Como
decifrar as angústias das crianças: 'Dificuldade em matemática pode ser
ansiedade com contas da casa'
Há
muitos caminhos que levam crianças pequenas à terapia, na busca por um lugar
confiável e seguro em que podem entrar em contato com seus incômodos, medos e
angústias — tema da terceira reportagem da série da BBC News Brasil sobre a
saúde mental de crianças e adolescentes.
A
mudança no comportamento é um fator chave para os pais e outros cuidadores
identificarem um sofrimento na crianças, diz a psicóloga Louise Madeira,
especialista em Terapia Familiar e de Casais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e idealizadora do podcast New Me.
As
crianças pequenas chegam aos consultórios também encaminhadas por profissionais
que os acompanham nas suas escolas.
Rosa
Maria Marini, doutora em psicologia escolar e do desenvolvimento pela
Universidade de São Paulo (USP), diz que algumas escolas fazem isso porque são
mais sensíveis e atentas às dificuldades vividas por seus alunos, enquanto
outras buscam confirmar um diagnóstico.
Os
problemas mais comuns que levam as escolas a fazer isso, segundo Adela Stoppel
de Gueller, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP e professora do curso de
Formação em Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, estão as
dificuldades de aprendizagem, a falta de interesse em aprender, comportamentos
disruptivos, dificuldades de socialização, agressividade, roubos de pequenos
objetos e mentiras.
Mas são
as dificuldades de aprendizagem a queixa central nos encaminhamentos de
crianças que chegam ao psicanalista Alexandre Patrício de Almeida, autor de Por
uma ética do cuidado (editora Blucher) e de Psicanálise de boteco: O
inconsciente na vida cotidiana (editora Paidós).
À
primeira vista, uma criança ir mal na escola pode parecer ser um problema
cognitivo, relacionado ao conhecimento ou a alguma fragilidade neurológica,
aponta Almeida.
E pode
ser isso mesmo em alguns casos, diz o psicanalista, mas escutar o que estas
crianças têm a dizer pode revelar que outra coisa possa estar acontecendo com
elas.
"Muitas
vezes a criança vem porque está com dificuldade de aprender matemática. Mas não
é isso que está acontecendo", diz o especialista, que é doutor em
psicologia clínica pela PUC-SP.
"Essa
criança está tão ansiosa, preocupada com o divórcio dos pais ou com a situação
financeira da casa — por incrível que pareça, crianças e adolescentes
preocupados com o amanhã é algo que aparece muito na clínica", prossegue.
"A
criança está tensa e não consegue se concentrar; preocupada, ela não consegue
prestar atenção na aula." Ou seja, dificuldade com as disciplinas na
escola pode ser, na verdade, resultado de uma angústia com as contas da casa ou
com brigas entre os pais.
Mas o
psicanalista ressalta ser importante que os pais ajustem suas expectativas em
relação ao tratamento e ao resultado.
"Muitos
pais procuram analistas com a expectativa de ajudar o filho a passar de ano, a
melhorar a dificuldade em uma matéria. Mas não é isso que a psicanálise
faz", diz Almeida.
"Essas
queixas de aprendizagem estão muito relacionadas às questões emocionais. Na
clínica, lidamos com o inconsciente, as emoções, conflitos internos e angústias
dessa criança. Indiretamente, o tratamento surte um efeito sobre a atividade
cognitiva, mas esse não é o propósito."
Belinda
Mandelbaum, professora titular do Departamento de Psicologia Social da USP,
aponta que toda situação de crise tem profundo impacto na vida das crianças.
O
motivo do problema podem ser questões internas na dinâmica da família ou
fatores externos, como desemprego, separação, doença ou morte.
As
crianças têm um vínculo de dependência dos pais, ficam atentas às emoções deles
e sentem o sofrimento da situação. Ela recomenda que os cuidadores fiquem
atentos a isso.
"É
muito importante conversar com a criança sobre o que está acontecendo, na
linguagem e na medida das possibilidades de entendimento dela", diz a
psicanalista, que é autora de Trabalhos com famílias em psicologia social e
Desemprego: uma abordagem psicossocial (ambos pela editora Blucher).
"Para
transmitir que a situação está sendo cuidada, que os pais estão atentos a ela.
O silenciamento é sempre pior."
• Sofrimento 'herdado' dos pais
A
angústia de uma criança pode refletir um conflito que, na verdade, pertence à
história de vida dos pais.
Em seus
atendimentos e nas pesquisas sobre os vínculos, Mandelbaum nota que muitas
vezes a família leva uma criança ou adolescente ao tratamento com a ideia de
que o profissional vai resolver o problema da criança, sem levar em
consideração a participação psicológica dos pais, dos cuidadores ou dos
familiares na origem e em como os sintomas aparecem.
Os pais
dizem que estão bem, sem problemas; é a criança que está se comportando mal.
"Muitas
vezes, a criança começar a melhorar, a se libertar de um certo sintoma, e os
pais tiram da terapia. É como se a família precisasse da criança naquele lugar,
de portadora do sintoma, da doença, do que não vai bem", diz a
psicanalista.
Por
isso, é fundamental envolver a família no tratamento. "Enquanto de alguma
maneira os pais não cuidarem de seus próprios conflitos, da sua própria
história infantil, sua relação com os próprios pais, a criança não vai poder
ser libertada desse lugar de portadora de um sintoma", destaca Mandelbaum.
"É
como se os pais transferissem para a criança isso que nunca puderam
elaborar."
No
acompanhamento com os pais, a psicanalista Rosa Maria Marini, doutora em
psicologia escolar e do desenvolvimento pela USP, trabalha a importância de
eles sustentarem a difícil posição de ser uma figura de autoridade.
"Uso
o seguinte exemplo: os pais não querem que o filho coma pipoca depois da aula
no pipoqueiro em frente à escola. Eles então pedem que a escola proíba a venda
da pipoca, porque eles não conseguem proibir seu filho de comer", diz
Marini, que é organizadora dos livros Gênero e sexualidade na infância e
adolescência: reflexões psicanalíticas e A vivência da morte e do luto na
infância e adolescência (ambos pela editora Ágalma)
Segundo
ela, as principais questões que trazem as crianças ao consultório são as
dificuldades com a lei e as regras, indicando tanto uma fragilidade das
crianças em renunciar ao prazer para se submeter às exigências da vida
(realidade), quanto uma dificuldade de seus adultos cuidadores (pais e escola)
em sustentar a autoridade.
Ela
lembra o quanto é difícil para uma criança parar de executar uma tarefa
prazerosa para executar uma atividade necessária, como fazer a lição, arrumar o
quarto ou parar de brincar.
De
acordo com Marini, é preciso sinalizar para os pais que o legado mais
importante que eles transmitem ao filho é a interdição, pois só assim essa
criança se tornará capaz de enfrentar os "nãos" que vai receber ao
longo da vida.
Durante
o tratamento dos filhos, ela diz que convida os pais a revisitarem a própria
infância para poderem retomar como era exercida a autoridade sobre eles
enquanto crianças.
"Quando
filhos se tornam pais, eles reatualizam sua experiência de infância, mas em uma
outra posição", diz Marini.
"Esta
outra posição carrega muitas questões, como 'vou ser o pai que não tive', 'vou
ter um filho que não fui'... Resgatar a autoridade das gerações anteriores não
significa reproduzi-las, mas, sim, reconduzi-la como elemento essencial do ato
educativo ao longo das gerações."
• Os desafios da era das telas e das redes
sociais
Para
Marini, o exercício da autoridade dos pais é decisivo em uma queixa bastante
familiar: o uso excessivo de telas. Cabe aos pais definir o tempo de contato
com elas.
A
psicanalista faz a ressalva de que o uso das telas, em si, não deve ser um
algoz, mas diz que elas estão aprisionando e desamparando quem as usa, seja uma
criança, adolescente ou adulto, em vez de viver a vida que há fora delas.
"Preferir
as telas ao convívio com os humanos terá como consequência a profunda
dificuldade em viver em sociedade e de se submeter às experiências típicas da
realidade não virtual, tais como frustração e renúncia ao prazer", ela
adverte.
Com a
digitalização da vida e a internet, a relação com o tempo ficou complicada
inclusive para os adultos. No caso das crianças, essas consequências aparecem,
por exemplo, na aprendizagem e na socialização, que se tornam ainda mais
desafiadoras.
"O
tempo hoje é simultâneo, fazendo com que a criança não consiga viver
experiências de espera, renúncia, paciência", destaca Marini.
"O
espaço se sobrepõe ao tempo, onde passado, presente e futuro se amalgamam em um
bloco que impede os tempos necessários de ver, compreender e concluir um
acontecimento vivido. A criança, assim, sofre, pois não tem consistência
psíquica para suportar tais experiências."
Um
tempo que sofre alteração expressiva é o da infância, que começa a se
precipitar no mundo adulto, isto é, elimina-se a fase em que as coisas podem
não ser sérias, lamenta Adela Stoppel de Gueller, uma das autoras de
Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais (editora
Ágalma).
Não
raro, crianças vivenciam problemas com autoimagem, ficam ansiosas com o fim do
mundo e brigam por causa de política. "Hoje, as crianças têm que performar
na escola de modo equivalente aos adultos no trabalho", diz Gueller.
"Ser
levada 'a sério' é inicialmente sedutor para a criança, ela quer ser como os
adultos. Mas um boletim escolar não pode ter o mesmo peso de um informe no
escritório", prossegue.
"A
infância deve poder preservar o tempo de perder tempo, do ócio, do inútil.
Nossa fonte de criatividade se gesta nesse laboratório das brincadeiras sem
sentido, com bobagens e que não têm utilidade nenhuma."
• O que a criança vai ser quando crescer?
As
identificações são fundamentais e formativas para as crianças, destaca Gueller.
Elas prestam muito mais atenção nas escolhas, atos e preferências dos pais do
que as coisas que eles dizem. Para elas, fazer é dizer. E ficam atentas às
contradições, tropeços e falhas de saber dos pais.
As
redes sociais participam significativamente do processo de identificação.
"Elas são, hoje, a via privilegiada onde as crianças encontram heróis e
heroínas, ídolos com quem se identificam ou tentam imitar. Em outro momento foi
na televisão, na escola ou na vizinhança", pontua Gueller.
A
psicanalista acrescenta que os personagens parecem estar mais próximos e
acessíveis; muitas vezes, são semelhantes à criança, mas, de uma hora para
outra, viram celebridades que não têm nenhum valor especial além de ser famosas
e ganhar dinheiro, com nenhum talento particular.
O que
esse sucesso comunica às crianças, que ainda estão aprendendo a se situar no
mundo?
"Como
a fama pode ser conquistada em um passe de mágica, tudo aquilo que comporta
esforço, estudo ou treino fica desqualificado. Quer dizer que os ídolos podem
não ter nenhuma qualidade particular", pontua Gueller.
Em se
tratando da saúde mental das crianças, é tentador, para muitos, pensar que
"a culpa é dos pais" ou "a culpa é da escola" ou "a
culpa é da cultura".
Então,
como um tratamento pode engajar uma criança de forma mais ativa, mesmo que o
que a afete tenha relação com ações dos outros ao seu redor?
É
preciso diferenciar culpa e responsabilidade, indica Marini, porque a culpa é
sempre paralisante.
"Fora
casos muito específicos e graves, os pais educam seus filhos sempre visando o
melhor. Só que eles educam como eles podem, e não como os manuais querem. Nesse
sentido, não há uma culpa."
O
analista, ao trabalhar tanto com os pacientes quanto com seus pais, busca que
eles reflitam de que modo se posicionam nas dificuldades das quais se queixam.
No caso das crianças, elas podem falar disso, brincar sobre isso, desenhar
isso.
"Mesmo
que as dificuldades de uma criança sejam respostas a sintomas familiares ou
parentais, ela levantou o dedinho para encarná-las, enunciá-las ou
denunciá-las", diz Marini.
"Então,
cabe a ela levantar mais uma vez o dedinho para se ocupar delas, naquilo que é
possível."
Fonte:
BBC News Brasil
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