“Quis mudar minha cor”, diz jovem negro preso
injustamente
“Só vejo uma imagem escura”, disse promotor
do MPSP se referindo à imagem em vídeo de Gabriel Jesus durante audiência
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Gabriel
Jesus foi preso após ser acusado injustamente de ter furtado uma corrente na
praia Cidade Ocian, em Praia Grande, no litoral paulista, em 17 de novembro de
2024. Na ocasião, o jovem de 18 anos afirmou que viu uma correria no calçadão e
pensou que fosse um arrastão, mas acabou sendo preso ao tentar se proteger no
mar.
Um vídeo obtido com
exclusividade pela Agência Pública mostra a audiência que deu a
liberdade a Gabriel Jesus, que é pintor. Ele foi absolvido depois que a vítima
do furto pelo qual era acusado não o reconheceu na audiência de instrução, em
fevereiro deste ano. No entanto, o jovem já havia cumprido três meses de prisão
provisória, em virtude de um reconhecimento equivocado que ocorreu na
delegacia, no dia da prisão.
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Por que isso importa?
- Jovem foi preso
injustamente por um crime que não cometeu. O racismo marca vários
capítulos da história.
- Defesa de
Gabriel Jesus diz que tanto a prisão como o reconhecimento errôneo do
jovem como autor do furto foram atos racistas.
“O
senhor consegue ver nitidamente quem está na tela? Eu não consigo, só vejo uma
imagem escura”, questionou Caio Adriano Lépore Santos, promotor de justiça do
Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), à vítima do furto na Praia
Grande. A pessoa a quem o magistrado se referia era Gabriel.
A
vítima respondeu ao promotor: “No meu aparelho, está aparecendo nítida a
imagem”. Santos, na sequência, retrucou se a imagem do jovem negro era vista.
“Com essa imagem, você consegue ver o rosto dele? […] Eu não consigo ver
absolutamente nada”, disse Santos. “Sim, dá para eu ver perfeitamente aqui na
imagem […] Eu afirmo que não é a pessoa”, respondeu a vítima.
Para o
advogado de defesa do jovem, Renan Lima, o questionamento do promotor teve um
“cunho racial absurdo”. “Para Gabriel, que já havia tido sua liberdade
arrancada injustamente, ouvir uma fala que reduzia sua existência a algo
insignificante, um ‘ponto’ sem identidade, sem rosto, sem história, foi mais um
golpe”, avaliou Lima.
Quando
ouviu o promotor descrevendo o vídeo dele, dizendo que via apenas uma “imagem
escura”, Jesus reagiu: “Quis até mudar minha cor. Não é a primeira vez que
alguém faz isso, eu não aguento mais não, passar por isso”, em referência aos
episódios racistas que sofreu desde a prisão.
“Isso
aí é desumano, não pode acontecer com ninguém […] E tratou o meu filho de uma
forma diferente, falando que não está enxergando ele por quê? Porque ele é
preto, ele [promotor] não tá me enxergando? Isso é racismo”, disse a mãe de
Jesus, a auxiliar de cozinha Sabrina Oliveira, 39 anos.
O MPSP
negou que a afirmação do promotor tivesse cunho racial. Por nota, o órgão
afirmou que “no caso em tela, dada à falta de nitidez da imagem, já que se
tratava de uma audiência virtual, o promotor tomou todas as cautelas com o
propósito de evitar que ocorresse o reconhecimento de alguém que não havia
cometido o delito ou a liberação de um suspeito que de fato fosse o autor do
crime, duas situações que o Ministério Público tem o dever constitucional de
repelir”.
No
texto, o MPSP também informou que “o promotor de Justiça Caio Lepore agiu no
estrito cumprimento de seu dever funcional na audiência de instrução
mencionada, envidando todos os seus esforços para esclarecer os fatos, nada
além disso. Qualquer suposição em contrário expressa desconhecimento sobre a
trajetória do promotor, que sempre pautou sua atuação pela defesa dos Direitos
Humanos, uma marca do Ministério Público de São Paulo.”
·
Preso injustamente
O
racismo marca vários capítulos da história da prisão de Gabriel Jesus. No dia
em que foi preso, ele tentava se proteger de uma confusão na praia, que pensou
ser um arrastão, quando foi abordado por um policial. “Fiquei junto das
famílias, aí veio o policial e falou: ‘tá roubando, né?’ Aí, eles [PMs] me
algemaram e me levaram”, contou Jesus à reportagem. “Eu acho que eles
[policiais] se confundiram por causa da minha cor”, disse.
A
confusão na praia tinha sido causada por um furto no calçadão. De acordo com
depoimento da vítima do furto na audiência de instrução, assim que ele
estacionou o carro e dirigiu-se para a faixa de areia, teve o seu cordão,
banhado a ouro, furtado por um suspeito de bicicleta, na companhia de outros
garotos. No mesmo instante em que o seu colar foi levado, ele voltou ao seu
automóvel e tentou realizar uma perseguição por conta própria, quando colidiu
em um poste.
Policiais
militares, do 45º Batalhão de Polícia Militar do Interior (BPM/I), passavam
pela avenida presidente Castelo Branco, local onde o furto ocorreu, quando se
depararam com o acidente e foram informados pela vítima do crime que tinha
acabado de acontecer.
Incumbidos
de localizar o autor do crime, os policiais passaram a procurar por suspeitos.
À Polícia Civil, os PMs disseram que Gabriel Jesus e outro suspeito tentaram
fugir ao esconderem-se no mar, mas sem apontar o motivo deles serem os
principais suspeitos. Jesus nega esta versão.
A
perseguição a Jesus foi cinematográfica. Contou com a atuação do helicóptero
Águia, do Comando de Aviação da Polícia Militar (CAvPM), que é uma aeronave
utilizada em situações de extrema periculosidade ou salvamento, além de um
cerco policial com motos e viaturas. Gabriel Jesus foi preso dentro do mar
pelos policiais militares, que contaram, em depoimento à Polícia Civil, que o
jovem teria se entregado e confessado “haver furtado uma corrente de ouro
momentos atrás, alegando, no entanto, haver entregado o produto da infração
para o seu comparsa após desconfiar que o objeto não fosse realmente de ouro”.
Jesus nega que tenha confessado o crime.
“Pelo
que eu me lembro, [os policiais falaram] ‘coloca a mão na cabeça, senão, eu vou
atirar’. Aí eles me deram um ‘rodo’ [uma rasteira]”, relembrou Jesus. “Depois
veio um senhor, da população, e me deu um tapa na cara […] A pessoa não sabia
nem o que era, se era verdade, foi lá e me agrediu”, concluiu.
Assim
que a prisão ocorreu, o jovem pintor foi retirado do mar. Ele se deparou com
banhistas que comemoravam, aplaudiam e gravavam a ação da PM.
Jesus
foi colocado no porta-malas da viatura e levado ao 1º Distrito Policial (DP) da
Praia Grande, onde o Boletim de Ocorrência (B.O) foi registrado. No entanto,
segundo o jovem, ele não teve a oportunidade de se defender diante do delegado
Marcello Costa Leme Walther, embora o B.O registre que o pintor “se reserva o
direito de permanecer em silêncio, não respondendo às perguntas que lhe forem
formuladas”. A versão do B.O é contestada por Jesus, que afirmou que “eles
[policiais civis] não deixaram eu falar”.
·
Atos racistas na prisão e no reconhecimento
No 1º
DP da Praia Grande, a vítima do furto foi apresentada a Gabriel Jesus para que
fizesse o reconhecimento. “Na delegacia, perguntaram: ‘é esse o menino? ele que
pegou a sua corrente?’ Aí eu, no nervosismo, achando que era, respondi que
sim”, disse a vítima do furto, na audiência de instrução.
Para
justificar a suposta confusão e acusação de Jesus como o autor do crime, a
vítima respondeu ao promotor Caio Santos que “quem aqui já foi na Praia
Grande sabe que todos os meninos que andam de bicicleta tem o mesmo porte
físico, o mesmo visual, corte de cabelo e eu acabei me enganando [no
reconhecimento]”.
O
advogado de defesa de Jesus diz que tanto a prisão como o reconhecimento
errôneo do jovem como autor do furto foram atos racistas. “O caso do Gabriel é
um caso típico e não à parte. Existe uma série de pessoas que, infelizmente,
sofrem esses falsos reconhecimentos, principalmente pela cor de pele”, avaliou
Renan Lima.
A
audiência de custódia ocorreu no mesmo dia. O juiz Vinícius de Toledo Piza
Peluso, da Comarca de Santos, optou pela manutenção da prisão preventiva, em
virtude do suposto furto de uma corrente, em que foi necessário “o uso de
helicóptero policial, tendo praticado o crime em plena praia durante a luz do
dia, durante feriado nacional com grande movimentação turística na cidade” e
que “por si já demonstra a periculosidade e ousadia do agente e a inobservância
das regras elementares de convivência social”.
O
advogado de defesa critica o “argumento de ter utilizado o apetrecho
público, o suposto Águia, não é fundamento por si só para manter alguém
preso, mas, pelo contrário, isso faz parte do ofício da Polícia Militar.”
·
Exposto na mídia
Quando
chegou ao Centro de Detenção Provisória (CDP) da Praia Grande, o jovem disse
que os carcereiros o reconheceram e disseram: “foi tu, né? Tu que fugiu pra
água lá, né?”. Segundo Jesus, eles já tinham conhecimento do caso, porque as
imagens gravadas por quem estava na praia já haviam chegado à imprensa.
Um
vídeo da atuação do helicóptero Águia, que fazia um voo rasante, na tentativa
de ajudar na captura de Jesus, foi publicado pelos veículos de imprensa locais
e reproduzido pela Rede Bandeirantes de
Televisão.
“A Polícia Militar prendeu um ladrão que tentou fugir pelo mar […] Esse [tipo
de] bandido é comum, viu?”, narrou o apresentador da Band.
“Por
ora, eu mandei um e-mail para que eles se retratem. Eles denominaram o Gabriel
como bandido no dia dos fatos e eles não podem fazer isso.” ponderou o advogado
Renan Lima, que também entrou com uma ação por danos morais contra o Estado de
São Paulo.
A
rotina do jovem pintor foi afetada após a repercussão do caso na mídia. “Eu vou
de bicicleta [para o trabalho] e um monte de gente fica olhando, acho que eles
pensam que eu roubei mesmo, pela reportagem que eles viram”, disse.
Desde
que deixou o CDP da Praia Grande, o pintor tem evitado sair de casa até mesmo
para se divertir. “Eu ando com um olho atrás e outro na frente, vai saber se o
cara está na maldade”.
O tom
de preocupação é manifestado até mesmo pela mãe dele, que disse ter procurado
os agentes comunitários de saúde do bairro onde vivem, em uma favela da Praia
Grande, para que o filho comece um tratamento psicológico, em virtude do trauma
vivido. “Eu ainda acho que o Gabriel não tá com a cabeça muito boa, você vê que
ele não tá sabendo nem conversar direito”, contou Sabrina Oliveira.
Após a
prisão, o pintor afirma ter sido abordado por policiais militares em duas
oportunidades e em uma delas, mais uma vez foi alvo de racismo: “Eu fui na
praia com um amigo, quando estava voltando os policiais me enquadraram e falei
que tinha acabado de sair [há poucos dias do CDP] e um policial disse: ‘vc está
querendo roubar né, neguinho?’”. Jesus foi categórico em dizer o motivo de ter
sido abordado na ocasião. “É por causa da minha cor mesmo”, disse ele.
“O caso
de Gabriel é um reflexo claro do racismo estrutural presente no sistema de
justiça criminal brasileiro. A seletividade penal faz com que jovens negros e
periféricos sejam mais visados pelas forças de segurança, tenham menos acesso a
uma defesa qualificada e sejam, com frequência, presos sem provas concretas,
apenas com base em suposições ou abordagens arbitrárias”, apontou o advogado
Renan Lima.
A
Secretaria de Segurança Pública (SSP), sob a gestão do secretário Guilherme
Derrite (PL-SP), disse que “as corregedorias das Polícias Civil e Militar
permanecem à disposição para registrar e apurar toda e qualquer denúncia contra
seus agentes. Ambas as instituições repudiam desvios de conduta e excessos
praticados por seus policiais, punindo com rigor aqueles que violam os
procedimentos operacionais ou a legislação”.
Fonte:
Por Rafael Custódio, da Agência Pública

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