Pataxós
pedem socorro e justiça no Sul da Bahia
No extremo
sul da Bahia, o povo Pataxó resiste
nas Terras Indígenas Barra Velha, Barra Velha do Monte Pascoal, Comexatiba e Águas Belas. Em meio à violência
de fazendeiros, grileiros e forças policiais, lideranças pedem socorro — e
justiça.
“Essa
terra é nossa desde antes de 1500. Não estamos invadindo nada de ninguém. Cada
canto desse território é sagrado. É onde nossos encantados vivem”, afirmou o
cacique Suruí Pataxó ao Instituto Socioambiental (ISA), logo após seu povo ter sido alvo da Operação
Pacificar,
quando 150 policiais civis e militares da Bahia adentraram a TI Barra Velha do
Monte Pascoal para cumprir 12 mandados de prisão e sete de busca e apreensão,
no dia 20 de março.
Durante
a operação, 11 indígenas foram presos. Porém, nesta terça (08/04), sete deles
tiveram a liberdade concedida, após pedido da Defensoria Pública do Estado. Os
quatro restantes ainda não tiveram o pedido de habeas corpus deferido.
Em
nota, a Polícia Civil afirmou que a ação buscava desarticular grupos armados de
“supostos indígenas” que, “a pretexto de estarem atuando em ‘retomadas’ de
territórios de seus ancestrais, agem com violência e grave ameaça contra
trabalhadores e proprietários rurais”.
Afirmação
que Suruí contesta. “É muita perseguição. Tem vários dos nossos com mandados de
prisão. Eles alegam que a gente é invasor, falsos índios, criminosos. Que
tomamos a terra para roubar coisas dos ruralistas”, explica. “Mas a história é
outra: nós não estamos invadindo nada de ninguém, como eles chamam. Apenas
estamos ocupando o que é nosso, que é uma terra de ancestralidade da comunidade
pataxó”, afirma o cacique.
A
operação policial ocorreu dias após uma comitiva de lideranças do povo Pataxó
viajar até Brasília para exigir do governo federal a assinatura da portaria
declaratória da TI Barra Velha do Monte Pascoal e denunciar o cenário de
violência, grilagem e omissão estatal que tem marcado a região. O que levou o
Conselho de Caciques da TI Barra Velha a publicar uma carta, onde afirma que a
operação foi “uma movimentação além de suspeita,
estranha e com cara de retaliação”.
“Que
seja apurado e responsabilizados os agentes públicos e políticos
envolvidos nesta operação; inclusive a inobservância e respeito aos nossos
direitos. Bem como as violações contra os direitos das crianças e das
pessoas mais vulneráveis, vítimas da violência que estamos sofrendo”, diz
trecho da carta, que também denuncia a violência policial.
Nesta
semana, os Pataxó estão de volta a Brasília para participar do 21º Acampamento
Terra Livre (ATL) e denunciar a violência que os aflige. “Vamos dançar Pataxó /
Pelo parente que morreu / Agradecemos ao pai Tupã / Pela vista que nos deu”,
eles cantaram ao ocupar a tenda principal do acampamento iniciado na
segunda-feira (07/04).
“A
gente costuma vir ao Acampamento trazer algumas demandas, mas dessa vez a gente
veio numa forma de luta – de luto, na verdade. Luto por tudo que está
acontecendo no nosso território”, conta Apêtxiênã Pataxó, liderança da
juventude pataxó, que revela que algumas das 150 pessoas da delegação presente
no ATL tiveram de sair escoltadas de suas terras.
“Teve
um massacre no ano de 1951, quando nosso povo foi praticamente exterminado, e
com toda a luta dos nossos velhos a gente conseguiu reconstruir. E hoje esse
massacre está retornando, só que de uma forma bem mais visível”, analisa o
jovem, lembrando da repressão policial sofrida durante o “Fogo de 1951”. Apêtxiênã denuncia:
“O nosso povo está morrendo lá na base, injustamente estão presos, então a
gente vem pedir que as autoridades olhem pelo povo Pataxó”.
·
Indignação e frustração
O
encontro com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, no dia 12 de março,
era aguardado com expectativa pela comitiva pataxó que foi a Brasília — mas
terminou em frustração e revolta.
“Foram
mais de 40 horas de estrada. A gente foi pedir proteção, pedir que o governo
faça o que a Constituição manda. E saímos de lá com mais dor”, relata a
liderança indígena Uruba Pataxó.
Segundo
Uruba, a reunião com o ministro foi marcada por falta de escuta, pressa e
desrespeito. A liderança conta que o ministro chegou atrasado, permaneceu pouco
tempo e demonstrou mais preocupação com um outro compromisso, que teria após o
encontro, do que com os assassinatos e conflitos relatados pelos Pataxó.
“Ele
falou que só podia ficar 30 minutos porque tinha um compromisso, uma cerimônia
que não podia perder. Nem deu boa noite. Foi direto dizendo que não dava para
assinar a demarcação, que podia cair na Justiça”, disse Uruba.
Nesta
terça-feira (08/04), a 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota técnica recomendando
que o ministério comandado por Lewandowski assine imediatamente as portarias
declaratórias de três Terras Indígenas no Sul da Bahia, incluindo Barra Velha
do Monte Pascoal e duas outras do povo Tupinambá.
A
violência contra os Pataxó também foi pauta de uma reunião do Conselho Nacional
de Direitos Humanos (CNDH), que, além de recomendar a declaração da área pelo
MJSP, indicou o deslocamento da Força Nacional à região.
De
acordo com o relato dos Pataxó, na reunião de março o ministro justificou a
inércia do governo em avançar no processo de demarcação afirmando que os
invasores das Terras Indígenas são pessoas muito influentes e com grande poder
econômico, capazes de contratar os melhores advogados para reverter qualquer
ato administrativo.
“Ele
disse assim, com todas as letras: ‘Hoje, quem manda no Brasil é o dinheiro’”,
lembra Uruba.
A
liderança reagiu imediatamente:
“Falei
pra ele que nossa terra tá banhada de sangue, que nosso povo tá morrendo, e que
quem tem que mandar no Brasil é a Constituição, não o dinheiro. E se o governo
não demarcar, a gente vai continuar fazendo as retomadas”.
·
Manobras jurídicas
A TI
Barra Velha foi demarcada administrativamente em 1981 e homologada em 1991 com
uma área de apenas 8.627 hectares — onde se concentram hoje oito aldeias, entre
elas, a Aldeia Barra Velha, chamada pelos Pataxó de Aldeia Mãe. Desde então, os
Pataxó afirmam que a área não corresponde à totalidade de seu território
tradicional.
Segundo
o antropólogo José Augusto Sampaio, essa primeira demarcação não respeitou os
critérios legais nem levou em conta a história e a territorialidade dos Pataxó.
Na época, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar, e o processo foi
conduzido por dois órgãos ligados ao regime: a Fundação Nacional dos Povos
Indígenas (Funai), criada em 1967, e o extinto Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal (IBDF), antecessor do Ibama.
“Foi
uma delimitação arbitrada pela Funai e o IBDF, sem nenhum estudo. Por isso, não
atende aos requisitos constitucionais do que são as Terras Indígenas. A área
foi definida por conveniência administrativa, não por critério técnico ou
histórico. Foi uma decisão imposta, não dialogada”, explicou Sampaio, que é
professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e presidente do conselho
diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).
Firmado
em 1980, esse acordo entre os órgãos federais envolvia a sobreposição de Barra
Velha pelo Parque Nacional do Monte Pascoal — criado em
1961, quando a permanência dos Pataxó foi restringida a uma área de apenas 210
hectares. “Era a ditadura. Tudo foi feito sem respeitar o direito dos povos
indígenas, como se estivessem lidando com posseiros comuns”, explica Sampaio.
Segundo
um artigo da antropóloga Sheila Brasileiro publicado pelo ISA em 2004, a
tentativa de regularização da TI Barra Velha, homologada em 1991, foi marcada
por irregularidades, contrariando a legislação indigenista de então e fazendo
com que metade do território de ocupação tradicional dos Pataxó – já
identificado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) –, fosse
cedida ao Parna. Aos Pataxó, restaram uma terra de brejos arenosos do entorno
do Monte Pascoal e um longo histórico de contendas com os órgãos
ambientais.
“Foram
muitas formas de violências que os indígenas sofreram por parte dos servidores
do IBDF, especialmente as mulheres. Essas violações marcaram gerações”, explica
Milene Maia Oberlaender, coordenadora do Programa de Política e Direito
Socioambiental do ISA.
Ela,
que atuou por oito anos como gestora do Parna Monte Pascoal, conta que as
famílias eram impedidas de colherem suas próprias plantações, o que gerou fome
em grande parte da população pataxó. “Eles eram obrigados a coletar alimentos
durante a noite, para que não fossem ‘pegos’ pelos fiscais, se sentiam ladrões
em sua própria casa. Essas agressões psicológicas marcam até hoje os Pataxó”,
contextualiza.
Foi
apenas após a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu de forma
explícita os direitos originários dos povos indígenas sobre seus territórios
tradicionais, é que os Pataxó puderam iniciar, com apoio do Ministério Público
Federal (MPF) e da universidade, o processo de regularização de sua verdadeira
terra.
No
início dos anos 2000, com a retomada pelos Pataxó do Parna Monte Pascoal e por
ações do MPF, a Funai finalmente deu início aos estudos técnicos necessários
para reparar os feitos do passado e corrigir os limites da TI Barra
Velha.
O
trabalho foi concluído em 2009, resultando na identificação da TI Barra Velha
do Monte Pascoal, uma área de 52.748 hectares, distribuída pelos municípios de
Itabela, Itamaraju, Prado e Porto Seguro. O relatório técnico confirmou que a
área corresponde ao território de ocupação tradicional dos Pataxó, abrangendo e
ampliando significativamente os limites da porção de terra demarcada em 1991.
Aprovado
e publicado pela presidência da Funai, o relatório de identificação e
delimitação foi enviado ao Ministério da Justiça para emissão da portaria
declaratória — mas travou ali. Em parte, por conta de ações judiciais movidas
por fazendeiros e, posteriormente, pela mudança de postura política nos
governos Temer e Bolsonaro com relação às demarcações de TIs.
Com o
novo governo, os Pataxó voltaram a pressionar. O processo chegou à mesa do
Ministério da Justiça em novembro de 2023, após passar pelo crivo do Ministério
dos Povos Indígenas (MPI). Desde então, aguarda assinatura.
Em
2024, uma decisão da Justiça Federal determinou que
a Funai e o Governo Federal concluam os trâmites da revisão de limites e a
demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal em até dois anos, sob pena de
multa de R$10 milhões. Ainda assim, nenhuma medida concreta foi tomada até o
momento.
“Essa
terra está na mesa do ministro há mais de um ano. E ele não assina. Nem
devolve. Nem explica. Só enrola”, conclui Sampaio.
Enquanto
o processo segue travado, as comunidades relatam situações de conflito, medo e
resistência. “Nós já fizemos a nossa parte. A terra é nossa e já está ocupada
por nós. Falta o Estado fazer o que a Constituição manda”, afirma o Cacique
Suruí.
·
Autodemarcação e a resposta a tiros
O
processo de autodemarcação começou em 1999. Desde então, os Pataxó vêm sendo
reprimidos a cada novo avanço – até 2022, 11 aldeias foram reocupadas, segundo
o Mapa da Autodemarcação Pataxó da TI
Barra Velha do Monte Pascoal, que registra os avanços na autodemarcação
até 2022 e foi produzido pelo Observatório Pataxó do Território. Hoje são cerca
de 20 áreas reocupadas. Saiba mais.
“Tiraram
os parentes à força da bala. E a gente voltou. Porque essa terra é nossa. Já
que o governo não demarca, a gente faz a autodemarcação. E por isso somos
perseguidos, presos, mortos”, afirma o Cacique Suruí.
A
escalada da violência nas aldeias pataxó tem crescido ano após ano. Em março de
2025, o indígena Vitor Braz, de 53 anos, foi
assassinado a tiros por pistoleiros em um ataque noturno à Aldeia Terra à
Vista, na TI Barra Velha do Monte Pascoal. Em janeiro de 2023, dois jovens — Samuel Cristiano do Amor
Divino, de 25 anos, e Nauí Brito de Jesus, de 16 — foram
executados por homens armados. Ambos viviam em uma aldeia na Fazenda Condessa,
propriedade rural localizada dentro dos limites da mesma TI, reocupada em 2023.
Na TI
Comexatiba, território vizinho, no município de Prado, João Celestino Lima
Filho, de 50 anos, morreu após ser baleado durante a
reocupação da
Fazenda Japara Grande, sobreposta à TI, realizada no último dia 4 de abril. A
confirmação da morte do índigena foi dada pela Polícia Civil de Teixeira de
Freitas, no domingo (06/04). Até agora ninguém foi preso. Em 2024, o
adolescente Gustavo Silva da Conceição, de 14
anos,
foi morto com um tiro na nuca durante um ataque no mesmo território.
A TI
Comexatiba, também conhecida como Cahy-Pequi, é um território tradicionalmente
ocupado pelos Pataxó que enfrenta a mesma lógica de exclusão e racismo:
desmatamento, loteamento ilegal e omissão do Estado em finalizar a
demarcação. Saiba mais.
São
constantes as denúncias de cerco armado imposto por pistoleiros, que incluem
queima de casas e intimidações contra mulheres. A terra também é sobreposta por
uma Unidade de Conservação, o Parque Nacional do Descobrimento.
Esses
assassinatos fazem parte de um número ainda maior. Um documento destinado a
Lewandowski pela subprocuradora-geral da República Eliana Peres Torelly de
Carvalho, obtido por Sumaúma, aponta que, nos
últimos 11 anos, 74 pessoas pataxó foram assassinadas no extremo-sul baiano, a
maioria na luta pela terra. “Nós pedimos socorro às autoridades! Que demarquem
o nosso território. Só assim esses conflitos cessarão”, frisa Suruí.
Diante
da omissão histórica do Estado brasileiro e da escalada de violências sofridas
nos territórios, as lideranças Pataxó recorreram à esfera internacional. Em
março de 2025, o Conselho de Caciques da Terra Indígena Barra Velha do Monte
Pascoal entregou à Organização das Nações Unidas (ONU) um dossiê completo denunciando
assassinatos, perseguições, invasões, conivência de autoridades locais e a
paralisação da demarcação da terra.
Segundo
o documento, a repressão às autodemarcações pataxó não é obra do acaso, mas
resultado de ações orquestradas por grupos com forte interesse econômico na
manutenção da posse ilegal das terras, para a produção, entre outros, de cacau
e café.
Entre
os principais atores contrários à demarcação das terras pataxó estão
fazendeiros, grileiros e milicianos que atuam em conluio para impedir o avanço
das autodemarcações. De acordo com o dossiê, lideranças indígenas são
constantemente ameaçadas por representantes do agronegócio local e por
pistoleiros contratados para intimidar e atacar as comunidades.
O
documento aponta que setores do Estado — incluindo servidores públicos,
representantes do sistema judiciário e órgãos de proteção aos povos indígenas —
têm se omitido ou mesmo atuado ativamente contra os indígenas, favorecendo
interesses privados sob o disfarce de legalidade.
Além
disso, ao lado dos grileiros, milícias armadas ligadas ao narcotráfico
consolidaram uma estrutura de poder paralela nas áreas mais vulneráveis do
território. Esses grupos impõem o medo por meio de agressões, torturas e
assassinatos, e tentam controlar o cotidiano das aldeias, inclusive
interferindo na vida cultural e espiritual dos Pataxó. “Jovens são cooptados,
lideranças ameaçadas, e diversas famílias vivem em estado constante de alerta”,
denuncia Uruba.
O
documento exige a responsabilização do governo federal e pede apoio
internacional para garantir a proteção das lideranças e a conclusão do processo
demarcatório. “A gente cansou de pedir ajuda para o governo. A ONU foi o último
caminho que encontramos para dizer: estão matando nosso povo. E a terra, que é
nossa por direito, continua na mão dos fazendeiros”, desabafou Uruba Pataxó.
Fonte:
ISA

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