria uma mágica capaz de restaurar a popularidade do presidente.
Mas
esse diagnóstico revela uma visão da disputa que podia fazer sentido nos dois
primeiros mandatos de Lula, mas não faz mais agora, diante de uma
extrema-direita radicalizada, com discurso fortemente ideológico. O peso do
bem-estar material na avaliação subjetiva dos governos mudou, diante de ameaças
etéreas como o “comunismo” ou a “ideologia de gênero”.
Além
disso, o peso desses indicadores é sobredimensionado. Se é verdade que o
desemprego diminuiu e a miséria recuou, que temos em Brasília um governo de
verdade, não a insanidade bolsonarista, por outro lado existe a carestia dos
alimentos, existe a falta de um projeto perceptível de desenvolvimento e
existe, sobretudo, a incapacidade do governo implementar suas políticas –
porque o orçamento está sequestrado pelo Congresso, porque está imobilizado
pelos muitos interesses a que precisa responder, pela predileção por políticas
simbólicas voltadas a afagar grupos específicos, pela incompetência de muitos
dos seus gestores.
A
segurança pública está do jeito que todos sabemos, na saúde o governo ainda não
foi capaz sequer de recolocar nos eixos o programa nacional de vacinação, a
educação continua subfinanciada (e a resposta do governo é distribuir bolsas e
“pés-de-meia”, isto é, apostar em incentivos de caráter individualista sem
produzir mudanças reais), a reforma agrária continua paralisada, não há nenhum
esforço efetivo de recomposição dos direitos trabalhistas e assim por diante.
Por
outro lado, o governo se recusa a enfrentar os privilégios ou mesmo o golpismo
das Forças Armadas, não é capaz de transformar seu compromisso com o meio
ambiente de palavras em ações, é carinhoso com a elite política corrupta, com o
latifúndio, com o mercado financeiro.
Em
suma: existem muitos motivos para considerar que o governo não está indo bem.
Não é preciso ter simpatia pelo bolsonarismo para chegar a essa conclusão.
Lula
encarna a defesa de uma democracia abstrata e uma visão nefelibata da gestão
pública – uma das consequências do negacionismo científico bolsonarista foi o
reforço, como resposta a ele, de noções despolitizantes como a apologia de
programas “baseados em evidências”. Sim, é necessário levar em conta as
evidências, mas políticas públicas não são decisões técnicas e sim respostas
(sempre provisórias e questionadas) a conflitos de interesse. Sem isso,
recaímos na tecnocracia.
E Lula
se equilibra no esforço de atender a dois senhores: não me melindrar o
“mercado” e garantir alguma melhoria para os mais pobres. Isso nunca foi
suficiente, mas, agora, menos ainda.
Nas
circunstâncias em que nos encontramos, com uma disputa política acirrada pela
presença de uma extrema-direita aguerrida, o governo não precisa tanto de
popularidade, sim de apoio. Isto é, precisaria ser capaz de mobilizar sua base
social contra adversários claramente identificados que impedem qualquer tipo de
avanço. Como escrevi há alguns meses, “mais do que de marketing, o governo está
precisando de agitprop”.
Há uma
oportunidade para começar a travar essa disputa, com o projeto de reforma do
imposto sobre a renda que está tramitação no Congresso. Ela contempla uma
elevação, é verdade que bem modesta, da taxação dos mais ricos.
A
direita naturalmente é contra a medida. Seus modelos são Donald Trump e Javier
Milei; seu projeto é a abolição de qualquer progressividade tributária; seu
discurso opera com as fantasias do “Estado mínimo” e do “efeito trickle down”,
a balela segundo a qual é bom que os ricos fiquem cada vez mais ricos porque a
prosperidade escorreria do topo para a base da pirâmide.
O
relator do projeto é ninguém menos do que o deputado Arthur Lira, que se
inclina por minimizar qualquer aumento do imposto sobre os grandes rendimentos.
Essa é
uma batalha boa a ser travada. Marca com clareza a diferença entre um projeto
político que está integralmente a serviço dos privilegiados e outro que ao
menos inclui as necessidades dos mais pobres. No final das contas, não é essa a
primeira linha divisória que precisamos traçar? Uma parte importante do nosso
esforço não deve ser recolocar essa clivagem como central para as escolhas
políticas, dissipando as nuvens de fumaça que a propaganda da direita insiste
em produzir?
Além
disso, a tributação progressiva é uma das pautas mais fáceis de serem
defendidas. Quando falamos, por exemplo, da redução da jornada de trabalho
(outro item com potencial para mobilizar sua base social, mas que o governo foi
incapaz de encampar), há vários aspectos a serem considerados envolvendo o
impacto nos preços, a situação dos pequenos empregadores etc. Imposto
progressivo, não: ele é sustentado pelo simples bom senso e por um sentido de
justiça elementar.
Há um
vasto arsenal de informações que o governo pode disponibilizar em favor de seu
projeto. É preciso indicar com clareza quem serão os atingidos pela medida
(aqueles com renda superior a R$ 50 mil mensais, o topo do topo da pirâmide);
mostrar como a estrutura de impostos no Brasil é injusta; apresentar os dados
que provam que, mesmo aprovada a nova legislação, continuaremos com uma
progressividade muito baixa e uma carga tributária pequena em relação aos
outros países do mundo. É preciso, na verdade, deixar claro que qualquer
governo interessado em melhorar a vida do povo vai ter que enfrentar a
resistência dos ricos.
Não se
trata apenas, nem mesmo preferencialmente, de calibrar a comunicação dos perfis
do governo. É preciso usar as ferramentas que ele tem a sua disposição. Lula
deveria falar em rede nacional de rádio e televisão, por exemplo, com
contundência. A propaganda paga governamental deveria ser utilizada em favor do
projeto. Afinal, o governo Temer não passou meses martelando a defesa de sua
malfadada reforma da previdência em comerciais de TV, em anúncios de jornal, em
postagens impulsionadas nas plataformas sociodigitais?
O
governo está com a faca e o queijo na mão para fazer este enfrentamento e
mostrar, finalmente, que tem lado.
Fonte:
Por Luís Felipe Miguel, em seu substack/Outras Palavras
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