A
'capital mundial dos dentistas' no México que prospera com horda de americanos
atrás do sorriso perfeito
Nancy
Nelson tem medo de dentista. Uma vez, ela ficou tão nervosa, que sua mandíbula
chegou a se deslocar. Mas faz 25 anos - hoje ela tem mais de 60 -, que ela
passou a ir ao dentista em Los Algodones, no México, e não teve mais esse
problema.
"São
muito gentis, carinhosos e atenciosos em relação ao meu medo", disse,
enquanto aguardava na fila de imigração para voltar aos Estados Unidos.
Los
Algodones é uma pequena cidade mexicana de 10 mil habitantes na fronteira com
os Estados Unidos, onde um a cada dez habitantes é dentista. A informação é
confirmada pela prefeita, Herminia Marín, que também é dentista.
"A
cidade é conhecida como capital mundial dos dentistas ou cidade do dente."
Entre
três e cinco mil norte-americanos visitam a cidade todos os dias para ir ao
dentista, mas também para tomar margaritas, comer uns tacos e dançar algumas
músicas.
Nancy
vive em Cleveland, uma vila em Wisconsin que fica a cerca de 3.000 quilômetros
de Los Algodones. Nos primeiros meses do ano, a temperatura lá chega a 0 graus
celsius. Há relatos de tempestade de neve. Nessa mesma época, a temperatura em
Los Algodones fica acima dos 15 graus, o que atrai muitos aposentados como
Nancy e o marido, Bruce.
"Voamos
do Arizona para cá, alugamos um carro, ficamos algumas noites, fomos ao
dentista, economizamos milhares de dólares e ainda aproveitamos umas
férias", diz Bruce.
É
comum, principalmente durante o inverno, ver norte-americanos se deslocando
para o sul do país, parando seus carros em estacionamentos gigantes e cruzando
a fronteira a pé para entrar em Los Algodones.
Eles
são chamados em uma gíria local de "los ángeles de la nieve", ou
"las aves migratorias", que na tradução livre para o português seria
algo como "anjos da neve" ou "aves migratórios".
São
turistas que deixam o México com um sorriso brilhante, fascinados pela
hospitalidade dos garçons e dos dentistas. Um fluxo migratório que revela como
é - e como tem sido há décadas- a interação cultural entre mexicanos e
estadunidenses, apesar de um muro de cerca de 10 metros de altura que pode ser
visto de qualquer ponto da cidade.
• De produtores de algodão a dentistas
Los
Algodones, como o próprio nome sugere, foi um epicentro da indústria de algodão
que se desenvolveu no norte do México durante o século XX, teve seu maior auge
a Segunda Guerra Mundial, que impulsionou a demanda pela fibra, e entrou em
declínio a partir dos anos 70.
Embora
as plantações de algodão ainda sejam vistas na região, durante as últimas
décadas a economia da fronteira se voltou a serviços que pudessem atender as
demandas do norte.
"Todas
as cidades do norte do México, sem exceção, recebem um volume enorme de demanda
de serviços médicos nos Estados Unidos, às vezes promovido pela indústria
farmacêutica", disse José Zavala, um engenheiro e especialista em
desenvolvimento no Colégio de la Frontera, em Tijuana, no México.
"Acontece
que em Los Algodones isso é mais perceptível por ser uma cidade pequena e
porque, nessa região, ao norte da fronteira, há uma grande concentração de
aposentados", explica.
A
interação entre o norte do México e o sul dos Estados Unidos é histórica,
profundamente enraizada, quase estrutural. Milhões de famílias cresceram de
ambos os lados. Até os anos 70, os nortistas podiam cruzar a fronteira sem
passaporte. O que se vêm em Los Algodones é um exemplo de uma relação comercial
e cultural de longa data.
Uma
relação que é colocada à prova com Donald Trump na presidência dos Estados
Unidos, sua abordagem dura em relação aos imigrantes e as tarifas às
importações mexicanas. Mas, que pela raiz histórica, é algo difícil de se
romper.
"As
tarifas são um obstáculo, mas a relação econômica é muito difícil de ser
rompida", garante Zavala.
Carlos
Rubio foi um dos primeiros dentistas de Los Algodones nos anos 80. Nascido em
Sinaloa, no oeste do México, se mudou para a fronteira ainda jovem para tentar
a sorte e se deparou com uma demanda por serviços odontológicos, o que fez com
que ele se especializasse e montasse um consultório, que hoje é uma sofisticada
clínica dentista.
Durante
um passeio, perguntei a ele que tipo de sorriso é favorito entre os clientes e
então uma de suas assessoras, de origem venezuelana, interrompeu rindo.
"Os gringos são obcecados com sorriso branco descolorido, como se tivesse
usado água sanitária".
Rubio,
que mora em Yuma, no Arizona, e cruza a fronteira todos os dias a trabalho,
acredita que "o sistema de saúde dos Estados Unidos não é social".
"Dos
300 milhões de habitantes, uns 60% não tem seguro odontológico ou tem uma
cobertura parcial. Isso representa entre 80 milhões e 160 milhões de pessoas
com cobertura precária. Ou seja, há entre 80 e 160 milhões de oportunidade para
nós."
Segundo
a Associação Odontológica Americana, um terço dos adultos, entre 19 e 64 anos,
não tem seguro dental, apesar de ter seguro médico. A grande maioria dos
seguros odontológicos não cobre nada além de uma limpeza ou check-up.
Com
isso, a maioria dos estadunidenses não tem outra opção a não ser gastar dezenas
de milhões de dólares. Ou ir a Los Algodones.
• O problema do seguro odontológico nos
EUA
Roger
Graves é um veterano de guerra que mora na Flórida. Ele veio com a esposa e a
filha pela quarta vez a Los Algodones para fazer tratamento nos dentes. Dessa
vez, eles ficaram hospedados por algumas noites na cidade, e fazem fila para
cruzar a fronteira com malas, entre vendedores ambulantes de artesanatos e
alimentos mexicanos.
"Eu
tenho seguro médico por ser veterano, mas não inclui tratamento odontológico, e
como a minha renda é de aposentado, assim como a da minha esposa, essa opção é
muito boa para nós", diz.
Segundo
as contas de Graves, ele economizou entre 67% e 75% indo para Los Algodones
para fazer o tratamento dentário.
"O
sistema médico estadunidense precisa ser consertado, é muito caro",
afirma, uma queixa que foi repetida por todos os entrevistados.
"É
um sistema inchado, só um pouquinho", disse de forma irônica June Spinler,
que é do estado de Iowa, no centro-oeste dos Estados Unidos, mas passa os
invernos no sul do país.
Juan
Ramón Soto, um camponês de origem mexicana, que tem cidadania americana,
acrescenta: "Posso arrancar todos os dentes aqui e colocar de novo que,
ainda assim, vai sair mais barato do que arrancar um dente nos Estados
Unidos."
A falta
de regulação dos preços, a fragmentação do sistema, o poder das farmacêuticas e
os custos administrativos, entre outros motivos, fazem o sistema de saúde
estadunidense ser o mais caro do mundo.
O
México também tem problemas sérios, mas a região norte do país desenvolveu uma
infraestrutura moderna com especialistas que souberam aproveitar a demanda
norte-americana.
E tudo
isso é feito com a hospitalidade típica dos mexicanos: eles te buscam na
fronteira com carrinhos de golfe, levam até o consultório, e depois te deixam
em uma das praças de alimentação ao ar livre onde você pode comer umas
enchiladas, tomar uma margarita e escutar música ao vivo.
June
Spinler resume a experiência: "Você encontra tudo em um só lugar".
Isso
torna mais fácil perder o medo de dentista.
Fonte:
BBC News no México

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