Do
ovo da serpente nasce o fascismo e a incerteza deixa o mundo em suspenso
Donald
Trump é a representação de um império em crise profunda. Por isso, atiça o
dragão e mergulha o mundo no buraco da incerteza e o coloca no caminho
da desglobalização. Ele não mede as palavras e age de forma imprudente e
desrespeitosa contra outras nações. Junto ao tarifaço que pode levar
o mundo a experimentar, além da guerra comercial, a guerra bélica,
adota medidas para acabar com ações de mitigação ao colapso climático. Nesse
mundo obtuso, plataformas sociais flertam com o autoritarismo e o
fascismo.
<><> Show de Trump
No dia
02 de abril, Donald Trump, mais uma vez
colocou o mundo apreensivo ao anunciar um tarifaço global aos produtos
importados pelos Estados Unidos. Desvalorização da moeda americana e
a queda das bolsas e dos lucros
das empresas marcaram os primeiros dias que se seguiram à notícia. Uma medida
que usou uma fórmula errada e absurda, segundo avaliaram os analistas
econômicos do mundo. Apresentação feita em uma lista com cartazes foi mais uma
cena dantesca do show de Trump. Mas ao longo dessa
semana recuou da decisão, interrompendo por 90
dias as sobretaxas aos
países que, em suas palavras, estavam na “fila para beijar sua
bunda”.
A China, no entanto, ficou de fora, acirrando ainda mais a guerra
comercial. Não sabemos exatamente o que fez o presidente norte-americano voltar
atrás, mas Elon Musk brigou publicamente com o mentor do plano, Peter Navarro, e outros aliados
criticaram o governo pelas insanas medidas. Além disso, a retaliação dos
Estados e a resposta do mercado financeiro aflito, mostraram a fragilidade das
bravatas da extrema-direita. Não obstante, o mandatário, antes de revogar o tarifaço, fez um anúncio nas
redes sociais, que seria um “bom momento para comprar”, em uma clara manobra de
manipulação do mercado, que fez com que alguns ricaços faturassem bilhões com
alta recorde das bolsas de valores e a valorização do câmbio.
<><> Fim da Globalização
Nesse
cenário de extrema incerteza, Trump coloca em xeque um dos pilares
do capitalismo internacional, que pode culminar no fim da globalização,
do livre comércio e do livre mercado. Um retrocesso que não só coloca o mundo no
caminho de uma recessão, como no crash de 1929, mas com impactos
que vem afetar a economia global. As sobretaxas de Trump podem
desestabilizar mercados e abalar confiança de consumidores e empresas. A
expectativa dos analistas financeiros é de estagnação econômica, com aumento do
desemprego e da inflação. “Uma guerra em que todos perderão”, como bem pontuou
o economista Jeffrey Sachs.
<><> Atiçando o dragão
A
guerra comercial declarada mais especificamente à China é um teste de
resiliência, mais à economia americana do que à chinesa. Isso porque, além
da China deter o segundo
maior percentual em títulos do tesouro americano (dívida pública), os EUA
dependem muito dos bens - produzidos com mão de obra barata chinesa -
importados do gigante asiático. Pequim não se dobrou e a cada nova
aposta de Trump jogou pesado,
chegando nesta sexta, 11 de abril, a elevar suas tarifas em relação
aos Estados Unidos para 125%, dizendo que “não vai se curvar”. Xi Jinping,
em seu primeiro pronunciamento sobre o assunto, declarou: essa guerra comercial
não terá vencedores. Mesmo sem ganhadores, ela pode ser uma oportunidade para
os BRICS frente ao futuro do Dólar. A tendência de desconfiança
dos investidores em relação ao mercado e à moeda estadunidense, pode levar a
concretização do sonho dos países membros do grupo, de uma moeda independente e
fortalecida, para competir com os EUA. E, a ideia de que o mundo está em
uma transição de poder do Oceano Atlântico para o Pacífico, cada
vez mais salta aos olhos e aproxima a China de se tornar
a principal potência
mundial.
<><> Resistiremos?
Não
sabemos até quando o mundo vai suportar essas loucuras que, ao fim e ao cabo,
são o um “novo manifesto de
desumanidade”.
Isso porque, por exemplo, Lesoto,
na África do Sul “tem
uma economia fortemente dependente da venda de jeans para grandes marcas
americanas, como Levi's e Wrangler. Apesar de ser um dos países
mais pobres do mundo, foi o mais taxado por Trump, com uma tarifa de 50%”.
Como o país vai sobreviver? Na América Latina e no
Caribe,
o peso não é só tarifário, mas também colonial. "O segundo governo de
Donald Trump transformou a América Latina e o Caribe em um 'laboratório de
controle' para a política internacional MAGA (Make America Great
Again)", avaliaram os autores do artigo “Trump e América
Latina e Caribe: Um laboratório de controle?”. Mas, o maior problema pode vir de
uma virada, com a saída da guerra do
campo comercial para a eclosão de conflitos reais. Uma nova guerra
mundial bélica, diante à incerteza e a loucura de Trump e seus céticos
apoiadores, não pode ser descartada.
<><> Psicose americana
Muito
preocupado com seu “lindo cabelo”, Trump dá mais uma
marcha à ré climática ao eliminar as regulamentações sobre chuveiros para
evitar desperdício de água. Isso em meio à guerra tarifária e às deportações.
Falando nisso, assistimos a mais uma semana de imigrantes
acorrentados forçados a embarcar em um avião com destino à Guatemala, enquanto ao fundo
se ouve uma canção de despedida. A revogação da residência
temporária humanitária e da autorização de trabalho colocou de cerca de
meio milhão de migrantes cubanos, haitianos, nicaraguenses e venezuelanos
no limbo e, claro, no desespero. E eles se perguntam, e agora, como vamos
sobreviver? Não
obstante, mais novos fatos aumentam o drama dos migrantes. Um acordo com a
“receita federal” americana coloca fim na confidencialidade de dados para
ajudar a localizar imigrantes indocumentados; o plano para multar migrantes que
violarem ordens de deportação em US$ 998 por dia e um 20 de abril ainda mais
sombrio com a possibilidade de
Trump declarar a lei marcial. Gestos em que a banalidade
do mal se repete.
<><> Cruzada fascista
Vivemos
um tempo em que a “suspensão sistemática da democracia levou ao triunfo
da nova direita. Não se trata de um golpe de Estado, nem de uma ditadura,
mas do fechamento da democracia, que está ocorrendo diante de nossos olhos
quase sem percebermos”, asseverou a filósofa italiana Donatella Di Cesare. Na avaliação do
professor Eugênio Bucci, essa escalada
fascista e autoritária encontra companhia fiel nas plataformas sociais.
Segundo aponta, “a lógica das plataformas sociais e da autocracia é a
eliminação dos pontos de vista discordantes, a hipertrofia da obediência e da
submissão, de tal maneira que a política deixa de ser a política porque ela
deixa de ser dialogada. E no lugar da política que a modernidade nos legou, vai
crescendo o fanatismo onde não tem espaço para o diálogo, ele é
fechado, compacto, unidirecional e disciplinado como um pelotão militar”.
<><> Ovo da serpente
Ainda
falando sobre o mesmo assunto, o filósofo da Unisinos, Castor Bartolomé
Ruiz,
publicou uma longa análise tecendo paradoxos de como essa crise generalizada
traz de volta o fascismo e o estado
exceção. “Surpreendentemente, em pleno século XXI, uma nova ninhada de
serpentes, metamorfoseadas sob diferentes vestes autoritárias, está prestes a
eclodir dentro das democracias ocidentais. Inspirados em teóricos da soberania
como Carl Schmitt e Thomas Hobbes, os atuais movimentos
autoritários produzem o medo sistematicamente e o disseminam com o apoio
do algoritmo das redes sociais”, assinalou. “Ao compreenderem a política
como desdobramento da guerra - continua o autor -, valendo-se do binômino
amigo-inimigo para fabricar culpados pelas mazelas de cada uma das sociedades,
tais expressões neofascistas convertem estrangeiros, migrantes e
refugiados em bodes expiatórios, indivíduos perigosos que devem ser contidos,
deportados e até exterminados, a quem se voltam ódios que conduzem as massas
nos mais diferentes contextos nacionais”, evidenciou.
¨
Os erros da guerra
cultural não justificam a investida de Trump contra a ajuda externa, diz
Michael Sean Winters.
Matthew Schmitz, o conservador
convertido ao catolicismo que contribui com ensaios para o New York Times,
recentemente culpou os progressistas descontrolados pela decisão do
presidente Donald Trump de
essencialmente eliminar a Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a National
Endowment for Democracy.
"Para
entender por que o soft power americano se tornou tão
vulnerável politicamente, é útil compreender os danos que os progressistas
causaram à sua ampla legitimidade na última década e meia",
escreve Schmitz. "Eles fizeram isso implicando instituições de soft
power em controvérsias políticas internas, especialmente em questões
de política sexual. Eles confundiram interesses americanos no exterior com
prioridades progressistas, usando o dinheiro do contribuinte para promover um
conjunto de reivindicações sobre as quais os americanos discordam
veementemente".
Ele
continua citando exemplos desse tipo de financiamento para prioridades
progressistas: "US$ 70.884 na Irlanda para um evento musical que
celebra a diversidade, a equidade, a inclusão e a acessibilidade, US$ 32.000
no Peru para uma história em quadrinhos 'apresentando um herói LGBTQ+
para abordar questões sociais e de saúde mental', US$ 19.808
em Montenegro para clubes de alianças gays-heterossexuais".
Esta
foi a primeira vez que ouvi falar sobre o subsídio de Montenegro, mas os
outros dois subsídios foram citados repetidamente em vários meios de
comunicação conservadores, até mesmo pela secretária de imprensa da Casa
Branca, Karoline Leavitt.
Deixemos
de lado o fato de que Schmitz — e muitos outros na campanha
de Trump que citaram esses exemplos — ignoram o fato de que
a USAID não concedeu as verbas irlandesas ou peruanas, mas sim o
Departamento de Estado. Mas a questão permanece: especialmente quando se trata
de ajuda externa, o dinheiro do contribuinte não deve ser usado para exportar guerras
culturais americanas.
Se a
fonte da subvenção, a USAID ou o Departamento de Estado, não
invalidar o argumento, também é verdade que algumas subvenções equivocadas não
deveriam levar o governo a suspender completamente a ajuda externa. Quando você
precisa trocar a geladeira da sua cozinha, não incendeia a casa. Há um
argumento de princípio contra os tipos de subvenções aos
quais Schmitz se opõe, mas esse argumento não justifica de forma
alguma o fim de programas que ajudam pessoas extremamente pobres a obter comida
e água, ou trabalho que promova a democracia, ou esforços de socorro em
desastres.
Certamente,
a Catholic Relief Services (CRS) não estava
usando o financiamento da USAID para promover os direitos dos gays.
Por que Schmitz não se pronunciou sobre a importância do trabalho
da CRS? Bill O'Keefe, vice-presidente de Missão, Mobilização e Defesa
da CRS, pediu ao Congresso "que compartilhasse uma visão católica e
pró-vida para a assistência internacional dos EUA — uma visão que
identifique o Estado como um parceiro indispensável para viver os valores
americanos em prol de um propósito comum".
A visão
de O'Keefe certamente evita as objeções citadas por Schmitz.
Será que os conservadores não veem os valores pró-vida — e as consequências
pró-vida — presentes na missão da CRS?
Não há
nada de americano, nem de católico, em deixar de ajudar pessoas que sofrem.
Ignorar todas as boas ações realizadas pela USAID e seus muitos
parceiros ao longo dos anos para justificar a investida
de Trump contra a ajuda externa é moral e intelectualmente
desonesto. Os democratas deveriam, no entanto, prestar atenção ao
que Schmitz escreve sobre não confundir ajuda externa com questões de
guerra cultural.
A
propaganda anti-USAID do Partido Republicano funciona porque muitas
pessoas ganham menos do que os US$ 70.000 gastos no evento
musical DEI na Irlanda. Os democratas não estão errados quando
apontam que US$ 70.000 são uma gota, ou nem mesmo uma gota, no oceano de gastos
federais. De fato, todos os US$ 71,9 bilhões gastos em ajuda externa no ano
fiscal de 2023 são uma gota no oceano. Mas a maioria dos americanos não
consegue entender cifras tão altas. As reclamações sobre os US$ 70.000 gastos
em um musical DEI repercutem não apenas porque alguns americanos se opõem às
iniciativas DEI, mas também porque se identificam com o valor em dólares.
Os
democratas precisam usar esse tempo no deserto político para decidir quais
valores e questões consideram mais importantes e como podem construir uma
coalizão majoritária em torno desses valores e questões. Buscar políticas que
metade do povo americano odeia não é maneira de superar a polarização. Se os
democratas tolerarem a política performática, especialmente em controvérsias em
torno da sexualidade, continuarão a se tornar vulneráveis ao tipo de ataque
propagandístico que os acólitos de Trump aperfeiçoaram.
Qualquer
partido que se comprometa a governar com base em valores amplamente defendidos
provavelmente formará o tipo de coalizão governamental sustentada que os
democratas construíram com Franklin Roosevelt nas décadas de 1930 e
1940 e os republicanos moldaram com Ronald Reagan na década de
1980. Buscar políticas externas — não apenas ajuda externa, mas todas as
políticas externas — com o objetivo de restabelecer o tipo de consenso amplo e
bipartidário que prevaleceu da Segunda Guerra
Mundial até
a Guerra do Iraque faz parte desse
tipo de agenda de bom senso.
Exigirá
que os democratas controlem alguns ativistas que poderão compor um futuro
governo. Isso lhes permitirá começar a restaurar a fé na democracia e na
decência, caso sobrevivam aos quatro anos restantes do trumpismo.
Se os
interesses especiais e os dólares que eles contribuem impedem os democratas de
seguirem esse caminho óbvio e moralmente necessário, eles deveriam ter a
decência de não reclamar quando o trumpismo vencer. E Schmitz deveria
ter a decência de defender os Serviços Católicos de Assistência e os
muitos outros programas da USAID que ajudam as pessoas e disseminam
os valores e a generosidade americanos por um mundo sofrido.
Fonte: IHU/National Catholic Repórter
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