Devastação de Trump já atinge a ciência
brasileira, diz Gabriela Leite
A pesquisadora Patrícia Rondó, coordenadora
do Laboratório de Micronutrientes da Faculdade de Saúde Pública da USP, não se
surpreendeu ao receber, na semana passada, um email do Centros de Controle e
Prevenção de Doenças (CDC) norte-americano. A mensagem anunciava que o
Laboratory Quality Assurance Program (Programa de Garantia da Qualidade
Laboratorial), ao qual o laboratório onde trabalha é associado, havia entrado
em uma “pausa por tempo indefinido” devido à falta de financiamento.
Na verdade, ela já havia expressado a alguns
de seus colegas, dias antes, seu temor pelo fim do programa, após os cortes na
Saúde anunciados pelo governo de Donald Trump. Há 25 anos, o Laboratório de
Micronutrientes da USP tinha uma parceria com esse programa do CDC, que faz
controle de qualidade externa dos padrões de vitaminas A, D e E, folato e
marcadores inflamatórios como proteína C reativa. Estão vinculados a ele outros
34 laboratórios de saúde pública de diversos países do Sul Global.
“Nós temos um padrão interno para definir que
a concentração de vitamina A de determinada amostra é baixa, média ou alta. No
caso desse programa do CDC, nós recebemos padrões externos para que sejam
comparados com os outros laboratórios”, explica Patrícia ao Outra Saúde. Ao
final das testagens das amostras, o órgão norte-americano produz um mapa com
uma comparação entre todos os laboratórios, para que todos possam comparar os
resultados das determinações de micronutrientes e aprimorar a metodologia, além
de possibilitar discussão entre os participantes do programa.
Essa troca acontece duas vezes por ano, em
abril e setembro. Neste mês, tudo correu normalmente – dias antes do anúncio do
desmonte do CDC pelo governo Trump. Agora, ela se encerra por tempo
indeterminado, e dezenas de laboratórios perdem esse contato que, segundo
Patrícia, será difícil de restabelecer sem a centralização nos Estados Unidos,
por falta de recursos. O CDC oferecia esse serviço “gratuitamente” — em troca, é claro, de utilizar as informações
enviadas pelos laboratórios para seus próprios estudos…
<><> Um laboratório para estudos
sobre nutrição infantil e doenças crônicas
Ao terminar seu doutorado na Inglaterra e
ingressar à USP, em 1997, Patrícia Rondó percebeu que faltavam, na
universidade, equipamentos de análise de micronutrientes. Aos poucos, com
investimento público, ela começou a montar um laboratório. “Iniciou em um
espaço pequeno, no subsolo da Faculdade de Saúde Pública, que era um depósito
de resíduos”, ela conta. Aos poucos, ele foi sendo equipado. Em 2010, conseguiu
o ingresso de uma funcionária da Procontes USP em seu grupo de pesquisa, Liania
A. Luzia, técnica especialista do Laboratório de Micronutrientes, e desde
então oferece suporte para diversos
estudos na área da nutrição.
Entre as pesquisas desenvolvidas no
laboratório, e destacadas em seu site, uma se propõe a analisar o impacto da
suplementação de vitamina A no sistema imunológico de pré-escolares; outra, a
concentração de vitamina A, ferro, zinco e cobre no leite materno proveniente
de bancos de leite. Também há estudos avaliando as concentrações de vitamina D
na obesidade. São de enorme importância para compreender a saúde infantil no
país, assim como a relação entre micronutrientes e o crescimento de doenças
crônicas como diabetes tipo 2, etc.
Segundo o Portal de Boas Práticas em Saúde da
Mulher, da Criança e do Adolescente da Fiocruz, “em crianças, a deficiência de
vitamina A representa uma das mais importantes causas de cegueira evitável e um
dos principais contribuintes para a morbimortalidade por infecções que afetam
os segmentos mais pobres da população”.
Patrícia foi coordenadora de outro projeto de
pesquisa na área, que investigou o estado nutricional dos bebês, ainda durante
a gestação, e encontrou correlações da obesidade infantil com fatores genéticos
advindos da mãe e do ambiente. Seu ineditismo está em fazer a avaliação da
composição corporal do feto e sua relação com a genitora, e não no tamanho e
peso do bebê.
O Laboratório de Micronutrientes fica na
mesma faculdade onde foi desenvolvido o conceito de ultraprocessados, pelo
pesquisador Carlos Monteiro, e sua relação com o aumento de doenças crônicas
não-transmissíveis. O conceito é cada vez mais aceito e utilizado pelo mundo,
mas também incomoda a indústria de alimentos, que lucra com a produção de
comida com quase nenhum valor nutricional.
<><> Ciência e política na era de
Trump e do negacionismo
“Os governos de ultradireita tentam calar os
pesquisadores, os professores, os profissionais que são críticos. Porque para
eles, a crítica incomoda”, reflete Patrícia Rondó. O governo Trump demitiu
milhares de funcionários do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, neste
mês, alegando “ineficiência”.
Foram dispensados pesquisadores, cientistas,
clínicos, e pessoal da alta gerência das principais agências. O CDC, que
sustentava o programa de qualidade de laboratórios, é responsável pela
prevenção de doenças causadas por infecções, genética, ambiental e outras
causas. Parece ter dado preferência a extinguir áreas que cuidavam de doenças
não-transmissíveis, notou a AP News: “[os cortes incluem] programas que
monitoram e previnem asma, tabagismo, violência armada, mudanças climáticas e
outras ameaças à saúde”.
Já há notícias de como os cortes em ajuda
humanitária dos Estados Unidos estão afetando sistemas de saúde pelo mundo. O
caso que conta Patrícia mostra que o desmonte do próprio Estado norte-americano
afeta cientistas de outros países. Mas esses acontecimentos abrem margem para
que se pergunte: como evitar que decisões políticas externas afetem a pesquisa
científica nacionais na área da saúde?
A pesquisadora cobra um posicionamento mais
claro das universidades – inclusive as brasileiras – em relação aos retrocessos
que acontecem no mundo, com o avanço da ultradireita. “Acho que muita gente tem
medo, talvez, por ter vivenciado a ditadura, aqueles anos de ferro duros. E acho que é um pouco de medo também, talvez,
de se posicionar e prejudicar até a questão de conseguir verba para pesquisa”,
pondera. Nos EUA, por exemplo, foi lançado no final de fevereiro o movimento
“Stand up for Science” que busca mobilizar cientistas de vários estados
norte-americanos e a população simpatizante na organização de manifestações nas
ruas. O movimento está se espalhando por outros países em apoio aos cientistas
norte-americanos.
Mas Patrícia acredita, sobretudo, que a
solução para os pesquisadores brasileiros, que já vivenciaram esse problema em
tempos passados, pode estar na cooperação entre universidades da América Latina
e dos países do Sul Global, que trabalham de maneira muito isolada. Também cita
os países do BRICS como possíveis aliados para fortalecimento mútuo da ciência
e pesquisa.
Fonte: Outra Saúde

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