Pequena
África põe memória negra na rota do turismo no Rio
Por
décadas, milhões de africanos negros escravizados desembarcaram em condições
desumanas no antigo Valongo, zona portuária do Rio de Janeiro. Era o fim de uma
degradante jornada transatlântica e o começo do calvário que só seria
legalmente abolido no final do século 19.
Mas
eram também os capítulos iniciais de uma história que tem samba, feijoada e
batuque, na região que hoje é conhecida como Pequena África e se consolida na
rota do turismo carioca.
Palco
de tantas contradições, o passeio nem sempre é fácil para as emoções. Retrata
os detalhes de uma tragédia que ainda deixa cicatrizes econômicas, sociais e
urbanísticas no Brasil. Mesmo assim, o tour vem atraindo contingente cada vez
maior de turistas interessados no resgate de memórias que, por muito tempo,
ficaram enterradas.
Fora do
eixo das famosas praias da zona sul ou do verde da Floresta da Tijuca, o
território histórico já divide os holofotes com cartões-postais mais
tradicionais da cidade.
O
circuito entrou na lista dos dez locais do Rio mais visitados por turistas no
primeiro semestre do ano passado, conforme os dados mais atualizados da
Secretária Municipal de Turismo (SMTUR-Rio). Foram 354.810 visitas no período,
que deram à área a nona colocação no ranking, à frente do Pão de Açúcar (12º),
Jardim Botânico (14º) e Cristo Redentor (17º).
O
movimento ganhou força após a Unesco reconhecer o Cais do Valongo como
Patrimônio da Humanidade, em 2017. Desde
então, a região se transformou em um dos principais expoentes do afroturismo,
que promove um mergulho pelas raízes da história negra.
"Berço
da brasilidade e negritude"
Criado
em 2011 por decreto municipal, o Circuito da Herança Africana abrange o Cais do
Valongo e outros pontos focais da economia escravagista.
Uma lei
estadual de 2018 ampliou o escopo da Pequena África para incluir, entre outros,
o remanescente da casa onde nasceu Machado de Assis, no Morro do Livramento.
Também houve a adição das Docas Dom Pedro II, projetadas pelo arquiteto negro
André Rebouças em 1871.
Pelo
caminho, o turista encontra os badalados bares do Largo do São Francisco, o
samba da Pedra do Sal e restaurantes típicos da culinária brasileira.
"É
um dos berços da brasilidade e da nossa negritude", define a historiadora
Luana Ferreira, ao descrever as razões por trás da crescente popularização da
Pequena África.
Há sete
anos, Ferreira é uma das guias turísticas que ajudam a mudar o panorama da zona
portuária. Ela recebe grupos de diversas origens que buscam mais informações
sobre a experiência negra no Brasil. Muitas empresas também procuram o tour
como uma ferramenta de promoção de programas internos de diversidade.
Pelas
ladeiras e asfaltos dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, a excursão
promove uma espécie de radiografia do legado da escravidão. Ferreira reconhece
que o tema é duro, mas se esforça para mostrar que há mais do que apenas
sofrimento na cultura afrobrasileira.
"Não
quero que os visitantes saiam daqui depressivos, assim como não quero que
romantizem a situação", afirma. "É um passeio que emociona, mas a
partir de um lugar de leveza e altivez."
Para
isso, ela percorre também aspectos centrais da identidade brasileira, como a
capoeira, a religiosidade e a intelectualidade negra. Todos esses elementos
tiveram naquela área da cidade um ponto de efervescência, que atravessaram
gerações principalmente pelo relato oral.
• Uma história enterrada
As
marcas materiais dessa memória, por outro lado, foram sucessivamente
descaracterizadas pela evolução do tecido urbano. No começo do século passado,
as reformas do então prefeito do Rio, Pereira Passos, aterraram o Cais da
Imperatriz, que havia surgido anos antes em substituição ao Cais do Valongo.
Foi só
em 2011, como parte do projeto de revitalização da zona portuária, que os
ancoradouros foram redescobertos em uma escavação coordenada pela antropóloga
Tania Andrade de Lima, do Museu Nacional.
O
resgate do porto trouxe de volta o maior vestígio material do tráfico
escravista na América. O cais começou a ser construído em 1811, por ordem de
Dom João 6º, que havia se mudado para o Brasil junto com toda a família real
três anos antes.
As
obras se arrastaram até 1821, quando a região se firma como principal núcleo do
comércio escravista na passagem do Brasil Colônia para a Independência. As
estimativas mais aceitas indicam que cerca de 1 milhão de africanos
escravizados desembarcaram no local.
Mas é
difícil estimar quanto desse contingente passou pelo cais por falta de
registros formais, afirma o historiador Cláudio de Paula Honorato, coordenador
de pós-graduação do Instituto Pretos Novos. Em muitos casos, eles chegavam
pelas praias e já eram vendidos, sem precisar transitar pela estrutura. "O
cais sozinho não é muito coisa, mas dentro desse complexo mais amplo do
Valongo, ele é a representação simbólica de todo esse processo escravista que
acontece naquela região", explica.
No auge
das operações, o entorno do ancoradouro tinha uma vasta infraestrutura de apoio
à arquitetura escravagista. Sobrados e barracões funcionavam como lojas de
compra e venda de pessoas escravizadas e de produtos de tortura. Na Gamboa, um
prédio abrigava o Lazareto, onde os africanos acometidos por doenças passavam
por uma quarentena em condições insalubres.
"As
famílias mais ricas do Brasil controlavam esse mercado. Eles tinham dinheiro
para produzir ou alugar navios, controlar as companhias de seguro, além dos
mercados de secos e molhados", afirma Honorato.
• Para inglês ver
Em
1831, a edição da Lei Feijó proíbe o fluxo transatlântico de escravizados por
pressão da Inglaterra. Ainda assim, o comércio – agora contrabando – continua a
trazer africanos ao Brasil e dá origem à expressão "para inglês ver".
Só em 1850 que a Lei Eusébio de Queirós começa a aplicar a regra com mais
rigor.
Àquela
altura, o Cais do Valongo já havia sido substituído pelo Cais da Imperatriz,
reformado para receber a esposa do imperador Dom Pedro 2°, a princesa Teresa
Cristina, em 1843.
Nas
décadas seguintes, a região é estigmatizada na imprensa, o que abre caminho
para o aterramento do cais durante as reformas de Pereira Passos. Cortiços são
destruídos e as pessoas mais pobres são forçadas a buscar terrenos mais
desvalorizados. É nesse período que surge a primeira favela brasileira, o Morro
da Providência, próximo ao porto.
Pelas
batucadas do samba, os golpes da capoeira e as cantigas da umbanda e do
candomblé, porém, a região consegue resistir como uma espécie de meca da
cultura negra. "Houve uma tentativa de isolamento e invisibilização dessa
área, mas, por conta desse mesmo processo, a região preservou sua história e
sua memória", diz Honorato. "O poder público e a sociedade em geral
desconhecem essa história, mas Pequena África sempre esteve vive na memória da
comunidade afrodescendente".
• Uma história resgatada
A
turismóloga Emily Borges e a historiadora Bruna Cordeiro perceberam nas
discussões globais sobre equidade racial uma oportunidade para resgatar essa
história e transformá-las em negócio. Elas são sócias da Etnias Turismo e
Cultura, com uma equipe de 20 guias que conduzem um roteiro de quatro horas
pela região.
O ponto
de partida é o Largo de Santa Rita, onde foi instalado o primeiro cemitério de
negros escravizados do Rio. De lá, os participantes percorrem uma rota que
inclui o Cais do Valongo e o Museu da História e Cultura Afrobrasileira.
No
Instituto Pretos Novos, os visitantes conhecem os achados arqueológicos de
outro cemitério que recebeu restos mortais de pessoas negras vindas da África.
Há ainda uma parada para discutir os eventos da Revolta da Vacina, uma onda de
protestos contra a obrigatoriedade da vacina contra a varíola decretada em
1904.
"Eu
não consigo contar conta a história de cada pessoa negra que pisou naquele
lugar, mas cada vez que eu conto uma história, eu tento trazer um pouco mais de
dignidade para eles", afirma Cordeiro.
As
sócias contam que observaram um considerável aumento no interesse dos turistas
pela região. Os cariocas costumam ficar surpresas com o apagamento histórico em
uma área tão central da cidade, elas dizem.
Entre
os estrangeiros, os americanos representam a maior parcela do público.
"Eles sempre comentam que, no fundo, a história é a mesma, mas ficam
chocados como temos a cultura afrobrasileira tão enraizada em todos os
segmentos da sociedade", relata Borges.
• Desafios antigos persistem
Quem
trabalha no turismo da Pequena África reconhece que houve investimentos
públicos para potencializar os atrativos da região. As reformas para os Jogos
Olímpicos de 2016 derrubaram o antigo elevado da Perimetral e construíram um
passeio público.
No mês
passado, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançou
um edital para financiar três projetos liderados por arquitetos ou urbanistas
negros que desenvolvam intervenções urbanísticas no Distrito Cultural Pequena
África.
Apesar
disso, a ascensão do polo turístico esbarra em problemas antigos. Como parte da
candidatura do Cais do Valongo ao título de patrimônio mundial, o governo se
comprometeu a construir um Centro de Interpretação no prédio das Docas Dom
Pedro 2º, mas o projeto não saiu do papel.
No ano
passado, a Justiça Federal determinou que o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Cultural Palmares deveriam iniciar as
obras em um prazo de 180 dias. Procurados, o Iphan e a Fundação Palmares não
responderam aos questionamentos da reportagem.
Nos
arredores, há também o problema de segurança pública. É comum ver pessoas em
situação de rua e há relatos de circulação de drogas, segundo as guias
turísticas que conversaram com a DW. Desde 2022, a prefeitura fez mais de 2 mil
apreensões na área da Pequena África, incluindo de objetos perfurocortantes e
materiais destinados ao uso de droga. À reportagem, a Secretaria de Ordem
Pública (Seop) do município disse realizar diariamente ações de ordenamento,
desobstrução de áreas públicas e acolhimento às pessoas em situação de rua,
junto com a Secretaria de Assistência Social.
Emily
Borges, da Etnias Turismo e Cultura, vê ainda um processo de gentrificação que
expulsa populações tradicionais que ocupavam aquele espaço. "Há cada vez
mais empreendimentos imobiliários que tiram a população local dali e a joga
para trás, como sempre fizeram ao longo da história", diz.
São
desafios que se repetem na história brasileira e dificultam a preservação da
memória. Mas a guia turística Luana Ferreira está confiante no potencial da
Pequena África para continuar resistindo. "Os africanos civilizaram o
Brasil e o Rio é o grande distribuidor dessa cultura. A região do porto é a
base disso", afirma.
Fonte:
DW Brasil

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