Quem
é o ‘czar do tarifaço de Trump’, que acredita que os ‘EUA estão morrendo por
culpa da China’
Ele é
um dos principais arquitetos da controversa política tarifária do presidente
americano, Donald Trump, e também um de seus
mais fiéis seguidores, cuja lealdade ele demonstrou ao se tornar o primeiro
funcionário do seu primeiro governo a ir para a prisão por se recusar a
cooperar com a investigação do Congresso sobre a invasão de 6 de janeiro de 2021 ao
Capitólio.
Ele é
muito próximo do presidente, que frequentemente se refere a ele como “meu Peter”.
Mas
Peter Navarro, o principal assessor de Trump para comércio e manufatura, e um
dos economistas mais poderosos da atualidade, também tem críticos ferozes
dentro do governo dos Estados Unidos.
Elon Musk, com quem ele teve
um desentendimento público, o descreveu como “um idiota mais burro do que um
saco de tijolos”.
Mais
tarde, Musk se desculpou... com os tijolos.
Navarro
havia dito que Musk, mais do que um fabricante, é um “montador” de automóveis,
e que a crítica do bilionário do setor de tecnologia ao alcance das
tarifas se devia ao fato de ele importar peças para seus veículos da Tesla, de modo que ele
estava zelando por seus próprios interesses.
A briga
foi a maior demonstração pública de divergência até agora dentro da equipe mais
próxima de Trump, que conta com Musk, o homem mais rico do mundo, como chefe do
Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês),
encarregado de reduzir o tamanho e os gastos do governo federal.
As tarifas extremas que os EUA começaram
a impor na
quarta-feira (9/4) — que chegam a 125% sobre certas importações chinesas — são,
em grande parte, produto das ideias de Navarro.
Mas
Navarro queria ir ainda mais além, disseram fontes com conhecimento sobre como
as tarifas foram criadas à Bloomberg.
O
assessor propôs uma tarifa geral de 25% — Trump acabou optando por uma tarifa
de 10% — ou uma fórmula “recíproca” baseada nos déficits comerciais com cada
país, de acordo com a agência de notícias americana.
Após
semanas de deliberação, o plano que emergiu da equipe de Trump foi o que mais
se assemelhava à proposta de Navarro.
O
destino destas tarifas, no entanto, permaneceu incerto na quarta-feira, depois
que Trump anunciou que havia reduzido as tarifas recíprocas para 10%, uma taxa
universal para todos os países, incluindo México e Canadá.
E que
por 90 dias ele suspenderia a aplicação de novas tarifas a todos os países do
mundo acima destes 10%.
Estas
novas medidas não se aplicam à China, que deve enfrentar
uma tarifa de 125% porque, de acordo com Trump, Pequim optou por tomar medidas
retaliatórias contra os EUA.
·
‘Sistema quebrado’
Os
efeitos deste “experimento extremo”, como muitos economistas definem, abalaram
a economia global antes
mesmo de sua implementação, com perdas superiores a trilhões de dólares nos
mercados financeiros, cujas consequências, alertam os especialistas, serão
sentidas nos nossos próprios bolsos.
Mas
Navarro, assim como Trump, acredita que o melhor (para os EUA) ainda está por
vir.
“Chegaremos
a um ponto em que os EUA vão voltar a fabricar coisas novamente, os salários
reais vão subir, e os lucros vão aumentar”, disse Navarro em uma entrevista
recente à rede CNBC.
Em um
artigo de opinião publicado no Financial Times, Navarro afirmou que as tarifas “vão
consertar um sistema comercial internacional quebrado”, e que elas buscam “corrigir
um erro” — basicamente, o déficit comercial dos EUA, que, na sua opinião, “transferiu
mais de US$ 20 trilhões de riqueza americana para mãos estrangeiras”.
No
entanto, suas ideias são vistas por outros economistas como pouco ortodoxas ou
até mesmo sem respaldo empírico, como vários professores universitários
sugeriram ao jornalista Gerardo Lissardy, da BBC News Mundo, serviço de
notícias em espanhol da BBC, em 2019, quando Trump impôs tarifas sobre as
importações chinesas durante seu primeiro mandato.
A China
é, de fato, uma das grandes obsessões de Navarro.
O
assessor de Trump escreveu três livros sobre a potência asiática e seu poder
econômico: The Coming China Wars (“As Próximas Guerras da
China”, em tradução livre), Death by China (“Morte pela China”,
em tradução livre) e Crouching Tiger: What China’s Militarism Means for
the World (“Tigre de prontidão: O que a ascensão militar da China significa
para o mundo”).
Trump
recrutou Navarro para sua campanha eleitoral de 2016, quando concorreu ao seu
primeiro mandato, depois que seu genro Jared Kushner descobriu o livro Death
by China online. A obra, escrita em parceria com Greg Autry em 2012,
deu origem a um documentário de mesmo nome narrado pelo ator Martin Sheen.
Navarro
argumenta no livro que a China tira vantagem do comércio global manipulando sua
moeda, subsidiando produtos e permitindo condições de trabalho proibidas nos
EUA.
Ele
sugere uma resposta firme, impedindo por exemplo que as companhias chinesas
adquiram empresas americanas ou pressionem para obter acesso à tecnologia dos
EUA.
“Como
os livros do professor Navarro não oferecem muitos dados, não há como outros
economistas verificarem se os dados foram analisados adequadamente”, disse
à BBC News Mundo, em 2019, Amihai Glazer, professor de
economia da Universidade da Califórnia em Irvine, onde
Navarro trabalhou, e que revisou suas publicações.
Algumas
das antigas ideias de Navarro acabaram se transformando em políticas que
abalaram a economia internacional, traumatizaram os mercados financeiros e
alimentaram temores de uma recessão global.
·
Início democrata
Filho
de pai saxofonista e criado desde pequeno pela mãe divorciada, Navarro, hoje
com 75 anos, tem doutorado em economia pela Universidade de Harvard, e é
professor emérito da Universidade da Califórnia em Irvine.
No
início de sua carreira, ele se especializou em energia, e chegou a ser um
defensor do livre comércio, mas mudou de posição diante do que considerava
perdas de empregos devido à concorrência estrangeira.
Ele
também concorreu em várias eleições locais na Califórnia como democrata, sem
vencer nenhuma delas.
Durante
o primeiro mandato de Trump, Peter Navarro chefiou o Departamento de Políticas
de Comércio e Manufatura da Casa Branca, que ele criou em 2017.
Naqueles
quatro anos, Trump iniciou uma guerra comercial com a China, impondo tarifas no
valor de bilhões de dólares sobre produtos eletrônicos, têxteis e componentes
industriais.
Mas
naquele primeiro mandato, a equipe econômica de Trump ainda estava dividida
entre os mais protecionistas, como Navarro, e os defensores do livre comércio
que, até certo ponto, moderavam suas políticas.
Na
equipe que cerca Trump hoje, e na qual Navarro tem um grande peso, há pouco
espaço para esse tipo de debate.
·
Fiel até mesmo na prisão
A
lealdade de Peter Navarro ao presidente levou até mesmo à sua prisão.
Após a
eleição de novembro de 2020, vencida pelo democrata Joe Biden, Navarro
trabalhou em várias estratégias para reverter os resultados da eleição, e
manter Donald Trump na Casa Branca, como ele mesmo reconheceu em um livro de
memórias de 2021, In Trump Time (“Em Tempos de Trump”, em
tradução livre).
O plano
exigia que os republicanos do Congresso adiassem a certificação da vitória
eleitoral de Biden, um procedimento padrão que estava programado para 6 de
janeiro de 2021.
Naquele
dia, centenas de apoiadores de Trump invadiram o Congresso dos EUA para tentar
impedir a certificação, agredindo policiais e funcionários durante o processo,
no que se transformou em um dos dias mais sombrios para a democracia americana
nos últimos anos.
Em sua
investigação para apurar a responsabilidade pelo ocorrido, um comitê especial
da Câmara dos Representantes dos EUA intimou Navarro pela primeira vez em
fevereiro de 2022, mas o ex-assessor não entregou nenhum dos e-mails ou
documentos solicitados pelo comitê.
Navarro
alegou, então, que Trump havia ordenado que ele invocasse o “privilégio
executivo”, um princípio legal que permite que algumas comunicações da Casa
Branca sejam mantidas em sigilo.
O juiz
do caso determinou que o privilégio executivo não protegia Navarro da intimação
— e, três anos após o ataque ao Capitólio, Navarro foi condenado a quatro meses
de prisão por desacato e multado em US$ 9,5 mil.
Ele se
tornou assim o primeiro funcionário da era Trump a ser preso.
Logo
após sair da prisão, Navarro participou da Convenção Republicana realizada
poucos dias depois do atentado contra Trump, que aceitou formalmente sua
indicação como candidato para a eleição presidencial de 2024.
Navarro
brincou com os milhares de apoiadores de Trump dizendo que eles deveriam ver “a
tatuagem MAGA que fiz (na prisão)”, uma referência ao slogan do
presidente, Make America Great Again (“Tornar os EUA Grande
Novamente”).
Mas
também se apresentou como o mártir que, de certa forma, salvou Trump: “Eles
queriam que eu traísse Donald J. Trump para salvar minha própria pele, e eu
recusei”.
Sua
lealdade foi recompensada.
¨
Por que Trump decidiu focar guerra tarifária na China
De
repente, a guerra comercial do presidente
americano, Donald Trump, está com um foco
mais definido.
Em vez
de lutar em todas as frentes contra o mundo, está caminhando mais para um
embate em uma arena conhecida de Trump: Estados Unidos x China.
A pausa de 90 dias nas tarifas “retaliatórias”
mais altas cobradas
de dezenas de países ainda deixa em vigor uma tarifa universal de 10%.
Mas a
China — que exporta de tudo, de iPhones a brinquedos, e responde por cerca de
14% de todas as importações dos EUA — foi alvo de um tratamento muito mais
severo, com uma taxa astronômica de 145%.
Trump
disse que o aumento se deve à prontidão de Pequim em retaliar impondo sua
própria taxa de 84% sobre os produtos americanos, uma medida que o presidente
americano descreveu como “falta de respeito”.
No
entanto, para um político que chegou à Casa Branca com base em um discurso
anti-China, isso tudo vai muito além de uma simples retaliação.
Para
Trump, trata-se de um assunto pendente do primeiro mandato.
“Não
tivemos tempo de fazer a coisa certa, o que estamos fazendo agora”, disse ele a
jornalistas.
O
objetivo é nada menos do que derrubar um sistema estabelecido de comércio global centrado
na China como a “fábrica do mundo”, assim como a visão outrora amplamente
difundida que o sustentava — a ideia de que mais desse comércio era, por si só,
uma coisa boa.
Para
entender o quanto isso é fundamental para o pensamento do presidente dos EUA, é
preciso voltar ao tempo em que ninguém pensava nele como um possível candidato
ao cargo, muito menos como um provável vencedor.
Em
2012, quando fiz minha primeira reportagem em Xangai, a capital empresarial da
China, o aumento do comércio com o país asiático era visto por quase todo mundo
—líderes empresariais globais, autoridades chinesas, governos estrangeiros e
delegações comerciais convidadas, correspondentes estrangeiros e economistas
experientes — como algo óbvio.
A China
estava impulsionando o crescimento global, fornecendo um suprimento infinito de
produtos baratos, aprimorando o exército chinês de novos trabalhadores de
fábrica cada vez mais inseridos nas cadeias de suprimentos globais, e
proporcionando oportunidades lucrativas para as empresas multinacionais que
vendiam seus produtos para a recém-formada classe média.
Poucos
anos após minha chegada, a China havia ultrapassado os EUA e se tornado o maior
mercado do mundo para a Rolls Royce, General Motors e Volkswagen.
Havia
também uma justificativa mais profunda.
À
medida que a China ficava mais rica, segundo a teoria, o povo chinês começaria
a exigir reformas políticas.
Seus
hábitos de consumo também ajudariam a China a fazer a transição para uma
sociedade de consumo.
Mas o
primeiro desses anseios nunca aconteceu, e o Partido Comunista da China apenas
fortaleceu sua permanência no poder.
E o
segundo não aconteceu rápido o suficiente — a China não apenas ainda é
dependente das exportações, como planeja abertamente se tornar cada vez mais
dominante.
Seu
conhecido plano estratégico — publicado em 2015, e intitulado Made in
China 2025 — estabeleceu uma visão ambiciosa apoiada pelo
Estado de se tornar líder global em vários setores importantes da manufatura,
desde a indústria aeroespacial até a de construção naval e veículos elétricos.
E foi
assim que, apenas um ano depois, um completo desconhecido na política começou a
concorrer à presidência dos EUA, argumentando repetidamente na campanha que a
ascensão da China havia esvaziado a economia americana,
impulsionado o declínio do chamado “cinturão da ferrugem” e custado aos
operários americanos seus meios de subsistência e dignidade.
A
guerra comercial do primeiro mandato de Trump rompeu com os padrões
estabelecidos e quebrou o consenso. Seu sucessor, o ex-presidente Joe Biden, manteve grande
parte de suas tarifas sobre a China.
E, no
entanto, embora tenham causado, sem dúvida, algum sofrimento ao país asiático,
elas não fizeram muito para mudar o modelo econômico.
Atualmente,
a China produz 60% dos carros elétricos do mundo — uma grande parte deles
fabricados por suas próprias marcas nacionais —, e 80% das baterias que os
abastecem.
E,
agora, Trump está de volta, com essa escalada retaliatória de tarifas.
Este
poderia ser o maior choque já sofrido pelo sistema de comércio global
estabelecido, se não fosse por todo vaivém de medidas tarifárias que o
presidente dos EUA implementou nos últimos dias.
O que
vai acontecer em seguida depende de duas questões fundamentais.
Em
primeiro lugar, saber se a China vai aceitar essa oferta para negociar.
E, em
segundo lugar, supondo que isso aconteça, se a China está disposta a fazer as
concessões importantes que os EUA estão buscando, incluindo uma revisão
completa de seu modelo econômico voltado para a exportação.
Ao
responder a essas questões, a primeira coisa a dizer é que estamos em um
território completamente desconhecido, portanto, devemos desconfiar de qualquer
pessoa que diga que sabe como Pequim provavelmente vai reagir.
Mas
certamente há razões para ser cauteloso.
A visão
da China sobre sua força econômica — baseada em um considerável volume de
exportações e em um mercado interno fortemente protegido — está agora
intimamente ligada à sua ideia de rejuvenescimento nacional e à supremacia de
seu sistema de partido único.
Seu
controle rígido sobre a esfera da informação significa que é improvável que o
país diminua suas barreiras às empresas americanas de tecnologia, por exemplo.
Mas há
uma terceira pergunta, que cabe aos EUA responder.
Os EUA
ainda acreditam no livre comércio? Donald Trump frequentemente sugere que as
tarifas são uma coisa boa, não apenas como um meio para alcançar um fim, mas
como um fim por si só.
Ele
fala sobre o benefício de uma barreira protecionista para os EUA, a fim de
estimular o investimento interno, incentivar as empresas americanas a trazerem
essas cadeias de suprimentos estrangeiras de volta para o país, e aumentar a
receita tributária.
E se
Pequim acreditar que esse é, de fato, o objetivo principal das tarifas, pode
decidir que não há nada a ser negociado.
Em vez
de defender a ideia de cooperação econômica, as duas maiores superpotências do
mundo podem se ver presas em uma luta pela supremacia econômica do tipo “o
vencedor leva tudo”.
Se for
este o caso, vai sinalizar uma quebra do antigo consenso, e um futuro muito
diferente — e possivelmente muito perigoso.
Fonte:
BBC News Mundo
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