Por trás da
guerra de tarifas está o interesse dos EUA em conter a China
A
tarifa comercial de 145% imposta pelos Estados Unidos aos produtos chineses na
semana passada parece ser, e sem dúvida é, um petardo com força suficiente para
produzir estragos monumentais na segunda maior economia do mundo. E para, a
partir da China, produzir uma onda de abalos e espalhar problemas pelos cinco
continentes. A decisão de Beijing de resistir à pressão e de impor uma tarifa
de 125% sobre as mercadorias dos Estados Unidos pode não ter o mesmo poder
destrutivo. Mas também contribui para deixar claro que o mundo pode estar a um
passo da maior crise comercial da história!
Essa
avaliação catastrófica tem sido a mais frequente quando se fala dos possíveis
desdobramentos da cruzada comercial prometida desde a campanha que reconduziu o
presidente Donald Trump à Casa Branca — e que se destina a restaurar a
hegemonia norte-americana sobre o mundo. Uma autonomia que, diga-se de
passagem, pode não ser tão evidente quanto era até os anos 1980 do século
passado. Mas que, ainda assim, é grande o suficiente para fazer a voz dos
Estados Unidos ser ouvida e respeitada no mundo inteiro.
É nesse
ambiente que deve ser avaliada a guerra comercial entre as duas maiores
economias do mundo, declarada no último dia 2 de abril com o anúncio de um
tarifaço aplicado pelo governo dos Estados Unidos. Pela dimensão da economia
norte-americana sobre o comércio global, a medida atingiu todos os países do
mundo. Mas desde o início está mais do que evidente que o centro do alvo é a
China — que teve no ano passado um superávit de US$ 295,4 bilhões em suas
trocas com os Estados Unidos.
No
calor da disputa ficou claro que as medidas anunciadas foram excessivamente
fortes e capazes de produzir impactos negativos no próprio mercado
norte-americano. Com o mundo interligado por uma rede de interesses comerciais
que torna todos os países interdependentes, qualquer medida tomada contra o
país pode gerar uma onda de ações e reações que, no final das contas, traz o
risco de se voltar contra quem disparou o primeiro tiro. O certo é que o
movimento da semana passada ainda é recente demais para que se tire qualquer
conclusão a respeito de suas possíveis consequências.
A bem
da verdade, a postura das duas maiores potências econômicas do mundo em torno
da questão tarifária até aqui tem lembrado a de dois jogadores, cada um mais
confiante do que o outro nas cartas que tem na mão, que se enfrentam em uma
partida de pôquer. No dia do tarifaço, Trump anunciou tarifas adicionais de 34%
para os produtos importados da China. Beijing nem piscou e pagou para ver. Em
resposta, taxou os produtos americanos com os mesmos 34%.
Trump
retrucou e, aumentou as tarifas para 104% e logo as elevou para 125%. Para
aliviar as pressões que vinha sofrendo até de aliados históricos, também
atingidos pelas tarifas, e até de empresários de seu próprio país, suspendeu
por 90 dias a vigência das tarifas aplicadas sobre os demais países do mundo.
VITÓRIA COMPLETA
A
resposta veio à moda chinesa. Beijing cobriu a aposta mais uma vez e taxou os
produtos norte-americanos com os mesmos 125% determinados por Trump.
Washington, então, elevou as tarifas sobre os produtos chineses para 145%. O
governo chinês anunciou que não iria além dos 125%, mas também não recuaria sem
uma boa conversa — exatamente como fez no desfecho da guerra da Coreia, em
1953.
Não
custa recordar o episódio. Em determinada altura do conflito que reacendeu as
tensões no mundo depois da Segunda Guerra Mundial, as tropas chinesas que
lutavam pela Coreia do Norte se convenceram da dificuldade de avançar em
direção à capital Seul e da impossibilidade de derrotar o poderoso exército dos
Estados Unidos, que lutava pela Coreia do Sul.
Assim,
estabeleceram uma linha defensiva nas imediações das cidades de Kaesong e
Pyonggang (não confundir com a capital Pyongyang) e ali concentraram uma força
defensiva descomunal. A decisão, na prática, definiu a linha da fronteira que
hoje divide as duas Coreias e foi responsável pelo armistício que marcou a
interrupção de uma guerra que, em termos formais, jamais chegou ao fim. Isso
mesmo: embora as hostilidades tenham cessado, nunca houve um acordo de paz
entre os dois países que, pelo sim e pelo não, permanecem beligerantes.
O que
isso tem a ver com a disputa atual? Tudo! Na semana passada, o ministério das
Relações Exteriores da China fez questão de reaquecer a lembrança em torno do
episódio com a divulgação de um vídeo que mostra o fundador da China Comunista,
Mao Tse Tung, num discurso ameaçador. “No passado, foi Truman quem decidiu. No
futuro, será Eisenhower quem decidirá. Ou quem quer que seja o presidente dos
Estados Unidos. Em outras palavras, eles podem lutar o quanto quiserem — até a
vitória completa da China”, disse Mao em referência aos desdobramentos da
guerra.
A
divulgação do vídeo pode não passar de uma bravata chinesa destinada, talvez, a
responder aos arroubos verbais que Donald Trump — atual sucessor dos
mencionados Harry Truman (que presidiu os Estados Unidos entre 1945 e 1953) e
Dwight Eisenhower (que governou entre 1953 e 1961). Mas, de qualquer forma, é
uma maneira de declarar que a China não voltará atrás nem cederá às pressões
que vêm sendo feitas.
Na
semana passada, o líder chinês Xi Jinping declarou que a tarifa de 125% sobre
os produtos americanos era o limite a que estava disposto a chegar. Dali não
avançaria nem meio ponto percentual. Também não recuaria nem um décimo sem um
acordo satisfatório para seu país. “Mesmo que os Estados Unidos continuem a
impor tarifas mais altas, isso não fará sentido e se tornará uma piada na
história da economia mundial”, disse.
E para
demonstrar que a economia americana também tem muito o que perder nessa
disputa, Xi Jinping informou que a Tesla — empresa do multimilionário e atual
secretário de Trump, Elon Musk — havia suspendido as vendas do Model X e do
Model S ao multimilionário mercado chinês. Com as tarifas mais elevadas, os
preços dos carros não tinham condições de competir com os concorrentes
asiáticos. Simples assim.
RECESSÃO MUNDIAL?
Uma
eventual insistência de Trump na atual política traz um risco que vem sendo
estimado por muita gente. A diretora-geral da Organização Mundial do Comércio
(OMC), a economista nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, por exemplo, calculou na
quarta-feira da semana passada que o atual confronto comercial entre Estados
Unidos e China expõe o comércio bilateral ao risco de uma queda que pode
alcançar 80% e empurrar o PIB mundial para uma retração de até 7%.
O
certo, como foi dito ainda há pouco, é que é muito cedo para fazer previsões
neste momento em que as cartas ainda estão sendo distribuídas e que os
jogadores, por mais que já se conheçam e estudem um ao outro, ainda estão
medindo forças. A quantidade de dúvidas que existem em torno da questão é
grande demais para autorizar qualquer previsão sobre o futuro da economia
global — e o máximo que se pode dizer é que o mundo pode estar presenciando o
início de uma nova era.
Nesse
cenário, algumas perguntas iniciais devem ser feitas diante da ousadia dos
lances feitos pelos Estados Unidos na semana passada. A primeira é: será que
Trump, que conta com a assessoria de economistas altamente qualificados, não
está ciente dos riscos de suas decisões? Ou, então, será que ele, na condição
de presidente do país mais poderoso do mundo, está disposto a empurrar o mundo
para uma recessão capaz de abalar a economia mundial e, inclusive as principais
empresas de seu próprio país? Será que, ao mirar nas tarifas comerciais, ele
não está interessado em ir mais longe e conter a expansão do poderio chinês no
Ocidente?
Antes
de tentar responder a essas questões, convém mencionar um fato que aconteceu na
semana passada e que praticamente não chamou a atenção de quem quer que seja.
Enquanto o mundo parecia marchar para o caos no ritmo da guerra tarifária, o
secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, desembarcou na cidade do
Panamá para uma visita oficial. Foi recebido pelo ministro da Segurança Pública
do Panamá, Frank Abrego, e teve reuniões privadas com o presidente José Raul
Mulino.
Por
menos atenção que tenha chamado, a visita foi revestida de grande significado
histórico. Hegseth foi o primeiro secretário de Defesa dos Estados Unidos a
visitar o país centro-americano desde que os Estados Unidos deixaram de
administrar o canal do Panamá, em 1999. O que essa visita tem a ver com a
disputa comercial dos Estados Unidos com a China? Absolutamente tudo!
Construído
pelos Estados Unidos e inaugurado em 1914, o canal é a mais importante ligação
entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Ele conecta cerca de 170 países por meio
de uma rede de quase dois mil portos nos dois oceanos. Por mais importante que
seja para facilitar o trânsito de mercadorias entre o Ocidente com a Ásia, o
canal é vital para a economia dos Estados Unidos.
Duas em
cada três embarcações que navegam de um oceano para o outro têm bandeira
norte-americana e se destinam à troca de mercadorias entre a Costa Leste e a
Costa Oeste dos Estados Unidos. Quase metade do tráfego doméstico de
contêineres dos Estados Unidos passa pelo canal — com o transporte de produtos
avaliados em cerca de US$ 270 bilhões de dólares por ano.
O
problema é que, nos últimos anos, os chineses avançaram sobre o canal e
praticamente assumiram seu controle. Embora o momento tenha acendido o sinal de
alerta nos Estados Unidos e despertado a preocupação com a tomada de um recurso
tão vital para sua economia por seu maior concorrente, o movimento foi tratado
com indiferença pelo governo de Joe Biden.
Pois
bem. Assim que Trump tomou posse, a Casa Branca passou a dedicar atenção
especial ao assunto. Depois das primeiras tratativas, ainda em fevereiro, o
Panamá recuou e rompeu as parcerias com os investidores chineses que tinham
assumido o controle do canal. Os Estados Unidos queriam mais e a visita de
Hegseth tinha uma pauta para lá de sensível — e que certamente teria gerado o
maior bafafá se o mundo não estivesse com os olhos totalmente voltados para a
guerra das tarifas.
Na
quinta-feira passada, o governo panamenho anunciou que havia autorizado a
entrada de tropas das Forças Armadas dos Estados Unidos em seu território. O
objetivo não é, pelo menos a princípio, restabelecer as bases militares
mantidas pelos Estados Unidos no país e que foram desativadas gradativamente
entre 1977 e 1999.
A
princípio, a presença dos mariners se destina a exercícios ao longo do canal.
Na prática, isso não deixa de ser uma maneira de mostrar ao mundo que o país
não admitirá que seu maior concorrente assuma o controle de um recurso
indispensável para sua economia. “Juntos, retomaremos o Canal do Panamá da
influência da China”, disse Hegseth após a visita. “China não construiu este
canal. A China não opera este canal e a China não o usará como arma. Juntos,
com o Panamá na liderança, manteremos o canal seguro e disponível para todas as
nações”, disse o secretário.
ROTA DA SEDA
Qualquer
que venha a ser o enredo dos próximos capítulos e do rumo que a disputa tomará
nos próximos dias, alguns pontos já podem ser dados como prováveis no desfecho
dessa disputa. O primeiro é o de que as tarifas comerciais entre as duas
maiores potências do mundo não deverão ser mantidas nos níveis absurdos para os
quais foram puxados na semana passada. Os Estados Unidos e a China
provavelmente se entenderão em torno de critérios comerciais aceitáveis pelos
dois países e não está descartado um recuo, senão para os níveis anteriores ao
tarifaço de 2 de abril, pelo menos para algo próximo a isso.
O
segundo é que a expansão da influência econômica chinesa pelo mundo, expressa
no programa conhecido como “Nova Rota da Seda”, que desde 2013 investe pesado
na infraestrutura de vários países do mundo, tende a não prosseguir no ritmo
alucinado nos últimos anos. E todos os países que aceitarem os investimentos
diretos do governo chinês tenderão a, assim como fez o governo do Panamá,
pensar duas vezes antes de aderir a projetos que signifiquem empecilhos claros
à expansão da economia americana.
Nos
últimos anos, a China ampliou sua influência sobre a economia mundial ao bancar
a construção de obras de infraestrutura em países que sempre tiveram
dificuldades para receber investimentos. O dinheiro chinês construiu o maior e
mais moderno porto africano, localizado em Djibouti, um pequeno país no
nordeste do continente, próximo da Eritreia e da Etiópia. A China também
investiu em portos nas principais capitais do continente africano — inclusive
no de Kampala, em Uganda, que se localiza no Lago Vitória e serve para
facilitar o fluxo comercial no interior do continente.
A China
assumiu, ainda, 60% do capital e passou a controlar o porto de Pireu, na Grécia
— que recebeu novos equipamentos e passou a contar com recursos para dragagem
que não via há anos. No Brasil, o grupo CMPort (sigla de China Merchants Port
Holding Company) adquiriu 90% do terminal de contêineres do porto do capital do
porto de Paranaguá, no Paraná.
Esse
movimento tem mais a ver com a expansão do capital chinês pelo mundo do que com
a busca de controle sobre portos e de rotas comerciais com a finalidade de
dificultar a circulação de mercadorias de seu maior concorrente. Nesse sentido,
pode-se dizer que a China cumpre um papel positivo e parecido com o que o
capital dos Estados Unidos exerceu ao longo do século passado, quando bancou
investimentos que, por mais que tenham contribuído para o avanço da economia
global, ajudaram a reforçar sua influência sobre o mundo. Foi o que aconteceu,
por exemplo, com a construção do canal do Panamá, com a reconstrução da Europa
e do Japão após a Segunda Guerra Mundial e com outras obras que, ao beneficiar
outros países, também beneficiaram seu próprio crescimento.
Seja
como for — e como já foi dito e repetido neste texto — é muito cedo para
apontar o caminho que a economia global seguirá daqui por diante. A única
certeza que se tem neste momento é de que nada será como antes no comércio
global e que muitas idas e vindas acontecerão antes que os dois maiores países
do mundo estabeleçam um novo padrão de convivência.
Fonte:
Por Nuno Vasconcellos, em O Dia
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