Trabalho:
Retrato do “andar de baixo”
O
Brasil apresenta sinais de transformação na distribuição de renda entre os
trabalhadores, conforme demonstra recente levantamento realizado pelo diretor
do FGV Social, Marcelo Neri. A análise dos microdados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE revela que, embora a renda na
base da pirâmide social brasileira esteja crescendo mais aceleradamente que no
topo, o abismo entre os extremos permanece colossal e estruturalmente
enraizado.
Os
dados indicam que, na parcela dos 50% dos trabalhadores mais pobres, o aumento
da renda no quarto trimestre de 2024, comparado ao mesmo período de 2023, foi
de 10,7%, superando a média populacional de 7,1% e os 6,7% registrados entre os
10% mais ricos (Valor Econômico, 2025). No entanto, este crescimento
proporcional maior na base deve ser contextualizado frente à brutal
desigualdade absoluta: enquanto o rendimento médio no grupo dos 50% mais pobres
é de apenas R$ 824, no conjunto dos 10% de trabalhadores mais ricos alcança R$
8.096 – uma diferença quase dez vezes maior.
·
O trabalho de subsistência na economia brasileira
Um
aspecto alarmante revelado pelos dados é que a renda média dos 50% mais pobres
(R$ 824) representa apenas 58% do salário mínimo vigente em janeiro de 2024 (R$
1.412). Este descompasso evidencia a magnitude do setor de subsistência na
economia brasileira, onde metade dos trabalhadores ocupados recebe, em média,
menos que o piso legal estabelecido para garantir as necessidades básicas de um
trabalhador e sua família.
Esta
realidade se torna ainda mais preocupante quando consideramos que a renda
domiciliar per capita dos 50% mais pobres (R$ 2.170), embora superior à renda
individual, ainda representa um valor insuficiente para atender adequadamente
às necessidades básicas de uma família em termos de alimentação, moradia,
saúde, educação e transporte, especialmente nos grandes centros urbanos onde o
custo de vida é mais elevado.
·
Análise dos fatores de redução da desigualdade
A
decomposição dos fatores que influenciaram o crescimento da renda revela que a
queda do desemprego emerge como o principal impulsionador, contribuindo com
3,61 pontos percentuais para o aumento médio da renda total e 4,19 pontos
percentuais para os 50% mais pobres. O aumento da escolaridade contribuiu com
0,86 ponto percentual para o crescimento médio da renda total, mas com 1,21
ponto percentual para os 50% mais pobres, evidenciando seu potencial como vetor
de mobilidade social.
Para
mensurar com maior precisão o impacto do desemprego sobre a desigualdade,
Marcelo Neri elaborou o chamado “índice de desemprego igualitário”, que
quantifica o percentual da população ocupada no grupo dos 10% mais pobres. Este
indicador avançou de 17,6% no fim de 2022 para 18,5% no quarto trimestre de
2023, demonstrando a maior inserção dos trabalhadores mais vulneráveis no
mercado de trabalho. O índice de Gini do trabalho apresentou queda de 0,7 ponto
percentual em 2023, passando de 0,506 para 0,499.
·
Salário mínimo e informalidade: dinâmicas da desigualdade
A
política de valorização do salário mínimo, apesar de fundamental, tem efeito
limitado diante da realidade do mercado de trabalho brasileiro. O estudo da FGV
Social demonstra que o efeito do aumento do salário mínimo de R$ 1.320, em maio
de 2023, para R$ 1.412, em janeiro de 2024, contribuiu com 1,04 ponto
percentual para o crescimento da renda dos 50% mais pobres, contra apenas 0,05
ponto percentual para os 10% mais ricos.
Este
impacto diferenciado do salário mínimo nos diferentes estratos sociais se
explica, em parte, pela função de “farol” que ele exerce, influenciando
inclusive os rendimentos no mercado informal. Como observa Bruno Imaizumi, da
LCA Consultores, “essa política para o salário mínimo influencia não só o
trabalhador formal como também o informal. O salário mínimo funciona como um
balizador de rendimento do trabalho informal” (Valor Econômico, 2025).
No
entanto, a persistência de uma alta taxa de informalidade, estabilizada em 39%
desde o fim de 2023 até janeiro de 2025, impõe um limite estrutural à eficácia
dessas políticas. A informalidade é particularmente prevalente entre os
trabalhadores mais vulneráveis, contribuindo para a perpetuação de rendimentos
abaixo do salário mínimo legal e alta instabilidade de renda.
·
O paradoxo da mobilidade social brasileira
Embora
os indicadores apontem para uma redução da desigualdade medida pelo índice de
Gini, a mobilidade social efetiva permanece um desafio estrutural. A distância
absoluta entre a renda média dos 50% mais pobres (R$ 824) e dos 10% mais ricos
(R$ 8.096) implica que, mesmo mantendo-se o ritmo atual de crescimento mais
acelerado na base (10,7% contra 6,7% no topo), seriam necessárias várias
gerações para uma convergência significativa.
Este
paradoxo da mobilidade social brasileira – onde observamos simultaneamente
redução da desigualdade relativa e persistência de enormes disparidades
absolutas – revela a complexidade do desafio distributivo no país. O abismo
entre o topo e a base da pirâmide é tão profundo que mesmo melhorias
consistentes na base produzem impactos limitados na estrutura global da
desigualdade.
Bruno
Imaizumi ressalta que “a renda ainda está abaixo do nível anterior à pandemia,
o que exige cautela nas análises” (Valor Econômico, 2025). Esta observação é
crucial para contextualizar os aparentes avanços recentes, que em parte
representam apenas uma recuperação parcial de perdas anteriores, principalmente
entre os trabalhadores mais vulneráveis.
·
Dimensões estruturais e setoriais da desigualdade
A
análise setorial da economia brasileira oferece insights importantes para
compreender a persistência de rendimentos extremamente baixos na base da
pirâmide. Setores intensivos em mão de obra pouco qualificada – como serviços
domésticos, comércio varejista, construção civil e agricultura familiar –
concentram grande parte dos trabalhadores de baixa renda e apresentam elevados
índices de informalidade.
A
heterogeneidade produtiva da economia brasileira, com imensos diferenciais de
produtividade entre setores e dentro dos próprios setores, contribui para a
manutenção de um amplo contingente de trabalhadores em atividades de baixíssima
produtividade e remuneração. Este padrão de “modernização conservadora” combina
bolsões de alta produtividade e tecnologia avançada com vastos segmentos
operando em condições próximas à subsistência.
O
crescimento mais acelerado da renda na base da pirâmide (10,7%) representa um
movimento na direção correta, mas a magnitude do desafio distributivo exige
transformações estruturais mais profundas, que alterem os padrões de
incorporação produtiva e social dos trabalhadores mais vulneráveis.
·
Além dos números: implicações para o desenvolvimento
social
A
concentração de metade dos trabalhadores brasileiros em atividades que geram
rendimentos médios inferiores ao salário mínimo legal (em média, 58% dele) tem
profundas implicações sociais. Esta realidade impõe severas restrições ao
acesso a bens e serviços essenciais, limita o potencial de formação de capital
humano, compromete a saúde e o bem-estar das famílias e reproduz
intergeracionalmente os ciclos de pobreza e exclusão.
Considerando
que a renda domiciliar per capita dos 50% mais pobres no quarto trimestre foi
de R$ 2.170, verificamos que, mesmo somando todas as fontes de renda da
família, grande parte da população brasileira vive em condições de
significativa precariedade material. Esta realidade afeta não apenas as
condições de vida presentes, mas compromete o potencial de desenvolvimento
humano e econômico futuro do país.
O
aumento de 10,7% na renda dos 50% mais pobres, embora superior ao crescimento
médio, representa em termos absolutos um incremento de apenas R$ 88 na renda
média mensal destes trabalhadores. Este valor, embora não desprezível para quem
vive em condições de restrição orçamentária severa, é claramente insuficiente
para promover transformações substantivas nas condições de vida.
·
Desafios para uma transformação estrutural
A
análise técnica dos dados sobre a distribuição de renda no Brasil revela um
movimento de redução da desigualdade que, embora significativo, precisa ser
dimensionado frente à magnitude das disparidades existentes. Os fatores
econômicos – como a queda do desemprego, o aumento da escolaridade e a política
de valorização do salário mínimo – produzem impactos positivos, mas
insuficientes para uma transformação estrutural da desigualdade.
A
persistência de rendimentos médios equivalentes a apenas 58% do salário mínimo
para metade da população trabalhadora revela a extensão do setor de
subsistência na economia brasileira e a fragilidade dos mecanismos de proteção
social e trabalhista. Uma transformação estrutural deste cenário exigiria não
apenas a continuidade e intensificação das políticas que têm favorecido o
crescimento da renda na base, mas também intervenções mais profundas no padrão
de desenvolvimento produtivo e na incorporação dos trabalhadores mais
vulneráveis a setores de maior produtividade.Os avanços na redução da
desigualdade relativa, ainda que importantes, convivem com a persistência de um
abismo absoluto entre a base e o topo da pirâmide social brasileira. A
sustentabilidade destes avanços e a possibilidade de uma transformação mais
profunda dependerão da capacidade de articular políticas de curto prazo – como
a valorização do salário mínimo e a expansão do emprego – com transformações
estruturais de longo prazo nos padrões de produção, distribuição e proteção
social.
Por
fim, é fundamental reconhecer que a redução consistente e significativa da
desigualdade brasileira exigirá um compromisso social e político de longo
prazo, capaz de priorizar a inclusão produtiva dos trabalhadores mais
vulneráveis e a construção de uma economia que combine dinamismo produtivo com
distribuição equitativa dos frutos do desenvolvimento.
Fonte:
Por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras
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