Samuel
Kilsztajn: Os russos estão chegando!
Em
1956, o relatório de Nikita Khrushchov “Sobre o culto à personalidade e suas
consequências”, conhecido como “Relatório (discurso) secreto”, que destacava o
expurgo e extermínio de milhares de militantes comunistas e desmistificava o
papel de Joseph Stalin durante a Segunda Guerra Mundial, afetou as relações
diplomáticas entre a China e a União Soviética, que se deterioraram
categoricamente em 1964.
Em meio
à Guerra Fria, os Estados Unidos acompanharam radiantes a cisão sino-soviética,
que enfraquecia o seu então inimigo nº 1, a Cortina de Ferro formada pela
Rússia, as demais repúblicas da União Soviética e os estados satélites da
Europa que compunham o Pacto de Varsóvia, além da vizinha Cuba.
A
aproximação dos Estados Unidos à China teve início em 1968, o presidente
republicano Richard Nixon visitou o país (1972), a Guerra do Vietnã acabou
(1975) e as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a República Popular
da China foram formalmente estabelecidas em 1979.
A
Rússia deu início à Perestroika em 1986 e os países-membros do Pacto de
Varsóvia começaram a abandonar o comunismo em 1989, ano em que o Muro de Berlim
foi colocado abaixo. Em 1991 o Partido Comunista foi extinto, a União Soviética
foi dissolvida e a Guerra Fria acabou. Apesar da Guerra do Golfo, o mundo
vislumbrava e festejava novos tempos de paz e harmonia universal. Nelson
Mandela saiu da prisão para a presidência da África do Sul. Quanta ironia
estarmos hoje sentindo saudades dos tempos da Guerra Fria!
Na
passagem dos séculos XX para o XXI, o tradicional Império Chinês, que havia
sido dominado pelo ocidente durante as Guerras do Ópio em meados do século XIX,
reergueu-se para se transformar em uma grande potência mundial, utilizando-se
das próprias armas do ocidente, o mundo da mercadoria e o progresso. O
acirramento aberto das relações comerciais entre os Estados Unidos e a China
teve início durante a administração de Donald Trump em 2017 e a China é o atual
inimigo nº 1 dos Estados Unidos.
Neste
segundo mandato, Donald Trump está determinado a apaziguar o conflito entre a
Europa e a Rússia, de forma a distanciar os russos dos chineses, o mesmo
expediente utilizado há 60 anos, com poderes e alianças invertidos. E, ao que
tudo indica, a presente desarticulação entre os Estados Unidos e a Europa
favorece a China, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
• O fantasma russo – passo a passo
A
reação da aristocracia da Europa Continental levou Napoleão Bonaparte a
exportar a Revolução Francesa e, durante a Era Napoleônica, o ideário da
revolução invadiu o continente. Mas, em 1812, Alexandre I derrotou a Grande
Armée de Napoleão, mantendo o Império Russo refratário às conquistas liberais
que dominaram a Europa Continental.
Em
Guerra e paz, Léon Tolstoy reconstruiu a historiografia da Campanha Russa e do
acaso que governou a obstinada resistência do povo e do exército russos (os
ocidentais, contudo, atribuem a vitória ao General Frost, o rigoroso inverno
russo). A Rússia derrotou Napoleão em 1812 e teve que esperar mais um século
para abolir a sua monarquia absolutista.
Após a
Revolução Russa de 1917, a guerra civil tomou conta do antigo Império. Ao lado
da Ucrânia e da Bielorrússia, a Polônia fazia parte do Império Czarista. Os
bolcheviques entendiam que o socialismo restrito à arcaica Rússia era inviável
e queriam alcançar Varsóvia para se juntarem ao movimento revolucionário alemão
(a Polônia ficava estrategicamente entre a União Soviética e a Alemanha). O
objetivo de Vladímir Lênin era alcançar Berlim, Paris e Londres.
E a
Europa, alinhada, se empenhou em erguer um “cordão sanitário” para deter o
avanço soviético sobre a Polônia. Charles De Gaulle participou da Missão
Militar Francesa na Polônia e ganhou a mais alta condecoração militar polonesa,
o Virtuti Militari. Os bolcheviques não conseguiram atravessar a Polônia para
alcançar Berlim; e a Alemanha se encarregou de reprimir seus socialistas,
eliminando os líderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919.
Após a
morte de Vladímir Lênin, Joseph Stalin encabeçou a doutrina do “socialismo em
um país só” e o internacionalista Léon Trotsky foi afastado do Partido
Comunista. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista
passou a contemplar a Polônia. Para conter as aspirações alemãs, Londres, Paris
e Moscou ensaiaram, mas não conseguiram chegar a um acordo, porque a Polônia se
recusava a permitir a entrada das tropas soviéticas em seu território.
Por
fim, em 23 de agosto de 1939, a Alemanha nazista e a União Soviética acabaram
assinando um Pacto de não-agressão, com protocolos secretos determinando a
repartição da Polônia. Assim, depois de duas décadas de independência, a
Polônia voltou a ser partilhada entre a Rússia e a antiga Prússia e Áustria,
então unificadas como III Reich.
Depois
de ocupar a Europa Continental, em junho de 1941, a Alemanha nazista resolveu
invadir a União Soviética. A sangrenta Batalha de Stalingrado, na qual mais de
um milhão de russos pereceram, é considerada o ponto de inflexão do Terceiro
Reich, projetado para durar um milênio. E os poloneses tiveram que contar com o
seu inimigo nº 1 para libertá-los da ocupação alemã. Em 1945, depois da Segunda
Guerra Mundial, a Imperial Rússia Soviética, vitoriosa (mais uma vez, o General
Frost, do ponto de vista dos ocidentais), ocupou todos os países do Leste
Europeu e metade da Alemanha, assentou os comunistas no poder à sua imagem,
transformou todos os seus territórios em estados satélites e constituiu o Pacto
de Varsóvia.
Com a
iminência da dissolução do Pacto de Varsóvia, a OTAN e a URSS acordaram em
manter neutros os países-membros do Pacto. Entretanto, todos os antigos membros
do Pacto de Varsóvia foram incorporados à OTAN porque, segundo a mesma, o
acordo fora firmado com a URSS, dissolvida em 1991. Foi então acordado entre a
OTAN e a Rússia que a Bielorrússia e a Ucrânia constituiriam a nova região
neutra. Na Crise da Criméia de 2014, a Ucrânia e a Rússia entraram em conflito
e o embate segue na guerra da Ucrânia em curso.
As
autoridades europeias se surpreenderam com a política norte-americana anunciada
por Donald Trump. O fantasma russo corre solto e parece bater à porta de
Napoleão em 1812. Assim como os bolcheviques em 1917 e Stalin em 1945, mais uma
vez, os russos estão chegando. Volodymyr Zelensky, a princípio, ficou
revoltado; Emmanuel Macron, por sua vez, ficou em pânico com a ameaça russa à
França e à Europa e disponibilizou o seu arsenal nuclear.
A
Europa segue se debatendo com o fantasma russo que derrotou Napoleão e nunca
aderiu à Revolução Francesa e à democracia ocidental. A organização e as
instituições políticas da Rússia constituem um mistério e um desafio para a
Europa, desde o império dos czares, passando pelos bolcheviques e, agora, com
Putin no poder. Vale a pena ler o bem humorado desabafo que o sociólogo
marxista russo Boris Kagarlitsky, editor-chefe da revista online Rabkor.ur,
enviou da prisão, onde atualmente cumpre pena de cinco anos.
Fonte:
A Terra é Redonda
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