Esquerda
deve sair do estupor que a comete e reagir antes que seja tarde demais, diz
filósofa romana
Há
tempos está em andamento um processo de despolitização, cuja abstenção nos
pleitos é um dos sintomas, bem como a sistemática descredibilização da
política e o ódio à democracia, que não são
casuais. Para a filósofa italiana Donatella Di Cesare, “a ascensão da
direita é possível graças a esse vazio”, no qual prosperam líderes histriônicos
antipolíticos, que prometem salvação sem intermédio da política profissional:
gerentes, empresários, comediantes, apresentadores de TV e políticos de baixo clero
são alguns dos outsiders a ocupar o posto mais alto em inúmeras democracias
ocidentais.
Na
entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, Di Cesare evoca o quanto a categoria do ressentimento, pulsão política
decisiva, é instrumentalizada pela direita a fim de “seguir esses profetas do
engano” como contraponto ao sentimento de traição que nutrem pela esquerda. Na
herança de Walter Benjamin e Giorgio Agamben, o atual momento
pode ser lido como uma “suspensão sistemática da democracia que, não por acaso,
levou ao triunfo da nova direita. Não se trata de um golpe de Estado, nem
de uma ditadura, mas do fechamento da democracia, que está ocorrendo diante de
nossos olhos quase sem percebermos”.
O
anúncio da aliança Trump-Putin não surpreendeu
a pensadora, sobretudo do ponto de vista geopolítico: “Trump decidiu
recuperar a Rússia, separando-a da China. Apesar da Europa! Ou
melhor, contra a Europa. Nesse horrível cenário de guerra, que está tão
próximo de nós e no qual estamos envolvidos desde o início, há dois perdedores:
a Ucrânia, reduzida a
escombros, e a Europa, que agora talvez já nem exista mais, exceto como um
nome, completamente desagregada e enfraquecida”. A reação das lideranças
europeias é a pior possível: “converter a indústria automobilística em
indústria bélica. Também para responder ao desafio de Trump. Mas é
terrível que a opinião pública, após a experiência das duas guerras mundiais
(muito europeias), concorde com isso. Isso depende de uma direita muito forte e
de uma esquerda agora inexistente”.
Autora
de Estrangeiros residentes: uma filosofia da migração (Âyiné,
2020), Di Cesare é uma das vozes que problematiza o drama dos migrantes em nosso tempo:
“ser cidadãos não significa pertencer a um grupo específico pelo sangue, nem
ser proprietários de uma parte do território nacional. Ser cidadãos significa
participar da polis com direitos iguais”. E completa: “Nem é
preciso dizer que hoje contam somente os direitos dos cidadãos, enquanto são
pisoteados os direitos dos seres humanos que estão do lado de fora, que não têm
a cobertura de nenhum pendão, nenhuma bandeira”.
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Confira a entrevista.
·
Como pode ser caracterizada a nova direita e a limpeza étnica que está
promovendo?
Donatella
Di Cesare – Não
é fácil delinear os traços que caracterizam a nova direita, que agora já se
tornou um fenômeno mundial. Em um livro que será publicado no segundo semestre
sobre esse tema, indiquei a etnocracia como uma das
pedras angulares dessa direita. Trata-se, de fato, de uma redução da
democracia: o povo, o demos, o sujeito da democracia, é reduzido
a ethnos, ou seja, a uma nação entendida como uma grande família,
com laços de parentesco presumido, de pseudoafinidade. O povo é remodelado
biopoliticamente de acordo com os contornos étnicos. Infelizmente, na história
recente, aquela do século XX, isso já aconteceu. Obviamente estou pensando
no nacional-socialismo, que representou o
ápice disso. Todas as manifestações de etnocracia deveriam, portanto,
nos preocupar, ou melhor, nos alarmar. Em vez disso, somos levados a acreditar
que isso é normal e que, afinal de contas, é útil para nós, como cidadãos, para
nos protegermos de tudo o que é de fora, que nos assusta. Para nos imunizarmos,
estamos dispostos a aceitar a etnocracia, mesmo em suas formas mais cruéis,
como a limpeza étnica, ou seja, a remoção ou deportação de massas de
“supérfluos inimigos” ou de “inimigos supérfluos”. Esse é o caso de Gaza, mas também é o caso
da política proposta pela Alternative für
Deutschland (AfD),
cujo slogan é Remigração.
·
Trump não esconde que gostaria de transformar a Faixa de
Gaza em um grande resort, como demonstra o vídeo produzido por
IA que o presidente norte-americano publicou em suas redes sociais em 26-02-25.
Como analisa esse tipo de atitude e outras que ele vem tomando à frente de seu
segundo mandato?
Donatella
Di Cesare – O
vídeo filmado e relançado por Trump, publicado com orgulho, é simplesmente
obsceno, um ultraje às mais de dez mil vítimas deixadas sem sepultamento sob
aqueles escombros. Temo que o segundo mandato será diferente do primeiro,
porque Trump, desde o início, mostra se comportar como um soberano,
cercado por uma corte, ou melhor, um clã, sem limites ou restrições ao seu
poder. Os freios e contrapesos da democracia estadunidense, que deveriam
salvar a constituição e manter as instituições, até agora não funcionaram.
·
Como percebe a aliança Trump-Putin na
reconfiguração da geopolítica mundial? E qual é a sua análise sobre o
protagonismo conferido a Elon Musk nesse cenário?
Donatella
Di Cesare – A
aliança Trump-Putin não me surpreendeu, especialmente de um ponto de
vista geopolítico. O verdadeiro confronto é entre os EUA e
a China, que até agora desempenhou um papel secundário e se limitou a
apoiar Putin, principalmente com ajudas técnico-militares.
Portanto, Trump decidiu recuperar a Rússia, separando-a
da China. Apesar da Europa! Ou melhor, contra a Europa. Nesse
horrível cenário de guerra, que está tão próximo de nós e no qual estamos envolvidos
desde o início, há dois perdedores: a Ucrânia, reduzida a
escombros, e a Europa, que agora talvez já nem exista mais, exceto como um
nome, completamente desagregada e enfraquecida.
·
O rearmamento da
Europa é
uma realidade cujas consequências podem ser fatais para a humanidade como um
todo. Como podemos entender que uma medida bélica esteja sendo tratada como uma
ação de paz?
Donatella
Di Cesare – Justamente
isso é inconcebível. No entanto, entramos em uma época, profetizada por George Orwell, na qual paz
significa guerra, e vice-versa. Na verdade, essa inversão vem sendo preparada
há tempo. Já em anos passados, foram chamadas de “missões humanitárias” aquelas
que, para todos os efeitos, eram operações militares. Eu poderia dar muitos
exemplos, inclusive terminológicos: a manutenção da paz sempre implica o envio
de tropas que poderiam estar envolvidas em um conflito. O ápice, no entanto,
foi atingido nestes últimos tempos. É possível que a liderança europeia,
que a meu ver tem enormes responsabilidades, consiga convencer a opinião
pública da necessidade desse rearmamento.
Vi que,
por exemplo, muitos na Alemanha estão persuadidos e, de fato,
orgulhosos. Tanto que os alemães estão dispostos a passar por cima do que eles
chamam de Schuldenbremse, o freio da dívida, para poder investir
500 bilhões de euros no rearmamento. Uma verdadeira loucura e um
verdadeiro suicídio. O plano da liderança europeia é bastante claro: converter
a indústria automobilística em indústria bélica. Também para responder ao
desafio de Trump. Mas é terrível que a opinião pública, após a experiência
das duas guerras mundiais (muito europeias), concorde com isso. Isso depende de
uma direita muito forte e de uma esquerda agora inexistente.
·
Considerando o panorama recente das maiores democracias
liberais, como você percebe a deriva do populismo em direção a
formas autoritárias e, em última instância, novas expressões fascistas?
Donatella
Di Cesare – Escrevi
recentemente um livro sobre esse tema que também foi publicado
no Brasil pela editora Ayiné com o título O complô
no poder (Aynè, 2022). Trump é o primeiro a usar a arma do
complô para governar – o complô do Deep State contra nós… É
interessante investigar o ressentimento que leva as pessoas a seguir esses
profetas do engano. Alguns expoentes da Escola de Frankfurt – eu os
menciono em meu livro – estiveram entre os primeiros a examinar esse complexo
de mecanismos. De fato, eles tinham na bagagem a experiência do Terceiro
Reich e encontravam alguns elementos na democracia estadunidense.
·
O caso da Itália é emblemático por ter sido o berço do
fascismo histórico. Entretanto, sabemos que as reconfigurações desse fenômeno
apontam para outras realidades não menos perigosas. Como analisa a situação
italiana, especificamente?
Donatella
Di Cesare – Exatamente
cem anos após o nascimento do fascismo em 1922, no
país de Mussolini voltaram ao governo os fascistas disfarçados de
pós-fascistas. Isso foi um trauma para muitos, especialmente porque o partido
de Meloni, Fratelli
d’Italia, tinha o 4% e agora chega a 30%. Nesse sentido,
a Itália sempre se revela um laboratório político, porque precede e
antecipa politicamente o que acontece em outros países europeus e não europeus.
Acredito que o que levou a essa situação sem precedentes foi, em primeiro
lugar, o período do governo técnico de Draghi, uma verdadeira
tecnocracia, percebida por muitos como um esvaziamento da política. Mas,
no fundo, há o desvio de massas das classes mais pobres e mais fracas da
esquerda para a direita. Aqueles que se sentiram e ainda se sentem traídos pela
esquerda – que sentem um forte ressentimento, pulsão política decisiva – votam
com toda convicção na direita. Por um tempo, o Movimento Cinco Estrelas,
de base populista, interceptou todo esse descontentamento. Mas, com o passar do
tempo, houve um transbordamento para a direita.
·
IHU – Em Estrageiros residentes você
propõe uma filosofia da imigração. Poderia recuperar em que consiste essa
proposta e quais os principais desafios para que ela se concretize?
Donatella
Di Cesare – Na
onda da grande crise migratória, que marcou a
opinião pública europeia em 2015, escrevi o livro Estrangeiros
residentes, também publicado no Brasil. Ao longo dos anos, discuti suas
teses por toda a Europa, nos mais diversos contextos: salas
universitárias, festivais culturais, reuniões de organizações humanitárias,
estúdios de televisão, salas parlamentares, cais de portos. Sempre fiquei
impressionada com a quantidade de esquemas e clichês disseminados no debate,
por exemplo, a suposição de que são os cidadãos de um estado nacional que decidem
quem deve ser admitido e quem deve ser rejeitado.
Estou
convencida de que esse é um dos motivos que possibilitou a disseminação
da violenta retórica contra os
estrangeiros.
Além das fronteiras, tentei questionar o poder soberano dos cidadãos
de dizer “não”. Se é possível escolher privadamente com quem conviver, não se
pode pretender decidir com quem coabitar. Embora atingindo seu apogeu no
nazismo, essa pretensão não falta nos estados nacionais, que há anos vêm
travando uma guerra não declarada contra os migrantes. Mas com base em que é
possível isolar uma comunidade democrática?
·
Em que aspectos essa concepção de estrangeiros residentes
abre oportunidades de se repensar as categorias de cidadania e direitos
humanos?
Donatella
Di Cesare – Ser
cidadãos não significa pertencer a um grupo específico pelo sangue, nem ser
proprietários de uma parte do território nacional. Ser cidadãos significa
participar da polis com direitos iguais. Fechar as portas,
excluir, tem efeitos desastrosos. A segregação também é sempre uma
autossegregação. Uma comunidade democrática que pensa que pode assim se
imunizar do exterior logo vai à deriva. Nem é preciso dizer que hoje contam
somente os direitos dos cidadãos, enquanto são pisoteados os direitos dos
seres humanos que estão do lado de fora, que não têm a cobertura de nenhum
pendão, nenhuma bandeira.
·
Segundo Giorgio Agamben, as democracias
liberais foram concebidas para operarem dentro do paradigma da soberania, mas
também no paradigma da governamentalidade. Por isso, a
qualquer momento o estado de exceção pode ser legitimamente convocado e
estabelecer a exceção como regra, dando origem a derivas autoritárias que são
sombras permanentes nesse sistema político. Como entender esse paradoxo que
sustenta as democracias?
Donatella
Di Cesare – Penso
que Giorgio Agamben teve o mérito de relançar uma intuição brilhante
de Walter Benjamin. Refiro-me às Teses sobre o conceito de história,
as páginas que, ainda em Paris, Benjamin escreveu pouco antes de
sua morte, quando sabia que estava cercado. Em uma tese, ele fala justamente do
“estado de exceção”, Ausnahmezustand em
alemão, em que a suspensão da democracia, nas mãos da direita, pode se tornar a
regra.
Não é
coincidência o fato de ele falar exatamente ali sobre o fascismo. A esquerda deveria sair do
estupor que a acomete e, em vez de confiar no progresso inscrito na história,
reagir antes que seja tarde demais. Acredito que durante todo esse último
período vivemos uma suspensão sistemática da democracia que, não por acaso,
levou ao triunfo da nova direita. Não se trata de um golpe de Estado, nem de
uma ditadura, mas do fechamento da democracia, que está ocorrendo diante
de nossos olhos quase sem percebermos.
·
Um elemento histriônico permeia líderes que se dizem
antipolíticos ou mesmo representantes de uma nova política, sobre a qual nunca
sabemos realmente em que consiste. Como você entende essa característica outsider de
líderes como Trump, Bolsonaro, Milei, Orbán e outros?
Donatella
Di Cesare – O
processo de despolitização tem sido imparável há tempo. Basta pensar
no abstencionismo, que é um dos muitos sinais disso. Acredito que esse não seja
um processo casual. O descrédito lançado sobre a política e o ódio à
democracia não são processos casuais. A ascensão da direita é possível
graças a esse vazio. Aproveitam-se disso os novos líderes histriônicos que se
apresentam como gerentes, empresários…, mas, de qualquer forma, sempre como
outsiders incontaminados pela política. Portanto, eles querem ser figuras
redentoras que prometem a salvação – em primeiro lugar, da política e dos
políticos! O líder e o povo, sem intermediários. Basta pensar no caso
paradigmático de Bolsonaro e naquele atual de Trump.
·
Filmes como “Zona de interesse”, do diretor
Jonathan Glazer, evocam a instrumentalização e objetificação da vida com sua
conversão em vida nua e matável. Vivendo ao lado de Auschwitz, Rudolf
Höss e sua família retomam uma discussão trazida por Arendt ao analisar o
caso Eichmann,
de que a banalidade do mal pode ser
praticada por todos e se tornar irresponsável sob o argumento da ação por
dever. Em que medida fatos históricos como o Holocausto apontam para a
possibilidade de que a barbárie possa ser reconfigurada e ser aceita como um
mal menor em nosso tempo?
Donatella
Di Cesare – É
exatamente isso! Eu também vi Zona de Interesse sob essa
perspectiva, em que a câmera focaliza a vida cotidiana dos Hösses,
sua casa arrumada, seu jardim bem cuidado, enquanto a poucos metros de
distância, no campo de concentração ao lado, as oficinas
de Hitler funcionam a pleno vapor, processando cadáveres até serem
reduzidos a fumaça. Esse paradigma não terminou com o Holocausto, mas se manteve. Não
se trata apenas da banalidade do mal praticada sem remorsos. É, acima de tudo,
o duplo binário: de um lado, os cidadãos, aqueles que vivem dentro dos limites
da zona de conforto, os protegidos; de outro lado, os não cidadãos, os supérfluos,
aqueles com os quais o mundo não sabe o que fazer e que podem ser expostos a
tudo, pandemias, guerras, violências, miséria, fome. Podemos aceitar um mundo
dividido em duas humanidades, ou melhor, em humanos, protegidos e imunizados, e
não humanos, expostos e deixados à deriva?
Fonte
IHU
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