Como
fazer o SUS chegar aos quilombos
O termo
Quilombolas ou comunidades remanescentes de quilombos é utilizado no Brasil,
desde o final dos anos 80, para se referir a territórios ancestrais que
congregaram povos africanos e seus descendentes, além de indígenas e outros,
que resistiram ao processo de escravização e genocídio. Embora o direito tenha
positivado a identidade política e social destas comunidades, a partir do seu
reconhecimento como portadoras de direitos específicos, conforme assegura a
Constituição Federal da República do Brasil de 1988, estas seguem em um
tortuoso contexto de incompletude da sua cidadania, invisibilidade, exclusão
social e vulnerabilização, aprofundado pela marca do racismo estruturante da
sociedade brasileira.
Importante
destacar que o governo anterior, demarcado por uma ideologia de
extrema-direita, implementou uma política de ataque às comunidades e aos povos
tradicionais, sobretudo aos remanescentes de quilombos e povos indígenas. Entre
os diferentes mecanismos utilizados para institucionalizar a negligência, a
qual se aprofundou numa espécie de necropolítica do terror, como afirma o
camaronês Achille Mbembe, estavam as paralisações das demarcações territoriais,
negação das políticas públicas, ruptura com o controle social, revogação de
políticas e leis importantes e criminalização dos sujeitos e movimentos
sociais.
Entre
os distintos setores, destacamos a saúde como um dos principais alvos de ataque
do governo anterior a estas comunidades e povos tradicionais, como pôde-se
vislumbrar durante o período da pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2022. As
condições precarizadas de acesso aos serviços de saúde por parte dessas
populações e o histórico processo de vulnerabilização e marginalização,
refletiu-se nos altíssimos índices de infecção, agravo e morte por Covid-19.
Assim,
diante do quadro que se apresentou nos últimos anos, de acirramento e
enfrentamento à sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais, os
movimentos sociais intensificaram a luta e as discussões por direito em saúde,
reconhecendo que o complexo tripé – saúde, doença e cuidado – envolve, para
além dos determinantes biológicos, um processo de determinação social que
engloba as condições econômicas, sociais, culturais, políticas, religiosas e
ambientais. E, quando analisamos as condições específicas da população
quilombola, não podemos deixar de lado que a maioria destas comunidades vivem
em condições de pobreza que não lhes permitem o acesso a bens essenciais e aos
serviços básicos que permitam garantir saúde e bem-estar.
Os
movimentos, coletivos e grupos sociais quilombolas e negros passaram a
intensificar a discussão sobre a saúde quilombola, pautando o seu espaço na
arena pública. Um dos momentos importantes a serem mencionados foi a realização
da 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde Quilombola, ocorrida em 2023,
organizada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (CONAQ) contando com a parceria do Conselho Nacional de
Saúde (CNS), a qual teve a participação efetiva de mais de 1.200 quilombolas de
todo o país.
As
discussões centraram-se na defesa do SUS, da democracia e da garantia de
direitos quilombolas em torno do acesso à terra e da equidade em saúde, visando
a valorização dos saberes e práticas de cuidado e cura tradicionais e
ancestrais. É deste contexto que resulta a Política Nacional de Saúde Integral
da População Quilombola (PNASQ), a qual esteve em regime de consulta pública
entre os dias 14/2 a 31/3 no site oficial do Ministério da Saúde. A PNASQ, que
conforme veiculado pelo MS, terá investimentos na ordem de R$ 173 milhões de
reais, ainda com a previsão de lançamento para este ano, propõe ações de
vigilância em saúde, formação de profissionais, atenção integral à saúde etc.
A
Política para a saúde quilombola, contempla eixos que discutem profundamente a
promoção de territórios saudáveis e sustentáveis; a garantia da participação
social; a valorização dos saberes e práticas das medicinas quilombolas,
vigilância em saúde, trabalho e educação; pesquisa e desenvolvimento,
preservação da sociobiodiversidade e enfrentamento das emergências climáticas
em saúde e a atenção integral à saúde quilombola.
Mas, é
preciso observar a existência histórica de um antecedente que se deu entre os
anos 2002 e 2003, ou seja, na virada do governo Fernando Henrique Cardoso para
o primeiro mandato do governo de Luís Inácio Lula da Silva. No governo FHC, a
política apresentava a intencionalidade de mitigar os efeitos nefastos das
desigualdades sociais e raciais, nomeando e reconhecendo a existência do
racismo. Já no Governo Lula, houve uma efetivação das políticas, haja vista a
transformação do debate político com foco no enfrentamento às desigualdades
étnico-raciais, trouxe um novo patamar para a luta política étnico-racial da
população negra, quilombola e indígena, bem como para a formulação das
políticas públicas sociais. O salto qualitativo observado no período em destaque
foi a implementação de uma política de enfrentamento ao racismo, no período do
Governo Lula, que congregava a luta de promoção da igualdade racial.
A
garantia do acesso integral à saúde da população quilombola, atende a uma
demanda cujas especificidades históricas estão sedimentadas na persistência
histórica dos efeitos da escravidão. Sua perspectiva para mitigar os efeitos
das desigualdades observadas neste segmento social, exige para além da
formulação e implantação da política, uma profunda revisão sobre os pilares que
sustentam as desigualdades para além das questões baseadas nas especificidades
étnicas, culturais e territoriais. A dimensão do binômio racismo e
desigualdades tão bem assentadas nos efeitos intertemporais das desigualdades
contemporâneas, estruturaram no país um padrão de políticas que, não obstante
as observâncias ao texto constitucional, invariavelmente atende aos preceitos
da política pública, dentro dos limites da ação governamental.
Em
termos do financiamento e da administração da política, bem como em termos dos
resultados esperados, a dimensão estruturante de uma política cujas
expectativas buscam atender a uma população específica necessita, para sua
efetiva consolidação e sucesso, considerar a complexidade das relações
intergovernamentais, com os/as gestores/as federais, estaduais e municipais
atuando com diferentes graus de autonomia nas diferentes áreas sociais. Estes
grupos tradicionais reivindicam não apenas uma política residual e focalizada,
pois é preciso efetivamente compreender que a noção de desenvolvimento social
só enfrentará as desigualdades se for possível reconhecer o verdadeiro impacto
do processo de escravização e genocídio nas populações negras e indígenas,
contemplado a implementação de uma política pública que reestruture o sistema
de desigualdades sociais e étnico-raciais e das iniquidades em saúde.
O que
se quer, portanto, são políticas efetivas que não se extingam por decurso de
prazo, quando houver mudanças nos vetores universais da política, quando se
troca a gestão, mas que modifiquem, efetivamente, a postura das relações e
instituições sociais. A questão central reside na efetiva implementação da
PNASQ sem que as intempéries e oscilações do foco na macro política interfiram
na manutenção e continuidade desta.
Fonte:
Por Diana Anunciação e Carlos Alberto Santos De Paulo, em Outra Saúde
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