Papa
Francisco se equilibrou entre luta por justiça social e defesa do
conservadorismo
Morreu nesta segunda-feira, 21/04, aos 88
anos, o papa Francisco, primeiro papa sul-americano e não europeu da
história da igreja Católica.
No último domingo (20/4), Domingo de Páscoa,
ele fez uma aparição pública na Praça São Pedro, no Vaticano, e desejou
"Feliz Páscoa" aos milhares de fieis que estavam no local.
Após a bênção, o Papa foi conduzido pela
praça. Ao passar pela multidão, sua procissão parou várias vezes para que bebês
fossem trazidos para ele abençoar.
Francisco havia sido internado no hospital
Gemelli, em Roma, em fevereiro deste ano para passar por tratamento e exames de
bronquite. Após algumas semanas de internação, ele recebeu alta.
Em março de 2023, o papa já havia passado
três noites no mesmo hospital, para tratar também de uma bronquite.
A ascensão do papa Francisco ao trono de São
Pedro foi uma ocasião carregada de ineditismos, o que alimentou o debate sobre
a liderança da Igreja Católica.
Aos 76 anos de idade, o cardeal Bergoglio da
Argentina se tornou o primeiro pontífice das Américas e do hemisfério sul em
2013. Converteu-se também no primeiro papa jesuíta — ordem que, historicamente,
era vista com desconfiança por Roma. Desde a morte de Gregório 3º, nascido na
Síria em 741, todos os papas haviam sido europeus.
Outro fato inusitado: o antecessor de
Francisco, Bento 16, havia sido o primeiro papa a renunciar em quase 600 anos.
Por quase uma década, portanto, os jardins do Vaticano foram lar de dois papas.
Findo o pontificado conservador de Bento 16,
muitos católicos presumiram que o papa seria um homem mais jovem. Bergoglio se
apresentou como um candidato de centro: apaziguando os conservadores com visões
ortodoxas sobre questões sexuais, ao mesmo tempo que acenava aos reformadores
com posições liberais a respeito de justiça social.
Esperava-se que seu histórico pouco ortodoxo
ajudasse a rejuvenescer o Vaticano e revigorar sua missão sagrada. Porém,
dentro da burocracia do Vaticano, algumas das tentativas de reforma de
Francisco encontraram resistência e seu antecessor permaneceu popular entre os
tradicionalistas.
Desde o momento de sua eleição, Francisco
indicou que faria as coisas de forma diferente. Recebeu seus cardeais
informalmente e de pé, em vez de sentado no trono papal.
Em 13 de março de 2013, o papa Francisco
apareceu na sacada com vista para a Praça de São Pedro. Vestido simplesmente de
branco, ele usava um novo nome que homenageava São Francisco de Assis, o
pregador do século XIII e amante dos animais.
Franciso queria que seu papado fosse marcado
pela humildade e não pela pompa e cerimônia. Após sua eleição, dispensou a
limusine papal e insistiu em voltar com o ônibus que levava outros cardeais de
volta para casa.
O novo papa estabeleceu uma missão moral para
o rebanho de 1,2 bilhão de pessoas. Em sua primeira audiência com a imprensa,
poucos dias após sua escolha, disse: “Como eu gostaria de ter uma Igreja pobre
para os pobres”.
Quase dez anos depois, Francisco, ainda em
vida, presidiu o funeral de seu antecessor. Semanas antes, ele havia revelado
ter escrito uma carta de renúncia, caso ficasse impossibilitado de exercer suas
funções por razões médicas.
·
Um papa devoto do
futebol
Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires,
Argentina, em 17 de dezembro de 1936, o primogênito de cinco filhos. Seus pais
haviam fugido de sua terra natal, a Itália, para escapar do fascismo.
Bergoglio gostava de dançar tango e se tornou
torcedor do San Lorenzo, seu clube de futebol local.
Teve a sorte de escapar com vida após um
grave ataque de pneumonia, sendo submetido a uma operação para remover parte de
um pulmão. Isso o deixaria suscetível a infecções por toda a vida.
Devido à sua idade avançada, também sofria de
dores no joelho direito, que descreveu como uma "humilhação física".
O jovem Bergoglio trabalhou como segurança de
boate e varredor de chão, antes de se formar como químico.
Em uma fábrica, trabalhou ao lado de Esther
Ballestrino, bioquímica e ativista política que se opunha à última ditadura
militar argentina (1976-1983). Ballestrino, uma das vítimas de desaparecimento
forçado do regime, foi torturada e seu corpo nunca foi encontrado.
Bergoglio abraçou a ordem dos jesuítas,
estudou filosofia e lecionou literatura e psicologia. Ordenado uma década
depois, foi promovido rapidamente, tornando-se superior provincial da Argentina
em 1973.
Muitos o criticaram por não fazer uma
oposição mais veemente ao brutal regime dos generais argentinos.
Bergoglio foi acusado de envolvimento no
sequestro de dois padres por agentes do regime, durante a chamada Guerra Suja,
no qual as forças armadas do país prenderam, torturaram e assassinaram dezenas
de milhares de pessoas.
Os dois padres também foram torturados, mas
acabaram sendo encontrados vivos, fortemente sedados e seminus.
Bergoglio foi acusado de não ter informado às
autoridades que o trabalho deles em bairros pobres havia sido endossado pela
Igreja. Por essa razão, os padres teriam ficado abandonados à sua própria sorte
e aos esquadrões da morte.
Bergoglio sempre negou categoricamente essa
alegação, insistindo que havia trabalhado nos bastidores para libertá-los.
Perguntado por que não havia protestado junto às autoridades, ele teria se
referido à situação difícil.
A verdade é que, aos 36 anos de idade,
Bergoglio se vira imerso em um caos que teria desafiado mesmo o líder mais
experiente. Em outras ocasiões, o religioso ajudou muitos ativistas que
buscavam fugir do país.
Bergoglio também era mal-visto por alguns
jesuítas que achavam que lhe faltava interesse na chamada teologia da
libertação — uma síntese do pensamento cristão e da sociologia marxista que
buscava derrubar a injustiça. Ele certamente preferia uma forma mais suave de
apoio pastoral.
Às vezes, essa divergência beirava um
precipício. Quando Bergoglio determinou que tentaria se eleger papa, em 2005,
alguns jesuítas deram um suspiro de alívio.
Em 1992, Bergoglio foi nomeado bispo auxiliar
de Buenos Aires e depois se tornou arcebispo. Em 2011 foi nomeado cardeal pelo
papa João Paulo 2º e assumiu diversos cargos na Cúria, o corpo administrativo
do Vaticano.
·
Diplomacia papal e
justiça social
O cardeal argentino cultivou a reputação de
um homem de gostos simples: viajava de avião na classe econômica e preferia
usar a batina preta de padre, em vez do vermelho e roxo correspondentes ao seu
novo cargo.
Em seus sermões, pedia inclusão social e
criticava os governos que descuidavam dos mais pobres da sociedade.
"Vivemos na parte mais desigual do mundo, a que mais cresceu, mas a que
menos reduziu a miséria", ele teria dito em uma conferência de bispos
latino-americanos em 2007, segundo o National Catholic Report.
Como papa, Francisco buscou remediar a
ruptura de mil anos com a Igreja Ortodoxa Oriental. Em reconhecimento, pela
primeira vez desde o Grande Cisma de 1054, o Patriarca de Constantinopla
participou da instalação de um novo Bispo de Roma, como também é chamado o
papa.
Além disso, colaborou com anglicanos,
luteranos e metodistas e até convenceu os líderes israelense e palestino a orar
juntos pela paz.
Durante uma visita a Belém em maio de 2014,
Francisco quebrou o protocolo oficial ao descer do carro que lhe transportava à
praça da Manjedoura e rezou em silêncio com a cabeça apoiada no muro que separa
Belém de Jerusalém. Depois convidou o presidente da Autoridade Palestina,
Mahmoud Abbas, e o presidente israelense, Simon Peres, a orar juntos pela paz
no Vaticano — ambos anunciaram que aceitaram a oferta.
Francisco evitava mencionar o islã quando se
pronunciava sobre atos violentos jihadistas. Em 2016, declarou a jornalistas
que não era justo associar a religião do profeta Maomé à violência. “Se falo de
violência islâmica, também tenho de falar da violência cristã. Em quase todas
as religiões, há sempre um pequeno grupo de fundamentalistas. Nós também os
temos,” disse.
O papa argentino reforçou a reivindicação do
seu país sobre as ilhas Malvinas — cuja posse motivou uma guerra entre
Argentina e Reino Unido em 1982 — ao deixar-se fotografar em 2015 com um cartaz
que pedia uma solução negociada entre as duas nações.
Como arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio
costumava rezar pelos veteranos a cada aniversário do conflito. Em 2012, antes
de tornar-se papa, disse durante uma dessas ocasiões: “Viemos rezar pelos que
caíram, filhos da pátria que foram defender a sua mãe, a pátria, a reclamar o
que é seu, da pátria, e lhes foi usurpado”.
Além disso, como líder global da América
hispânica, mediou uma aproximação do governo de Barack Obama com o governo
cubano. Um papel que dificilmente poderia ser cumprido por um pontífice
europeu.
À medida que sua saúde declinava, as viagens
de Francisco diminuíam de frequência. Ainda assim, em fevereiro de 2023, ele
fez uma peregrinação de paz ao Sudão do Sul, pedindo aos líderes do país que
busquem um fim para o conflito civil que começou em 2014.
Francisco também pediu o fim da "guerra
absurda e cruel" na Ucrânia, mas decepcionou os ucranianos ao dizer que o
conflito pareceu ter sido “provocado” ou pelo menos “não evitado” pelos países
ocidentais.
·
Conservador nos costumes
e temas sociais
Por outro lado, o papa Francisco era
tradicionalista em muitos dos ensinamentos da Igreja.
Segundo um colega de seminário, Monsenhor
Osvaldo Musto, Francisco foi "tão intransigente quanto o papa João Paulo
2º em relação à eutanásia, à pena de morte, ao aborto, ao direito à vida, aos
direitos humanos e ao celibato dos padres".
O pontífice declarou que a Igreja deveria
acolher as pessoas independentemente de sua orientação sexual, mas insistiu que
a adoção gay era uma forma de discriminação contra crianças.
Embora tenha manifestado certa inclinação em
favor de permitir a união entre pessoas do mesmo sexo, Francisco foi contra
chamá-la de casamento. Isso, segundo ele, seria "uma tentativa de destruir
o plano de Deus".
Pouco depois de se tornar papa em 2013,
Francisco participou de uma marcha contra o aborto em Roma, pedindo direitos
para os não nascidos "desde o momento da concepção". Ele também
enviou uma mensagem para o povo irlandês durante a realização de um referendo
sobre o tema na República da Irlanda, pedindo aos eleitores que protegessem os
vulneráveis.
Francisco resistiu à ordenação de mulheres,
declarando que o papa João Paulo 2º havia descartado essa possibilidade de uma
vez por todas.
E, embora a princípio parecesse permitir que
a contracepção pudesse ser usada para prevenir doenças, elogiou um ensinamento
de Paulo 6º sobre o assunto, segundo o qual os contraceptivos poderiam reduzir
as mulheres a instrumentos de satisfação masculina.
Em 2015, o papa Francisco disse em uma
audiência nas Filipinas que a contracepção envolvia "a destruição da
família por meio da privação de crianças". Não era a ausência de filhos em
si que ele considerava tão prejudicial, argumentou, mas a decisão deliberada de
evitá-los.
·
Escândalos de abuso
sexual
O maior desafio ao seu papado, no entanto,
veio de duas frentes: daqueles que o acusavam de não combater o abuso sexual e
pedofilia dentro da Igreja de forma mais incisiva, e dos críticos conservadores
que achavam que Francisco estava diluindo a fé. A crítica desses últimos se
referia à permissão para que católicos divorciados e casados pela segunda vez
pudessem comungar.
Em agosto de 2018, o arcebispo Carlo Maria
Viganò, ex-núncio apostólico nos EUA, publicou uma carta de 11 páginas acusando
Francisco de ter acobertado crimes sexuais cometidos pelo ex-arcebispo de
Washington, Theodore McCarrick. A carta pedia a renúncia do papa.
McCarrick, que liderou a arquidiocese de
Washington de 2001 a 2006, durante os pontificados de João Paulo 2º e Bento 16,
havia renunciado sob acusações de que teria assediado seminaristas adultos e
abusado de um menino durante anos. O religioso alegou inocência.
McCarrick havia deixado a arquidiocese ao
completar 75 anos, idade em que os bispos católicos são obrigados a apresentar
sua renúncia — que pode ser aceita pelo papa ou não —, mas permanecera no
Colégio dos Cardeais, que aconselha o pontífice.
Em sua carta, Viganò também reforçou as
críticas da ala mais conservadora da Igreja à modesta abertura de Francisco em
relação aos homossexuais, afirmando que "redes homossexuais" dentro
da hierarquia da Igreja são cúmplices na "conspiração de silêncio"
que permitiu os abusos de McCarrick e de outros.
McCarrick acabou sendo destituído do cargo em
fevereiro de 2019, após uma investigação do Vaticano.
·
Legado
Jorge Mario Bergoglio chegou ao trono de São
Pedro determinado a reformar o mais alto posto da Igreja Católica. Para dar o
exemplo, foi o papa sem floreios que escolheu não morar no Palácio do Vaticano
– completo com a Capela Sistina — mas no moderno anexo, que João Paulo 2º havia
construído como uma casa de hóspedes.
Francisco acreditava que a pompa equivalia à
vaidade. "Observe um pavão: se você o olhar de frente, ele é muito bonito.
Mas se der alguns passos para trás e olhar para ele por trás, você perceberá a
realidade,” disse.
À sua filosofia, buscou aprimorar a missão
histórica da Igreja, eliminando conflitos internos, concentrando-se nos pobres
e devolvendo a Igreja ao povo. "Precisamos evitar a doença espiritual de
uma igreja autorreferencial”, declarou, após sua eleição. “Se a igreja permanecer
fechada em si, autorreferencial, envelhece. Entre uma igreja que sofre
acidentes na rua, e uma igreja doente porque é autorreferente, prefiro a
primeira.”
Com essas palavras, Francisco indicou
claramente que esperava uma oposição doutrinária. Em graus variados, é algo que
todos os papas enfrentaram.
O que fortaleceu seus oponentes — de todos os
cantos do espectro liberal-conservador — foi sua atuação controversa ao lidar
com o histórico de abusos sexuais dentro da instituição.
¨
Como foi reunião do papa Francisco com J.D. Vance, vice
de Trump, um dia antes de morrer
O papa Francisco se reuniu com o vice-presidente
dos Estados Unidos, J.D. Vance, no domingo
de Páscoa (20/4), um dia antes de sua morte ser anunciada.
O encontro ocorreu na Casa Santa Marta,
residência oficial do pontífice no Vaticano, pouco antes das celebrações de
Páscoa. O vice-presidente se converteu ao catolicismo em 2019.
Segundo a Sala de Imprensa da Santa Sé, J.D.
Vance e Francisco se reuniram por poucos minutos, durante os quais o papa
presenteou o vice-presidente americano com uma gravata com o brasão do
Vaticano, um terço e ovos de Páscoa para cada um dos filhos de Vance.
"É um prazer vê-lo em melhor estado de
saúde", disse J.D. Vance ao papa argentino, em vídeo divulgado pelo
Vaticano. "Obrigado por me receber. Rezo pelo senhor todos os dias. Que
Deus o abençoe".
Após o anúncio do
falecimento do papa Francisco, o
vice-presidente americano afirmou que ficou feliz em ter se reunido com Sua
Santidade.
"Meu coração está com os milhões de
cristãos em todo o mundo que o amavam. Fiquei feliz em vê-lo ontem, embora ele
estivesse obviamente muito doente", escreveu no X (antigo Twitter).
Vance também afirmou que sempre se lembrará
de Francisco pela homilia que ele proferiu nos primeiros dias da pandemia de
covid-19. "Foi realmente muito bonito", disse.
A visita do vice-presidente a Francisco
aconteceu cerca de dois meses após o líder da Igreja Católica criticar
duramente a política migratória do governo de Donald Trump.
Em fevereiro, o papa classificou as expulsões
em massa de migrantes como uma "grande crise". Em uma carta enviada
aos bispos americanos, Francisco exortou os católicos e outros "a não
cederem a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos
nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados".
"O que se constrói à base de força, e
não a partir da verdade sobre a igual dignidade de todo ser humano, mal começa
e mal terminará", escreveu ainda o pontífice.
Após as críticas, Vance afirmou que
continuaria a defender suas opiniões. Em um evento católico em Washington DC, o
vice-presidente se autodenominou um "católico bebê" e reconheceu que
havia "coisas sobre a fé que eu desconhecia".
J.D. Vance viajou com sua família para a
Itália e chegou a Roma na sexta-feira (18/04). No sábado, encontrou-se com o
Secretário de Estado e o Secretário para as Relações com os Estados e
Organizações Internacionais do Vaticano.
Durante "conversas cordiais", as
partes expressaram satisfação com as "boas relações bilaterais
existentes" e um "compromisso comum" com a proteção da liberdade
religiosa, afirmou o Vaticano em um comunicado.
"Houve uma troca de opiniões sobre a
situação internacional, especialmente em relação aos países afetados por
guerras, tensões políticas e situações humanitárias difíceis, com atenção
especial aos migrantes, refugiados e prisioneiros", completa o texto.
Fonte:
BBC News

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