Como
Equador virou principal rota de cocaína no mundo, que está em franca expansão
"A máfia albanesa me ligava e
dizia: 'Queremos enviar 500 kg de drogas.' Se você não
aceitasse, eles o matariam."
César
(nome fictício) faz parte da Latin Kings, uma gangue criminosa de tráfico de
drogas do Equador. Ele foi recrutado
por um policial corrupto ligado ao combate ao narcotráfico para trabalhar para
a máfia albanesa, uma das redes de tráfico de cocaína mais ativas da Europa.
A máfia
albanesa ampliou sua presença no Equador nos últimos anos, atraída pelas
importantes rotas de tráfico que atravessam
o país. Agora, ela controla grande parte do fluxo de cocaína da América do Sul
para a Europa.
O país
escolhe novo presidente no segundo turno das eleições neste domingo (13/4). O
atual presidente Daniel Noboa, de centro-direita, disputa votos com Luisa
González, de esquerda.
O
Equador não produz a droga, mas 70% da cocaína do planeta flui através dos seus
portos, segundo o presidente do país, Daniel Noboa.
A
cocaína é contrabandeada para o Equador dos países vizinhos, Colômbia e Peru,
que são os dois maiores produtores de cocaína do mundo.
A
polícia afirma ter apreendido uma quantidade recorde de drogas ilícitas no ano
passado – e a droga embargada em maior quantidade é a cocaína. Isso indica que
o total de exportações está aumentando.
As consequências são mortais. Em janeiro de 2025,
houve 781 assassinatos – o maior número dos últimos anos em um único mês.
Muitas destas mortes estavam relacionadas ao comércio de drogas ilegais.
A BBC
conversou com pessoas que participam da cadeia de suprimento para entender por
que a crise está se agravando – e como ela é impulsionada pelo aumento do
consumo de cocaína na Europa.
César
tem 36 anos de idade e começou a trabalhar com os cartéis quando tinha 14 anos.
Um dos fatores, segundo ele, foram as poucas oportunidades de trabalho.
"Os
albaneses precisavam de alguém para resolver problemas", explica ele.
"Eu conhecia os guardas portuários, os motoristas do transporte, os
supervisores das câmeras de circuito fechado."
Ele
suborna estas pessoas para ajudar a contrabandear drogas para os portos do
Equador ou simplesmente para olhar para o outro lado – ou virar a câmera,
quando for o caso.
Depois
que a cocaína chega ao Equador, da Colômbia ou do Peru, ela é guardada em
armazéns, até que seus patrões albaneses saibam de algum contêiner que irá
deixar um dos portos equatorianos, em direção à Europa.
As
gangues usam três métodos principais para contrabandear cocaína nos navios.
Eles podem esconder as drogas junto à carga antes que ela chegue ao porto,
abrir contêineres no porto ou colocar as drogas nos navios em alto-mar.
César
chegava a ganhar até US$ 3 mil (cerca de R$ 18 mil) por um trabalho. Mas o
dinheiro não é o único incentivo.
"Se
você não completar um trabalho pedido pelos albaneses, eles irão matar
você", segundo ele.
César
conta que se arrepende um pouco do seu trabalho no comércio de drogas,
particularmente pelo que ele chama de "vítimas colaterais". Mas ele
acredita que a culpa é dos países consumidores.
Para
ele, "se o consumo continuar crescendo, o tráfico também irá aumentar.
Será incontrolável. Se eles combaterem lá, irá parar aqui."
Além
dos membros da gangue, trabalhadores comuns também ficam presos nesta cadeia de
abastecimento.
Juan
(nome fictício) é motorista de caminhão. Um dia, ele pegou um embarque de atum
para levar até o porto. Ele conta que algo parecia estar errado.
"O
primeiro alarme soou quando fomos até o armazém e havia apenas a carga, nada
mais", relembra ele. "Era um armazém alugado, sem o nome da
empresa."
"Dois
meses depois, vi no noticiário que os contêineres haviam sido retidos em
Amsterdã [na Holanda], repletos de drogas. Nós nunca saberíamos."
Existem
motoristas que transportam drogas sem saber, mas outros sofrem coerção. Se eles
se recusarem, serão mortos.
As
gangues europeias são atraídas para o Equador devido à sua localização, mas
também pelas suas exportações legais. Elas oferecem uma forma conveniente de
esconder cargas ilícitas.
"As
exportações de banana compõem 66% dos contêineres que saem do Equador",
explica o representante da indústria da banana local, José Antonio Hidalgo.
"E 29,81% deles vão para a União Europeia, onde o consumo de drogas está
em crescimento."
Algumas
das gangues chegam a criar falsas companhias de importação ou exportação de
frutas, na Europa e no Equador, para servirem de fachada para suas atividades
ilícitas.
"Estes
traficantes europeus posam de homens de negócios", segundo o promotor José
(nome fictício), que combate grupos do crime organizado. Ele concordou em falar
de forma anônima, devido às ameaças que já recebeu.
Um
exemplo famoso é o de Dritan Gjika. Ele é acusado de ser um dos líderes mais
poderosos da máfia albanesa no Equador.
Os
promotores afirmam que ele é acionista de empresas exportadoras de frutas no
Equador e de companhias de importação na Europa, usadas por ele para o tráfico
de cocaína.
Gjika
permanece foragido, mas muitos dos seus cúmplices foram condenados após uma
operação policial multinacional.
A
advogada Monica Luzárraga defendeu um dos seus associados. Agora, ela fala
abertamente sobre seu conhecimento a respeito da forma de operação destas
redes.
"Naquela
época, a exportação de banana para a Albânia explodiu", ela conta.
Luzárraga
parece frustrada pelo fato de as autoridades não terem deduzido mais cedo que
os grupos criminosos estavam usando estes negócios como frente de operações.
"Toda
a economia por aqui está estagnada", ela conta. "Mas aumentou a
exportação de um produto, que é a banana. Logo, dois mais dois é igual a
quatro."
·
Por que as exportações estão aumentando
Nos
portos do Equador, a polícia e as forças armadas tentam controlar a situação.
Barcos
patrulham as águas e a polícia examina caixas de banana em busca de tijolos de
cocaína. Até mergulhadores da polícia procuram drogas escondidas embaixo dos
navios.
Todos
são fortemente armados – até aqueles que simplesmente vigiam as caixas de
bananas antes de serem carregadas nos contêineres.
Isso
porque, se forem encontradas drogas em uma busca, provavelmente estará
envolvido um funcionário corrupto do porto, o que pode ocasionar um incidente
violento.
Apesar
de todos estes esforços, a polícia afirma que a quantidade de cocaína
contrabandeada com sucesso para fora do Equador atingiu níveis recorde. O
aumento da demanda e fatores econômicos são indicados como as causas deste
aumento.
Cerca
de 300 toneladas de drogas foram apreendidas no ano passado. Este número
representa um novo recorde anual, segundo o Ministério do Interior equatoriano.
O major
Christian Cozar Cueva, da Polícia Nacional equatoriana, afirma que "houve
um aumento de cerca de 30% das apreensões de mercadorias destinadas à Europa
nos últimos anos".
Este
aumento dos embarques de cocaína intensificou os riscos para as pessoas
envolvidas na cadeia de suprimento. O motorista de caminhão "Juan",
por exemplo, afirma que o aumento da "contaminação dos contêineres" o
deixou mais vulnerável.
Ele
conta que os policiais confiscaram um contêiner no dia anterior, com duas
toneladas de drogas.
"Costumavam
ser quilos, agora falamos em toneladas", segundo ele. "Se você não
contaminar os contêineres, terá duas opções: deixar o seu emprego ou acabar
morto."
Fustigada
pela pandemia de covid-19, a economia equatoriana deixou mais pessoas
vulneráveis ao recrutamento pelas gangues criminosas.
O
Estado com dificuldades financeiras após a pandemia, uma força de segurança com
pouca experiência no combate ao crime organizado e regras antes permissivas de
emissão de vistos facilitaram a presença das gangues no Equador após 2020.
Monica
Luzárraga afirma que 2021 foi o ano em que a "infiltração da máfia
albanesa decolou". Ela conta que o período coincidiu com um "fluxo de
entrada" de cidadãos albaneses e um pico nas exportações de banana,
incluindo para a Albânia.
Para
ela, "este é um negócio lucrativo que prejudica o Equador e beneficia as
organizações criminosas. Como podemos aceitar uma economia construída com base
no sofrimento?"
·
Recado para a Europa
A ira
equatoriana contra os cartéis estrangeiros não surpreende, considerando sua
contribuição para o aumento da violência no país.
Mas os
responsáveis pelo combate ao comércio ilegal e certos traficantes estão de
acordo em um ponto: o comércio é alimentado pelos consumidores, particularmente
na Europa, Estados Unidos e Austrália.
Dados das Nações Unidas demonstram que
o consumo global de cocaína atingiu níveis recorde. E as pesquisas da ONU
indicam que o Reino Unido é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo.
Cálculos
da Agência Nacional do Crime do Reino Unido (NCA, na sigla em inglês) indicam
que o país consome cerca de 117 toneladas de cocaína por ano e detém o maior
mercado da Europa.
As
evidências indicam que o consumo no Reino Unido está aumentando. Análises do
esgoto realizadas pelo Ministério do Interior britânico indicam que o consumo
de cocaína aumentou em 7% entre 2023 e 2024.
O NCA
apreendeu cerca de 232 toneladas de cocaína em 2024 durante suas operações,
contra 194 toneladas no ano anterior.
O
vice-diretor de liderança de ameaças do NCA, Charles Yates, afirma que isso faz
do Reino Unido o "país preferido" dos grupos do crime organizado, que
lucram com a alta demanda.
Ele
estima que o mercado de cocaína britânico totalize cerca de 11 bilhões de
libras (cerca de R$ 84,4 bilhões) e que as gangues criminosas lucrem cerca de 4
bilhões de libras (cerca de R$ 30,7 bilhões) por ano, somente no Reino Unido.
Os
responsáveis pelo combate às gangues no Equador, como o procurador José,
afirmam que cabe aos "países cujos cidadãos são consumidores exercer maior
controle" sobre os financiadores deste comércio.
Suas
vítimas assumem muitas formas. Para Hidalgo, os exportadores de bananas estão
sofrendo danos econômicos e de reputação. Para Luzárraga, são "as crianças
e adolescentes que estão sendo cooptados por gangues criminosas".
"Na
Europa, existem cidadãos dispostos a pagar grandes quantias em dinheiro pelas
drogas que consomem", segundo ela. "As drogas acabam custando a vida
dos cidadãos equatorianos."
A NCA
destaca que, além destes efeitos "catastróficos" sobre as comunidades
ao longo da cadeia de suprimento, o uso de cocaína é responsável pelo aumento
das mortes entre os usuários, devido aos seus impactos psicológicos e
cardiovasculares.
Houve
1.118 mortes relacionadas à cocaína no Reino Unido em 2023 – um aumento de 30%,
em comparação com o ano anterior.
A NCA
também alerta que a droga agrava a violência doméstica.
Yates
afirma que as ações policiais para combater o abastecimento claramente não são
suficientes.
Para
ele, "as ações do lado do fornecimento isoladamente nunca serão a
resposta. O que realmente importa é alterar a demanda."
Dos
membros das gangues de drogas até o presidente do país, esta também é a
mensagem do Equador para a Europa.
O
presidente equatoriano, Daniel Noboa, concorre à reeleição no segundo turno
presidencial neste domingo. Ele fez do combate às gangues criminosas uma das
suas principais prioridades e convocou os militares para enfrentar
a violência relacionada às gangues.
Noboa
declarou à BBC que "a cadeia que termina em 'diversão no Reino Unido'
envolve muita violência".
"O
que é divertido para uma pessoa provavelmente envolve 20 homicídios pelo
caminho", afirmou o presidente.
¨
A expansão pelo Brasil dos traficantes que se veem como
'soldados de Jesus'
Quando policiais fluminenses
apreenderem tijolos de cocaína ou trouxinhas
de maconha em operações
contra o tráfico no Rio, podem encontrar uma nova marca
estampando esses produtos ilegais: a Estrela de Davi. O símbolo religioso não
está ali em alusão à fé judaica, mas sim refletindo
a crença evangélica de que o retorno de
judeus a Israel resultará na segunda aparição de Jesus Cristo. A facção conhecida
por traficar drogas com essa nova roupagem é o Terceiro Comando Puro (TCP), um
dos grupos criminosos mais poderosos do Rio — que controla o tráfico no
Complexo de Israel e é notório tanto por desaparecimentos forçados quanto por
sua forte crença evangélica.
A
expressão mais visível da fé desse grupo criminoso é a Estrela de Davi azul
neon instalada no alto de uma caixa d'água em Parada de Lucas, a primeira de
cinco comunidades da Zona Norte da capital fluminense que foram
progressivamente controladas pelo grupo, e que passaram a compor, a partir de
2016, o chamado Complexo de Israel. O complexo é formado pelas comunidades
Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral. O
território foi tomado depois que um líder do TCP teve o que acreditou ser uma
revelação divina, de acordo com a teóloga e pastora Vivian Costa, autora
do livro Traficantes
Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (2023).
Segundo
Costa, os traficantes no local se veem como "soldados de Jesus" e se
autodenominam Tropa de Aarão, referência ao mais velho irmão de Moisés. Quem chega de trem a Parada de Lucas vê a bandeira
israelense logo na plataforma da estação, na placa que saúda: "Seja
bem-vindo ao Complexo de Israel." Esse território virou sinônimo do avanço
da fé evangélica entre criminosos e das restrições que impõem a fiéis de outras
religiões, sobretudo as de matriz africana. "Tanto as manifestações no
espaço público como no espaço privado foram proibidas de existir nesses
territórios, com muitas casas de umbanda e candomblé destruídas e
queimadas", afirma Costa. Nesses locais, a facção deixa sua assinatura e
marca de domínio: "Jesus é dono do lugar".
Entretanto,
de acordo com antropóloga Ana Paula Miranda, professora da Universidade Federal
Fluminense (UFF), esse modus operandi tem se espalhado pelo
Brasil, com ataques a terreiros de umbanda e candomblé replicados por
traficantes em favelas de outras metrópoles, como Fortaleza e Salvador — e não
apenas em territórios do TCP. "Esse não é um problema apenas do Rio. Virou
um problema das grandes cidades", afirma Miranda, que coordena o
Ginga-UFF, grupo de pesquisa dedicado a conflitos de natureza étnica, racial e
religiosa. "Em Fortaleza, por exemplo, vimos a mesma estratégia em favelas
do Comando Vermelho [CV]. Eles [traficantes] entram nas áreas, quebram objetos,
picham paredes e assinam 'CV abençoado."
Miranda
fala em "traficrentes" para descrever o fenômeno. Há quem se refira
a narcopentecostais ou
a traficantes evangélicos. São denominações
que despertam controvérsias, não só pela própria natureza dos termos. Também
pela incompatibilidade que muitos enxergam entre seguir esta fé e levar uma
vida no crime. O que para alguns pesquisadores é uma apropriação estratégica pelos
traficantes em
busca de legitimação e poder, é, para outros, um fenômeno natural em um país
cada vez mais evangélico.
<><>
'Vida sob o cerco'
A
população evangélica no Brasil tem
aumentado rapidamente, e há projeções que indicam que pode ultrapassar a
de católicos na próxima
década, passando a compor o principal grupo religioso do país. À medida que a
presença evangélica aumenta na sociedade, a capilaridade e o estilo carismático
sobretudo de denominações neopentecostais tornam sua presença expressiva em
periferias e favelas. Criminosos que exercem muitas vezes controle sobre esses
locais não estão isentos desta influência.
De
acordo com Christina Vital, professora de sociologia da UFF, o
"cerco" para moradores de comunidades vem se apertando em múltiplos
níveis — político, territorial, emocional, de consumo. No caso do Complexo de
Israel, soma-se um cerco à religião, que ocorre de forma "muito
significativa". "Os moradores de lá podem professar outras religiões,
mas sem dar visibilidade a elas", afirma Vital, que coordena o Laboratório
de Estudos Sócio Antropológicos em Política, Arte e Religião (Lepar/UFF). "Não
é folclore, não é exagero falar de intolerância religiosa naquele
território."
De
acordo com a pesquisadora, terreiros de umbanda e candomblé foram fechados não
apenas dentro das comunidades do complexo, como também nos bairros da cercania.
Em julho deste ano, houve relatos publicados na imprensa de que algumas
paróquias católicas na Zona Norte do Rio haviam sofrido represálias e cancelado
missas e atividades, o que Arquidiocese do Rio de Janeiro negou. De acordo com
Vivian Costa, o catolicismo no complexo também passou a ser celebrado forma
mais privada, sem ocupar praças ou pendurar faixas nas ruas.
O
preconceito sofrido por religiões de matriz africana é histórico e está longe de vir apenas de
traficantes. Mas os ataques têm impacto mais grave e abrangente quando partem
desses grupos, diz Rita Salim, que comanda a Delegacia de Crimes Raciais e
Delitos de Intolerância (Decradi) do Rio. "Esses casos têm maior gravidade
porque partem de uma organização criminosa, por um grupo com um líder, que
impõe medo a todo o território que domina", afirma a delegada. "Ele
consegue concretizar aquele crime sem muita resistência, já que aquele espaço é
dele. Dificilmente a vítima vai chamar a polícia ou fazer um registro de
ocorrência, porque fica receosa." De acordo com ela, alguns casos são o
suficiente para dar o exemplo e ditar a norma de que "somente uma fé pode
ser professada aqui". Apesar de o temor inibir denúncias, Salim ressalta
um mandado de prisão emitido contra o traficante que chefia o Complexo de
Israel, acusado de ordenar o ataque de templos de matriz africana em outra
comunidade, na Baixada Fluminense.
·
'Neocruzada'
Casos
de extremismo religioso ligados ao tráfico de drogas nas comunidades do Rio
começaram a despertar alarme no início dos anos 2000. Mas o problema tem
aumentado de forma dramática, de acordo com o babalorixá Márcio de Jagun, à
frente da Coordenadoria de Diversidade Religiosa da Prefeitura do Rio de
Janeiro.
Jagun
diz que o problema tem se espalhando pelo Brasil, com ataques do
gênero vistos em outras cidades. "Isso é uma forma de neocruzada",
afirma Jagun. "O preconceito por trás desses ataques é religioso e étnico,
discriminando religiões de matriz africana que são demonizadas há 500 anos, com
foras da lei alegando querer banir o mal em nome de Deus."
Mas
religião e crime sempre se entrelaçaram no Brasil, enfatiza a teóloga Vivian
Costa. No passado, traficantes pediam proteção a entidades afrobrasileiras e
santos católicos. "Se olharmos para o nascimento do Comando Vermelho e
depois do Terceiro Comando e do TCP, a presença do catolicismo e das
religiosidades afro estão ali desde a sua gênese", descreve. "Nós
vamos ver a presença de São Jorge, a presença de Ogum, os corpos fechados, as
tatuagens, as guias, os crucifixos, os cultos, as velas, as oferendas. Por
isso, chamar de narcopentecostalismo é reduzir essa relação tão presente, tão
sólida, tão histórica e tradicional do crime com a religião." Costa
prefere falar em uma "narcorreligiosidade", abarcando uma relação
entre religião e tráfico que sempre existiu e agora se reconfigurou para
abarcar a crença evangélica, reflexo do espaço e expressão que esta ganhou na
sociedade.
<><>
Um fuzil e a Bíblia
O
pastor Diego Nascimento é um exemplo de outra dimensão na relação da religião
com o crime: a de porta de saída. Ele tem experiência nas duas frentes, o
tráfico e a fé, embora não ao mesmo tempo. O pastor se tornou cristão depois de
ouvir o evangelho pregado por outro traficante, empunhando um fuzil. É difícil
imaginar que o pastor de 42 anos da Igreja Metodista Wesleyana, com jeito
jovem, sorriso fácil e covinhas, foi outrora o DG da Vila Kennedy, chefe do
tráfico na comunidade onde nasceu e cresceu, na Zona Oeste do Rio, onde agia
como braço local do Comando Vermelho.
Nascimento
passou quase quatro anos na prisão por tráfico de drogas, preso portando mais
de 200 envelopes de cocaína. Mas o cárcere não o dissuadiu da vida no crime.
Foi o crack que levou a um beco sem saída: ele foi consumido pelo vício e
perdeu a confiança da organização criminosa.
"Perdi a minha família, fui para as drogas, morei na rua quase um
ano. Cheguei ao ponto de vender as coisas de dentro de casa para usar o crack", conta. Quando
estava no fundo do poço, um traficante com autoridade na comunidade mandou
chamá-lo. "Cheguei todo sujo e ele começou a falar de Jesus para mim.
Disse que aquilo não era vida para mim, e que quando ele se envolveu no
tráfico, ele se espelhava em mim e queria ser como eu", lembra.
"Ele
começou a pregar e a dizer que ainda tinha jeito para mim, que era só eu
aceitar Jesus. E ali eu tomei uma atitude de ir para uma igreja."
O jovem
viciado seguiu o conselho do traficante e procurou uma igreja, começando sua
jornada para o púlpito. O traficante que pregou para ele com um fuzil já
morreu, como outros amigos que pastor Diego viu serem levados pelo crime. O
pastor ainda passa tempo com criminosos, mas, hoje, é por meio de seu trabalho
pregando nos presídios do Complexo de Bangu, onde ele tenta ajudar outras
pessoas a mudar suas vidas, dando seu próprio testemunho como exemplo de que é
possível. Apesar de ter se convertido graças a um traficante, o pastor Diego
considera, assim como diversos outros que seguem esta mesma fé, que a ideia de
criminosos evangélicos é uma contradição em termos. "Não os vejo como
pessoas que se acham evangélicas", afirma o pastor. "Vejo pelo lado
do temor a Deus de quem sabe que está levando a vida errada e que quem guarda a
vida deles é Deus. Acredito que não existe isso de juntar as duas coisas",
prossegue. "Se a pessoa aceita Jesus e segue os mandamentos bíblicos, não
pode estar no tráfico."
Fonte:
BBC News Brasil
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