Frederico Lyra: A periferização da França
Em notícia recente, o McDonald’s, famosa
multinacional norte-americana de fast food, anunciou que, neste ano
de 2025, estará abrindo cinquenta novas lanchonetes espalhadas por todo o
território francês. A empresa conta hoje com mil e quinhentos
estabelecimentos espalhados pela França, trezentos dos quais inaugurados nos
últimos dez anos, muitos deles em cidades ou vilarejos minúsculos e isolados,
tais como Châtaigneraie e Saint-Geniès-de-Malgoirès, ambos com menos de três
mil habitantes e situados, respectivamente, na Vendée e no Gard, dois dos
departamentos mais pobres e menos populosos da França.Como notou recentemente
um antigo ministro: “Dois terços das comunas francesas não têm mais lojas.
Sobretudo, logicamente, elas não têm nem um bistrô nem uma cafeteria.” Daí a
importância do conglomerado norte-americano: “Em muitas pequenas cidades
francesas, o McDonald’s agora é cobiçado pelas próprias autoridades locais e
por supermercados de médio porte”. Agora é o McDonald’s que, às vezes, mantém
um pouco da vida social. Não por acaso, a empresa internacional se engaja como
pode em cumprir a promessa do slogan desta repartição nacional: “Cada francês
tem direito ao seu McDonald’s a menos de vinte minutos da sua casa”. O processo de periferização, tal qual é
conceitualizado pelo geógrafo Christophe Guilluy, na interpretação que ele
elabora da sociedade francesa, é a contraparte interna e necessária da maneira
como o processo de globalização incide no país. O impulso dado pela
deslocalização das indústrias e internacionalização das cadeias produtivas,
isto é, pela nova divisão internacional do trabalho, resultou, entre várias
outras coisas, na expansão de lanchonetes McDonald’s por todo o território
francês. Embora tenha ares de anedota ou de analogia forçada, não custa lembrar
que o primeiro desses fast foods foi inaugurado em 1979, no
momento exato em que o processo de reestruturação produtiva dava os seus
primeiros passos.
Muito além de uma análise economicista,
Christophe Guilluy teoriza o longo processo de transformação da França em “uma
sociedade ‘americana’ como as outras”. Não se trata, no entanto, de mais
uma teoria antiamericana vulgar, mas de uma descrição objetiva de um processo
que implicou na transformação sociocultural de um país cuja socialização de uma
parcela cada vez maior da população ocorre por sua integração nas cadeias de
consumo internacionais de produtos culturais cujos modelos não eram outros senão
aqueles mais bem adaptados à nova maneira de funcionamento do capitalismo – não
por acaso, de origem norte-americana. A transformação cultural, no entanto, é
apenas um dos polos da equação elaborada por Christophe Guilluy. O fundo do
problema é territorial, como, por sinal, a ocupação territorial do McDonald’s
indica. O processo de periferização, de acordo com Christophe Guilluy, se dá de
duas formas principais. Por um lado, refere-se ao deslocamento gradual das
classes trabalhadoras que saem das grandes metrópoles em direção às periferias
francesas.
Diante da globalização, os centros urbanos
estão concentrando toda a riqueza e os empregos qualificados do país,
tornando-se rapidamente lugares elitizados dos quais as classes médias e baixas
têm sido, aos poucos, expulsas. A desindustrialização tornou impossível
absorver toda a população na nova configuração social do país. “A questão
social não está confinada ao outro lado do anel viário, mas ao outro lado das
metrópoles, em áreas rurais, cidades pequenas, cidades de médio porte e certas
áreas suburbanas onde 80% das classes trabalhadoras vivem atualmente”. A globalização é acompanhada por um
crescimento da desigualdade interna aos países, além de uma ideologia
multicultural e novas distinções de classe. Um dos efeitos é tornar as classes
populares dos antigos países centrais dispensáveis. Longo processo de
desligamento dos territórios menos rentáveis à globalização, a periferização
começou por uma reorganização territorial, à qual se seguiram os efeitos
eleitorais, políticos e sociais.
Um exemplo é a transformação do mundo do
trabalho metropolitano francês, que hoje é composto fundamentalmente por
quadros dirigentes – muito embora nem todos, de fato, dirijam algo no interior
das empresas. Boa parte ocupa cargos que reforçam uma distinção social
hierárquica direcionada para o exterior da instituição, sem interferir no
funcionamento interno das empresas ou do Estado, mas contribuindo para o
agravamento do abismo entre as classes. Afinal, os cargos de quadros são comuns
no mundo do trabalho metropolitano urbano e raros nas periferias.Essas áreas
periféricas, onde a antiga classe média está situada, têm sido descoladas do
funcionamento da nação. As pequenas cidades e as cidades de médio porte estão
ficando cada vez mais pobres e desassistidas. Essas áreas vêm sendo relegadas e
deixadas em segundo plano, deixando de participar da vida social e econômica do
país. Entre outras coisas, elas têm perdido praticamente todos os serviços
públicos que eram o alicerce do antigo Estado social – e até mesmo para além
dele: escolas, hospitais, correios, bancos, bares, restaurantes etc. Não por
acaso, é o McDonald’s que condensa a socialização de localidades nas quais a
sociedade tem desaparecido.
Não se trata de uma oposição simples entre
urbano e rural. Embora a França periférica inclua parte do mundo rural, ela
compreende sobretudo as cidades médias e pequenas que estão fora do processo de
concentração de capital. O geógrafo insiste continuamente que esse processo tem
conduzido ao fim da classe média ocidental. A antiga faixa social que compunha
a maioria da população se mantinha estável pela ausência de conflito social
aparente. Porém, sob o radar, a desigualdade crescente e os conflitos aumentavam
no nível micro até explodirem em 2018 com os Gilets Jaunes. “Esta
geografia revela a emergência de um mundo de periferias sobre as ruínas da
antiga classe média. Pela primeira vez na história econômica ocidental, as
categorias modestas não vivem mais onde se criam os empregos e a riqueza e,
sobretudo, não poderão mais viver lá”. Esses são os territórios nomeados por
Christophe Guilluy como a “França periférica”. Essas áreas abrigam a maior
parte da população do país – essa mesma que se sente, e está efetivamente
sendo, excluída da dinâmica econômica e cultural francesa. Essa divisão social,
que se expressa territorialmente, está levando a um sentimento de abandono,
declínio social e perda de pontos de referência comuns no interior da
sociedade. A periferização revela uma nova geografia social, na qual as classes
sociais habitam espaços físicos e culturais separados.
Christophe Guilluy propõe uma leitura
contundente da transformação social e territorial da França contemporânea,
centrada no desaparecimento progressivo da classe média ocidental –
especialmente a francesa – como força estruturante do pacto social do pós-guerra.
Para ele, o que está emergindo nas últimas décadas não é um fenômeno novo, mas
a visibilidade tardia de um processo silencioso e contínuo de periferização: a
marginalização geográfica, econômica e simbólica da França periférica. Essa
França periférica representa cerca de 60% da população – composta por
operários, camponeses, pequenos funcionários, aposentados e produtores
independentes – e está espalhada pelo território nacional fora das metrópoles
globalizadas. Durante muito tempo, essa população constituiu a espinha dorsal
da sociedade francesa: uma classe média modesta, integrada ao Estado social e
reconhecida por seu papel na reprodução do tecido nacional. Hoje, deslocada,
invisibilizada e desvalorizada, busca novas formas de expressão política. Essa
separação social crescente alimenta a desconfiança em relação às elites e às
instituições republicanas. Politicamente, isso se reflete no aumento do voto de
protesto, que tem sido capturado, há mais de duas décadas, pela extrema
direita.
A ascensão da extrema-direita – no caso,
o Front National (FN) – não é, segundo Christophe Guilluy,
resultado de manipulação ideológica por parte dos partidos, mas o inverso: é a
expressão política do mal-estar ressentido por essa maioria silenciosa. Os
partidos apenas acompanham e expressam eleitoralmente um movimento que vem de
baixo. A verdadeira fratura não se encontraria mais entre a esquerda e a
direita, mas entre uma elite urbana, cosmopolita e móvel, e uma população
empobrecida, enraizada, fixada ao território, que carrega a memória da nação e
da Revolução Francesa – como ficou evidente durante o movimento dos Gilets
Jaunes, que retomaram parte dos símbolos e do imaginário revolucionário.
A globalização não apenas desestruturou a
antiga classe operária tradicional, como também fragmentou essa pequena classe
média – até então símbolo de equilíbrio e da identidade nacional. Enquanto os
debates públicos e as políticas sociais se voltavam para as banlieues e
os desafios da integração, esqueceu-se do “miolo” da sociedade francesa, que se
viu escanteado e desprovido de representação. Mais do que uma crise econômica,
o que está em jogo, segundo Christophe Guilluy, é uma crise de reconhecimento
moral. A classe dominante – inclusive setores da esquerda – trata os habitantes
da periferia como retrógrados, xenófobos, ignorantes, “atrasados”, numa postura
que remete ao desprezo das elites globalizadas por aqueles que ficaram “para
trás” no curso do mundo. No entanto, seriam eles os verdadeiros portadores da
continuidade histórica e social do país. Para Christophe Guilluy, a desconexão
entre o topo e a base da sociedade é o sinal mais evidente da dissolução do
projeto republicano.É sempre bom lembrar que o que conhecemos como periferia no
Brasil não é o mesmo que na França. O equivalente francês das periferias
brasileiras – isto é, as áreas periurbanas precárias – são as banlieues.
As banlieues são tratadas cotidianamente pela mídia como
territórios delinquentes e perdidos para a nação. Elas são o resultado dos
efeitos da globalização sobre as camadas subalternas urbanas. A emergência
das banlieues como problema social coincide com o início do
processo de periferização. São para essas localidades que o olhar dos programas
sociais e da polícia está voltado.
A literatura comum exclui os moradores
da France périphérique de suas análises. Ela se concentra na
relação dual entre o centro das metrópoles e suas banlieues. Na
interpretação de Christophe Guilluy, essa estrutura representa apenas parte do
problema. A relação seria, de fato, dual – mas os polos seriam outros. Na
estrutura por ele apresentada, o centro e as banlieues estariam
unificados, compondo um polo, enquanto a França periférica formaria o outro. A
desigualdade estrutural se daria, então, em dois níveis distintos: uma relação
entre centro e banlieue, interna às metrópoles, e outra, entre as
metrópoles e as periferias. Haveria, portanto, uma desigualdade inclusiva –
funcionando relativamente bem do ponto de vista do capital – da qual participam
todos aqueles que estão dentro da estrutura metropolitana. Isso incluiria
inclusive a parcela dos imigrantes que conseguem trabalho, legal ou ilegal. Já
a relação de desigualdade puramente exclusiva se daria entre as metrópoles e as
periferias. Com esse esquema, Christophe Guilluy se distancia dos discursos
mais habituais, que acentuam unicamente os problemas da segregação urbana e
racial de que são vítimas os moradores das banlieues.
Para Christophe Guilluy, o foco midiático e
sociológico nas banlieues seria, em larga medida, efeito da
integração crescente de um determinado prisma teórico de origem
norte-americana, aplicado para pensar uma sociedade diferente do modelo
original. Isso promove uma virada na questão social, que deixa de ser um problema
de igualdade para se tornar uma questão fundamentalmente ética. Nas esquerdas,
“a atenção crescente pelas banlieues e minorias irá de par com
uma indiferença crescente pela classe operária em particular e, mais
massivamente ainda, pelas camadas populares dos espaços periurbanos e rurais”.
Importa-se o modelo do gueto para pensar uma estrutura urbana diversa. Com a
mudança de perspectiva operada por Christophe Guilluy, a cultura da metrópole,
na qual, entre outras coisas, o rap ocupa um lugar determinante, é
destituída do seu status de marginal. Se dá o exato oposto. O rap e toda a
cadeia de produção e consumo que se estrutura em torno dele estão no centro do
novo modo de vida global, em sua particularidade francesa. Há tempos, a chamada
cultura periférica urbana se transformou na expressão máxima da cultura
dominante. Embora seja um problema evidentemente real, a centralidade das banlieues no
debate público e acadêmico teria mascarado o antagonismo principal que
estrutura hoje a sociedade francesa. Isso operou um deslocamento do conflito de
classe para o conflito cultural, o que acaba por orientar a autorreflexão da
sociedade para algo que ela é apenas em parte. Esse enfoque deixa de fora das
análises toda uma parcela do território e da população que não se encaixa nesse
esquema. O modo de vida tradicional das camadas populares da França periférica
passa a ser tratado como arcaico, desprezível, e torna-se efetivamente
marginal. Isso aprofundou a fratura social a um nível talvez irreparável. Em
uma reversão, o que antes não era cultural passa a ser, e, dessa maneira,
torna-se o eixo do conflito — ainda que em termos não previstos de antemão.
Haveria, então, um ocultamento da crise que atravessa as classes médias. Estas
seriam o complemento precário e real da parte ainda pujante da economia
francesa.
Christophe Guilluy sinaliza, assim, que,
apesar de toda a precariedade, as banlieues e seus moradores
se encontram nas cercanias dos centros das grandes cidades. Uma banlieue parisiense,
por exemplo, situa-se, em média, a trinta ou quarenta minutos do centro da
capital, onde estão concentrados os serviços e os empregos. Isto é, embora
representem o lado mais precário da estrutura social urbana, encontram-se em
vantagem comparativa em relação aos periféricos, precisamente por estarem
inseridos na dinâmica cultural e no mercado de trabalho das metrópoles.
Não por acaso, a mobilidade social nas “zonas
urbanas sensíveis” das banlieues – habitadas, em sua maioria,
por imigrantes racializados – era, em 2005, de 61%, o que as destacava no
quesito mobilidade em relação ao restante da França. De maneira geral, sugere
Guilluy, é mais fácil um imigrante árabe encontrar um novo emprego do que um
francês branco periférico, que simplesmente não tem mais acesso àquilo que foi
extinto nos arredores de onde vive. É daí que Christophe Guilluy extrai sua
tese polêmica: os verdadeiros invisibilizados e injustiçados do processo de
globalização seriam os membros da antiga classe média branca, habitantes das
periferias, que estão sendo continuamente empurrados para as margens da
sociedade.
Como nota Éric Charmes em uma resenha crítica
de La France périphérique: “Para encontrar um emprego, você precisa
percorrer um raio muito mais amplo, muitas vezes amplo demais. Muito amplo
porque viajar é caro, especialmente se você tiver que fazer isso de carro.
Ainda há a opção de se mudar, mas não é simples. Com base no trabalho de
Jean-Noël Retière e outros, Christophe Guilluy mostra como a sociabilidade
local é importante para as classes trabalhadoras. Para elas, mudar de cidade
geralmente significa perder o apoio da família, dos amigos e das associações.
Se você quer trabalhar, precisa cuidar de seus filhos e, quando ganha pouco, a
proximidade dos avós é essencial. Além disso, quando se mora em uma área
atingida pela crise e pela desindustrialização, é difícil vender sua casa para
comprar outra em uma área melhor, onde os preços dos imóveis são certamente
mais altos”..
A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, tem
conduzido uma série de mudanças na cidade de Paris, com aumento dos transportes
públicos, a ampliação de áreas verdes, o incentivo ao uso da bicicleta e ao
deslocamento de pedestres. Outras metrópoles, como Lille, Toulouse e Lyon,
também têm realizado fortes investimentos em transportes públicos. Na França
periférica, encontramos o exato oposto. O deslocamento nas regiões periféricas
da França tem um custo muito alto, quase não há transporte público. O
deslocamento pesa mais no bolso da França periférica do que nos centros
urbanos. Vale lembrar que o estopim do movimento dos Gilets Jaunes,
fundamentalmente periférico, foi um aumento súbito no preço dos combustíveis.
Devido à falta de meios de transporte público, a demanda por automóveis é
crescente, estes se tornam, de fato, uma necessidade. O processo de
periferização do país foi acompanhado, entre outras coisas, pelo
desmantelamento de boa parte da malha ferroviária. Se, por um lado, as malhas
de trens de alta velocidade (TGV) continuam a se expandir por todo o país, por
outro lado, as linhas que antes conectavam as cidades menores e as regiões mais
pobres têm sido extintas ao longo dos anos. Ao contrário do que se pensa vulgarmente, não
é o trem-bala que aponta para o socialismo do século XXI. Ou seja, ao invés de
privilegiar a velocidade de deslocamento entre grandes metrópoles, o foco
deveria ser no investimento em uma vasta malha de trilhos cobrindo o
território, de modo a permitir, entre outras coisas, a abolição do automóvel em
nível nacional (ou, ao menos, a possibilidade de escolha para uma parte
considerável da população para quem esse problema não pode ser ignorado;
embora, convenhamos, saibamos hoje que, no socialismo, não haveria automóveis
individuais).
Os habitantes da França periférica sofrem de
sedentarismo e enraizamento forçado. No lado oposto, as camadas mais altas da
sociedade nunca foram tão móveis. A relação dos franceses com as férias é
interessante de observar sob este ponto de vista. Trata-se de um fato social de
tal magnitude que não se pode deixar de sair de férias. Deve-se mostrar o
bronzeado após as férias de verão e o machucado depois de uma suposta férias de
inverno nas pistas de esqui. Essa coerção social vale para todas as classes. A
ideologia e o elogio da mobilidade se transformam em desejo de consumo e modo
de vida que atravessa toda a sociedade. Sem esquecer que a mobilidade não tem
uma única via, mas também abarca aqueles que vêm de fora. Há uma clara
distinção entre o estrangeiro que pode ou não se mover. O imigrante e o turista
não são a mesma coisa. E, mesmo no que tange à imigração, há uma divisão clara.
Uma coisa são os imigrantes pertencentes às camadas superiores e médias,
plenamente integrados ao modo de vida metropolitano. Outra coisa muito
diferente são aqueles que atravessam o Mediterrâneo em barcos frágeis, sempre
na sombra da Frontex.
Christophe Guilluy insiste constantemente que
o apagamento do modelo republicano de coesão social tem dado lugar a uma
assimilação do modo de vida anglo-saxão, que ele descreve como liberal,
desigual e comunitário. Isso cria um paradoxo, pois a sociedade ainda tem apego
à ideia de ser republicana, muito embora esta se encontre em uma crise aguda. A
ideia de um comum republicano deixa de ser uma referência, perdendo espaço para
uma lógica de minorias que o excedem ou que se veem em excesso em relação a essa
norma representativa. A França emerge como uma sociedade múltipla e
fragmentada, mas com uma fratura principal, onde “a miscigenação e o
multiculturalismo são apresentados como os objetivos principais de uma
sociedade onde o povo seria intrinsecamente racista. Neste contexto, o real
conta pouco, notadamente o fato de as categorias populares continuarem
visceralmente atreladas ao princípio de igualdade”. Ao contrário do que imaginam os deleuzianos,
“ninguém deseja ser e muito menos se tornar minoritário”. A insegurança e a
paranoia cultural fazem com que pessoas de diferentes origens, classes e
religiões passem a se evitar. Esse fenômeno é chamado de evitamento. As
diferentes categorias sociais vivem separadas, especialmente, mas não apenas,
os imigrantes. Não é raro que até mesmo comunistas ou anarquistas escolham
mudar de bairro ou de cidade, se necessário, para evitar a classe operária, ou
o que restou dela. Quando transposto para os periféricos, o evitamento faz com
que muitos prefiram continuar nas suas condições precárias e sedentárias a se
aventurarem nas metrópoles, por não quererem se ver obrigados a conviver com
uma imensa massa de estranhos. Isso, forçosamente, os deslocaria para as
margens da metrópole. Tal fenômeno tende a se aproximar do que tem sido chamado
midiaticamente de comunitarismo, uma categoria “mutante” que ainda carece
de investigação profunda para além do discurso vulgar da direita e das mídias,
a fim de conhecer a verdadeira amplitude de um problema vivido por todos.
Christophe Guilluy defende, no entanto, de
maneira bastante polêmica, que uma certa dose de separatismo seria necessária
ou, ao menos, compreensível, e que o processo de mistura multicultural
incentivado pelas elites resultaria em algo muito pior. Um processo
multicultural conduzido de qualquer maneira por cima das camadas populares,
insiste o geógrafo, criaria as condições para uma crescente tensão social. Diz
ele: “Ao contrário do que se pensa, a separação é justamente para evitar a
guerra”. Um momento fundamental para o
desdobramento do processo de periferização da França foi a implementação do
Tratado de Maastricht, assinado em 1992, que estabeleceu as bases para o Euro,
a futura moeda comum. Na sequência, vieram os Tratados de Nice, Amsterdam e
Lisboa. A implementação deste último, no caso da França, constituiu um golpe de
estado constitucional, pois a população francesa havia rejeitado o Tratado de
Roma em um referendo acachapante. Obviamente, a opinião soberana popular, que
rejeitava a Constituição Europeia, foi ignorada e contornada em seguida pelo
Tratado de Lisboa. Afinal, o processo de globalização e a consequente
periferização do país deveriam continuar a todo vapor. Christophe Guilluy
aponta que esse desencontro entre as elites dirigentes globalizadas e a
população francesa marca o ponto de clivagem e a emergência efetiva da França
periférica. Vale lembrar que, durante a década de 1990, as esquerdas mundiais,
em contraponto ao declarado fim da história, conseguiram aglutinar fortes
movimentos internacionais em torno da pauta da anti-globalização, com destaque
especial para Bolonha, Seattle e Porto Alegre. Já no início do novo milênio,
elas se rendem e aderem de modo integral à ordem global e multicultural
nascente.
Por essas e outras razões, Christophe Guilluy
insiste que o problema da soberania deveria ser colocado novamente na mesa
pelas esquerdas. Na França contemporânea, Jean-Luc Mélenchon é o último
herdeiro à esquerda de uma longa tradição republicana que ainda mantém alguma
força e insiste nesse ponto, embora seja atacado ferozmente pelo establishment
e por uma parte considerável da esquerda, que, bem integrada às cadeias
culturais internacionais, o vê com muita desconfiança, quando não com ojeriza. Um
exemplo anedótico desse desencontro cultural apontado por Christophe Guilluy
ocorreu durante a pré-campanha presidencial de 2022. Em uma entrevista para uma
emissora de televisão, o candidato do Partido Comunista Francês, Fabien Roussel
– que, apesar de suas limitações, às vezes (raramente) acerta – ousou afirmar
que bons vinhos, queijos e uma boa carne vermelha são as marcas tradicionais do
melhor da gastronomia francesa. Ele disse ainda que um programa comunista fiel
à tradição do país teria como um de seus horizontes universalizar o acesso a
esses produtos de excelência – vale lembrar que os melhores produtos, na
realidade, são inacessíveis ao orçamento médio.
Fabien Roussel chegou até mesmo a elogiar
mmanuel Macron, que havia defendido o vinho, e afirmou em seguida que um bom
presidente francês defende necessariamente o vinho. Pois, parte considerável da
esquerda liberal, multicultural e anti-povo, considerou essa posição
democrática, elitista e politicamente incorreta.
Por volta de 2017, Christophe Guilluy ousou
afirmar que “Trump e Macron são, de fato, as duas faces de um mesmo modelo;
ambos integraram perfeitamente o choque que provocou o fim da classe média
ocidental. Dependendo das circunstâncias, a balança favorece o candidato
‘populista’ ou o ‘globalista’”. Havia uma brecha a ser ocupada pela esquerda
francesa, americana e até mundial, caso tivessem compreendido que essa aparente
polaridade escondia uma convergência de fundo.
Contestado por todos os especialistas
acadêmicos que tentam decifrar a sociedade com o objetivo de governá-las na
direção que desejam, Christophe Guilluy reintroduz um programa em defesa de um
novo pacto republicano nacional. Talvez não seja o ideal, certamente não é uma
Revolução, muito menos a continuação ou conclusão da Revolução de 1789, mas é,
sem dúvida, algo contra o fluxo para o qual a sociedade francesa vem sendo
conduzida desde 1981.
Diante do declínio do Ocidente e da crise da
globalização, ele defende um tipo de pragmatismo popular, calcado em um
instinto de sobrevivência próprio das camadas populares despossuídas. “Nem
movimento de massa, nem revolução, sem uma aliança de classe. Em um contexto
econômico e político diferente, o relativo fracasso dos partidos gregos e
espanhóis, como o Syriza e o Podemos, pode ser explicado, antes de tudo, pela
impossibilidade de uma burguesia esclarecida apoiar as aspirações populares”.
Não se faz sociedade sem os mais modestos, sem aqueles que têm sido os
perdedores, excluídos do processo de globalização e periferização.
Não é por acaso que intelectuais mais ou
menos independentes, que, como ele, tentam levar em conta de maneira séria o
diagnóstico objetivo das classes populares, são boicotados pelo establishment.
Para além das divisões oficiais, Christophe Guilluy aposta na implosão do
sistema político atual e na reestruturação institucional. Um “afrontamento pela
emergência de uma contra-sociedade que possa assegurar a reintegração
econômica, política e cultural das camadas populares”. A hegemonia e o poder
social das classes populares vêm aumentando à medida que a sociedade se
fratura, como mostrou o movimento dos Gilets Jaunes e a
“contra-sociedade” que, através deles, emergiu temporariamente. O que virá
depois do fim da globalização, que foi o processo motor da periferização
francesa?
O diagnóstico da periferização, formulado no
início dos anos 2000, se mantém e é atualizado a cada novo livro de
Christophe Guilluy. Embora seus textos possam parecer repetitivos, eles são
interessantes por permitir acompanhar a evolução da pesquisa e, paralelamente,
da sociedade francesa. O geógrafo passou um bom tempo falando solitariamente
sobre as fraturas constitutivas da sociedade e as tendências que vinham de
baixo, até que elas se tornaram inegáveis em novembro de 2018, com o movimento
dos Gilets Jaunes. Embora seja um autêntico descendente da longa
linhagem do republicanismo de esquerda francês, o curso do mundo e da sociedade
parece tê-lo capturado. O tom ensaístico de seus textos, sempre bem escritos e
polêmicos, tem mudado sensivelmente, e com ele a posição implícita do autor. À
medida que Christophe Guilluy foi corretamente observando que a hegemonia
liberal no campo das esquerdas é fundamental para a manutenção e agravamento do
problema social por ele identificado, sua posição foi se tornando progressivamente
mais conservadora. Não se pode esquecer que, desde cedo, Christophe Guilluy, um
intelectual independente fora dos círculos acadêmicos, tinha como público-alvo
imaginário as elites intelectuais e políticas. Ele foi criticado, quando não
ignorado, pelos primeiros, mas conseguiu, inicialmente, obter certa circulação
nas altas esferas do mundo político. O auge dessa circulação aconteceu durante
a campanha de 2012.
Os candidatos Nicolas Sarkozy e François
Hollande, à época o presidente em exercício e o futuro presidente, se mostraram
sensíveis ao diagnóstico apresentado em Fractures françaises,
publicado dois anos antes. Outros políticos leram e se referiram ao geógrafo ao
longo dos anos. Desde a primeira década do século XXI, ele também atua como
intelectual público e midiático, sendo uma figura recorrente nos debates
televisivos franceses.
A impressão que fica, no entanto, é que,
embora diga escrever para a esquerda, é a direita, especialmente a extrema
direita, quem melhor entende o diagnóstico de Christophe Guilluy. É bem
possível que as classes médias populares periféricas, de fato, desejem uma
desamericanização da França nos moldes imaginados pelo geógrafo, embora, ao
seguir essa direção, o resultado possa ser oposto ao que ele previu, com tons
mais sombrios. No fundo, como mencionado anteriormente, o projeto de Christophe
Guilluy passa pela elaboração de um novo pacto social republicano, nos moldes
do antigo estado social, desmontado pelo neoliberalismo por razões políticas e,
sobretudo, pela falta de substância material decorrente da crise estrutural que
o capitalismo entrou desde meados dos anos 1970. Contudo, como não se sente
devidamente escutado nem reconhecido pelas elites, para quem, no fundo,
escreve, pouco a pouco Christophe Guilluy foi se ressentindo e, talvez sem
perceber, começou a se inclinar para a direita. Ou, no mínimo, para aquilo que
Amaury Giraud, em seu livro, chama de “conservadorismo de esquerda”. Não é por
acaso que, para além do diagnóstico objetivo em parte também negativamente
correto, Hillbilly Elegy, de J. D. Vance, é uma das principais
referências positivas no livro No Society de 2017. É possível
que a única coisa que impeça viradas políticas desse tipo seja manter sempre
aberto o horizonte socialista, e sobretudo comunista.
Fonte: A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário