GOVERNANÇA
E REPARAÇÃO DE DESASTRES: Lições de Mariana e Brumadinho
Em
novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), liberou
cerca de 60 milhões m3 de rejeitos de mineração, um volume de rejeitos que
encheria 30 vezes o estádio do Mineirão em Belo Horizonte. A ruptura da
barragem resultou em dezenove mortes, devastou comunidades, poluiu rios e
causou danos ambientais e socioeconômicos ao longo do curso do Rio Doce até o
litoral do Espírito Santo. Quatro anos depois, em janeiro de 2019, o colapso da
barragem B1 em Brumadinho (MG) despejou aproximadamente 10 milhões m3 de
rejeitos (cinco vezes o volume do Mineirão), resultou em 270 mortes e deixou um
rastro de destruição socioambiental ao longo do Rio Paraopeba. Ambos os
desastres ocorreram na região conhecida como Quadrilátero Ferrífero em Minas
Gerais, uma das maiores provinciais minerais produtoras de minério de ferro do
mundo.
As
escalas dos desastres são diferentes, mas ambos são similares em termos de
localização e atividade econômica, danos ambientais e socioeconômicos. Contudo,
as respostas institucionais e os resultados da ação imediata pós-desastres
foram diferentes, como revela o recente estudo que desenvolvemos no Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG. A pesquisa analisou
o impacto da governança institucional na recuperação econômica de Mariana e
Brumadinho após os desastres por meio de fluxos financeiros locais, como
operações de crédito e depósitos à vista e de poupança.
Em
Mariana, a governança pós-desastre foi marcada por conflitos institucionais e
pela falta de participação efetiva das comunidades afetadas. Processo que
resultou no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado em
março de 2016, entre o governo federal e governos de Minas Gerais e do Espírito
Santo com as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton. Os diversos programas de
reparação/compensação seriam executados por uma fundação privada, a Fundação
Renova. Para suporte financeiro às ações da Fundação, foram alocados
inicialmente R$ 31,2 bilhões. Em 2018 ocorreu ajuste do modelo por meio do
TAC-Governança, no qual representantes das comunidades e dos Ministérios
Público Estadual e Federal ganharam maior influência sobre a gestão da
reparação. A ausência de representação direta das vítimas no processo
decisório, a multiplicidade de ações e a lentidão na adoção de medidas de apoio
à população resultaram em reparações que foram criticadas e contestadas por
prefeitos e pelas populações atingidas. Apesar de gastos de R$ 11,4 bilhões
entre 2016 e 2021, a percepção de ineficiência, ineficácia e a falta de
transparência minaram a confiança no processo.
Já em
Brumadinho, a governança adotada foi mais ágil e participativa desde o início.
Com a supervisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o modelo adotado
priorizou a arbitragem judicial e a participação ativa dos Ministérios Públicos
Federal e do Estado de Minas, além de assessorias da população atingida.
Acordos emergenciais garantiram que auxílios financeiros chegassem rapidamente
aos atingidos, reduzindo a insegurança resultante da paralisação de atividades
econômicas. Além disso, peritos foram mobilizados para avaliar os impactos e
apoiar a formatação de programas assistenciais. Esse arranjo institucional
mitigou danos econômicos imediatos e garantiu maior legitimidade e eficácia nas
ações de reparação. Por fim, com a mediação do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais (TJMG), em fevereiro de 2021 foi firmado o “Acordo Global” para o
caso Brumadinho, com valor total de R$ 42,9 bilhões para reparação e
compensação dos danos.
A
comparação entre os dois casos revela que a participação comunitária e a
transparência são essenciais para a governança diante de desastres
tecnológicos. Em Mariana, a exclusão das comunidades afetadas no início do
processo resultou em atrasos e ineficiências que poderiam ter sido evitados.
Nosso estudo analisa o impacto do desastre nas operações de crédito per capita
da cidade entre novembro de 2015 e setembro de 2022. Sem o colapso da barragem,
o valor médio esperado seria de US$ 1049,27, mas o valor observado foi de US$
1100,85. No financiamento rural e agroindustrial, o valor observado foi de US$
60,39, enquanto o esperado seria US$ 67,67. No financiamento imobiliário, o
valor esperado era US$ 195,99, mas o observado foi US$ 161,89, representando
uma queda média de 17,40%. Já no caso de Brumadinho, após o desastre, os saldos
das operações de crédito (excluindo financiamento rural, agroindustrial e
imobiliário) atingiram uma média de US$ 791,22, enquanto o valor esperado sem o
evento seria de US$ 320,98. Isso representa um aumento de 147% nessas
operações, indicando um impacto altamente significativo. No financiamento
rural, a média observada foi de US$ 41,84, abaixo dos US$ 50,11 esperados, com
uma diferença de US$ 8,26 per capita. Por fim, no financiamento imobiliário, a
média observada foi de US$ 276,30, enquanto o valor esperado era de US$ 352,25,
indicando uma perda de US$ 75,95 per capita.
As
governanças entre os dois desastres se influenciaram. O desastre de Brumadinho
expôs as fragilidades institucionais e conflitos que comprometeram a governança
e atrasaram a recuperação econômica no caso de Mariana, aumentando a pressão
pública e midiática pela adoção de governança mais eficaz. Brumadinho serviu
como catalisador adicional para renegociações do acordo em Mariana,
evidenciando a necessidade de maior controle e representatividade no processo
de recuperação, servindo como contraponto à governança pós-desastre do primeiro
caso. Também é importante destacar a atuação de movimentos sociais e de ONGs
que foram cruciais para organizar as demandas das comunidades.
A
governança em Brumadinho adicionou pressão política na renegociação dos acordos
em Mariana. Ainda em 2019, ano do desastre em Brumadinho, o orçamento destinado
ao ressarcimento e indenização das vítimas de Mariana foi significativamente
ampliado, passando de R$ 1,6 bilhão em 2018 para R$ 4,9 bilhões em 2019. Esse
aumento reflete maior atenção às necessidades imediatas das comunidades e
demonstra como a aprendizagem institucional e a adaptação são fundamentais para
melhorar a resposta a desastres tecnológicos e naturais.
Após
cerca de dez anos do desastre em Mariana, foi assinado o Acordo de Repactuação
da Bacia do Rio Doce, com valor total estipulado em R$ 170 bilhões, sendo R$ 38
bilhões já alocados pela Fundação Renova (que será extinta), R$ 32 bilhões
destinados à conclusão de indenizações, reassentamos e recuperação ambiental,
sob responsabilidade da Samarco, e R$ 100 bilhões repassados pela Samarco aos
governos federal, estadual de Minas Gerais e Espírito Santo e municípios da
Bacia do Rio Doce. Importante destacar que os R$ 132 bilhões serão distribuídos
ao longo dos próximos vinte anos e parte deles não necessariamente serão
alocados na região atingida. Contudo, dos 49 municípios considerados atingidos,
somente 26 optaram por não aderir aos termos do novo acordo por entenderem que
possuem maior potencial de retorno a partir de uma eventual condenação da BHP
Billiton em ação judicial que corre na justiça britânica.
No caso
de Brumadinho, também existem incertezas ou pontos de atenção. O primeiro
deles, de natureza institucional e prática, diz respeito à efetiva reparação do
território atingido, mediante a coerência entre os programas estipulados no
acordo de reparação e o impacto real. É preciso que a execução desses programas
seja embasada em todo o levantamento de perícia realizado até aqui e lastreado
em parâmetros técnico-científicos. O segundo, trata-se de uma deficiência de
preparação do território atingido, sobretudo Brumadinho, com relação aos
impactos econômicos relacionados ao fim do pagamento do programa de
transferência de renda.
O
estudo reforça a necessidade de estruturas de governança que priorizem a
agilidade, a transparência e a participação comunitária. Sem uma governança
institucionalizada e democrática, os impactos desses eventos podem se desdobrar
em conflitos adicionais e se prolongar por décadas, agravando ainda mais os
danos sobre as populações, em particular aquelas mais vulneráreis do ponto de
vista socioeconômico e ambiental. Os desastres de Mariana e Brumadinho devem
servir como um alerta e referências para a construção de um futuro mais seguro
e sustentável.
Para o
setor empresarial, as lições são claras: a responsabilidade social e ambiental
não pode ser relegada a segundo plano. A Vale e a Samarco enfrentaram não
apenas custos financeiros significativos, mas também danos irreparáveis à sua
reputação. A transparência, a prestação de contas e o engajamento com as
comunidades afetadas são essenciais para mitigar os impactos de desastres e
reconstruir a confiança.
Para o
setor público, o estudo reforça a necessidade de estruturas de governança que
priorizem a agilidade com participação comunitária com suporte de assessorias.
A criação de mecanismos que garantam a representação de vítimas e a supervisão
independente são peças importantes na governança pós-desastre.
Para o
Poder Judiciário, as lições também são evidentes. A atuação da Justiça em
Brumadinho, com a rápida arbitragem, mostrou-se crucial para garantir respostas
mais eficazes em comparação com o caso de Mariana. Em situações dramáticas e
emergenciais, o Poder Judiciário deve estar preparado para atuar de forma ágil,
garantindo atendimento rápido; para tanto, a organização institucional do caso
Brumadinho foi relevante. Além disso, a supervisão judicial contínua e a
garantia de transparência nos processos de reparação foram essenciais para
construir confiança e legitimidade.
Por
fim, um aspecto adicional e que merece atenção: os acordos de Mariana e de
Brumadinho ignoraram em grande medida a dependência econômica da mineração. Os
acordos focaram na mitigação, reparação e compensação socioeconomia e
ambiental. Faltaram discussões e propostas sobre geração de renda e emprego,
diversificação produtiva e desenvolvimento sustentável. É possível discutir
compensações econômicas com a perspectiva do desenvolvimento econômico, porém,
essa discussão não aconteceu. Talvez o foco nas ações de curto prazo afastou a
população atingida e as instituições públicas de temas e questões mais
complexas, tais como: o que fazer depois da mineração e o que fazer além da
mineração? Certamente temas importantes para regiões que dependem de um recurso
natural não renovável.
Fonte:
Por Ricardo Ruiz, Rafael Ribeiro, Weslley Cantelmo e Aleff Lopes, no Le Monde
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