Smart Sampa: Grávida é presa em posto de
saúde e acaba tendo parto prematuro
Grávida de oito meses, Gabrieli Crescencio
foi presa no momento em que levava o filho de dois anos, que tem epilepsia,
para uma consulta médica em São Paulo. Ela foi identificada como foragida por
uma das milhares de câmeras com reconhecimento facial instaladas pela
prefeitura em ruas e órgãos públicos – incluindo unidades de saúde – no
programa Smart Sampa. Segundo ela, a abordagem dos policiais foi agressiva a
ponto de provocar o rompimento da bolsa e induzir um parto prematuro.
O boletim de ocorrência confirma que a mulher
entrou em trabalho de parto durante a abordagem. “Antes de encerrada a
apresentação da ocorrência, a bolsa de Gabrieli estourou e por isso ela foi
socorrida pela mesma equipe ao Hospital do M’Boi Mirim, onde se encontra
internada e em trabalho de parto”, registra o documento lavrado na 47a
Delegacia de Polícia, no Capão Redondo, em 27 de janeiro.
O boletim também informa que Crescencio
estava com 37 semanas de gestação — início do nono mês. O registro médico do
parto, porém, aponta 34 semanas, o que caracteriza prematuridade. Para a
mulher, “os policiais aumentaram o tempo de gestação no documento para não
parecer que a abordagem antecipou o parto”.
<><> Por que isso importa?
• O
sistema de câmeras de reconhecimento facial do Smart Sampa é uma das principais
bandeiras da prefeitura da capital paulista para combater a violência, mas a
tecnologia não é à prova de erros.
• Grávida
de oito meses, Gabrieli Crescencio foi presa ao ser identificada pelas câmeras
de um posto de saúde. Na abordagem, ela entrou em trabalho de parto prematuro.
Crescencio, que tem 25 anos, relata que foi
arrastada pelo braço e empurrada para dentro da viatura enquanto carregava o
filho pequeno no colo. Foi nesse momento, segundo ela, que começou a sentir
dores abdominais. Já na delegacia, afirma ter escorregado em um líquido no chão
da cela e caído. “Ali percebi que a bolsa já tinha estourado. Fiquei no chão, e
o líquido escorreu pela minha perna. Chamei por ajuda, mas os policiais riram e
disseram que era xixi”, conta.
Ainda segundo ela, uma policial feminina
interveio e afirmou que a mulher tinha que ser levada para um hospital com
urgência. Ela foi colocada em outra viatura, onde ouviu dos policiais para “não
se mexer muito para não sujar o carro”.
Após o parto, passou os próximos 10 dias
internada sob custódia. Segundo a mulher, os policiais que ficaram com ela no
quarto eram todos homens e impuseram restrições a necessidades básicas, como
proibir que escovasse os dentes ou usasse o banheiro. O bebê recém-nascido foi
levado a uma UTI Neonatal, onde passou dois meses internado.
Em 2021, Crescencio foi investigada por
suposto envolvimento com tráfico de drogas pela polícia de Campo Grande, no
Mato Grosso do Sul, onde residia na época. No entanto, nunca foi presa, pois
não houve flagrante, ela tinha ficha limpa e três filhos pequenos que dependiam
dos seus cuidados. Ficou em liberdade provisória, com a obrigação de se
recolher à noite e informar qualquer mudança de endereço às autoridades.
O caso nunca foi julgado, e ela não foi
condenada. A primeira audiência só deve ocorrer nas próximas semanas. O motivo
para a prisão agora, quase quatro anos depois, é porque ela não comunicou sua
última mudança de endereço. “Eu nem sonhava que estava sendo procurada”, diz.
“Recebi um e-mail sobre a audiência, então imaginei que eles sabiam onde eu
estava. Nunca me escondi.”
A defensora pública que cuida do caso,
Mariane Vieira Rizzo, diz que pediu a liberação de Crescencio para responder em
liberdade assim que soube da detenção. O pedido foi atendido rapidamente tanto
pelo Ministério Público como pela juíza responsável.
Segundo a defensora, ser considerada foragida
não quer dizer que a pessoa esteja de fato fugindo. “Se ela mantiver o endereço
atualizado e cumprir as medidas cautelares, não há motivos para preocupação.
Mesmo se um dia for condenada, poderá responder em liberdade, desde que cumpra
os requisitos para isso”, explicou.
Hoje, Crescencio passa por acompanhamento
psiquiátrico por ter desenvolvido estresse pós-traumático com o episódio, de
acordo com ela. O filho, batizado como Anthony, recebeu alta da UTI, mas ainda
precisa de cuidados especiais.
• Uma
em cada cinco prisões ocorre em unidades de saúde
Gabrieli Crescencio é uma das 182 pessoas
presas por meio do sistema de reconhecimento facial das câmeras do Smart Sampa
desde que o programa entrou em operação na capital paulista, em novembro do ano
passado, até o dia 8 de abril. Esse número representa quase 20% de todas as
prisões realizadas por reconhecimento facial no período, que totalizam 978,
segundo a Prefeitura de São Paulo.
“O caso é absolutamente estarrecedor e mostra
os perigos do Smart Sampa e das tecnologias de reconhecimento facial”, afirma
Marina Dias, diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. “À pretexto
de uma política de segurança pública, acaba-se por afrontar direitos
fundamentais como o acesso à saúde, que está previsto na Constituição Federal,
é universal e precisa ser garantido independentemente de a pessoa ter algum
problema com a Justiça.”
Para ela, o monitoramento em unidades de
saúde tende a afastar pessoas que precisam de ajuda médica. Isso inclui não só
quem tem pendências com a Justiça, mas também ex-detentos que já cumpriram
pena. Há ainda o risco de que outras pessoas — especialmente negras e moradoras
da periferia — evitem buscar atendimento por medo de serem confundidas e presas
por engano, o que acontece com frequência.
Essa situação já estaria acontecendo, segundo
Flávia Anunciação, diretora de Saúde do Sindicato dos Servidores Municipais de
São Paulo. Ela diz que o sindicato recebeu denúncias de pessoas que abandonaram
o programa de tratamento para tuberculose com medo de serem presas. “Sem
continuidade, a doença se agrava e pode ser transmitida para outras pessoas,
colocando toda a sociedade em risco”, afirma. A
Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) afirmou por nota que “o
Smart Sampa atuou corretamente no caso” da mulher. A nota informa que a pessoa
mencionada pela reportagem tem condenação por tráfico de drogas, embora ela
nunca tenha sido julgada nem condenada.
A nota diz que na data em que foi flagrada
pelas câmeras do Smart Sampa, Crescencio “constava como foragida na lista de
procurados da Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. O mandado de prisão
contra ela era válido até 2042 e foi confirmado pelas autoridades policiais na
delegacia para onde foi levada pela Guarda Civil Metropolitana (GCM)” e que “no
Boletim de Ocorrência registrado não há qualquer menção a conduta inadequada
por parte dos guardas municipais na abordagem”.
Afirma ainda que “o Programa Smart Sampa
segue protocolos rígidos para garantir sua eficácia e todos os alertas emitidos
pelo sistema passam obrigatoriamente por checagem dos agentes, como medida
adicional de segurança. Ele considera elevados padrões de segurança da
informação em respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e não utiliza
fatores como cor da pele e etnia em sua análise. As câmeras inteligentes do
programa já foram responsáveis pela captura de 1.008 foragidos da Justiça,
prisão em flagrante de 2.245 criminosos e a localização de 55 pessoas
desaparecidas. Em relação à atuação das forças de segurança em equipamentos
públicos, ela é mais uma medida de proteção aos cidadãos e todas as ações são
conduzidas com respeito aos protocolos legais e aos direitos humanos.”
• Tecnologia
não é à prova de erros
A prefeitura diz que o sistema Smart Sampa
emite alertas quando há 80% de similaridade com o rosto de foragidos e é
necessária a correspondência de 92% para acionar uma abordagem. Mas nem sempre
o reconhecimento acerta.
O portal UOL mostrou o caso de um idoso de 80
anos que foi preso por engano após ser confundido com um estuprador foragido
pelas câmeras do Smart Sampa, também em uma unidade de saúde. Apesar de não ter
os mesmos dados pessoais do criminoso e nem os mesmos traços físicos (um é
branco e outro é pardo), o idoso ficou 10 horas sob custódia da polícia. Após o
episódio, o homem passou a sair de casa apenas de óculos de sol e moletom para
não correr novos riscos.
O Smart Sampa é uma das principais bandeiras
do prefeito Ricardo Nunes (MDB) para a segurança pública – que é considerado o
principal problema da cidade para 74% dos habitantes. Tanto que Nunes inaugurou
com pompa o “prisômetro”, um painel de led que exibe em tempo real as prisões
realizadas pelo sistema, no centro da cidade.
De olho em uma possível candidatura ao
governo de São Paulo em 2026, Nunes busca se alinhar ao estilo “linha dura” do
governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), em cujo governo a letalidade
policial aumentou mais de 100% entre 2022 e 2024. O aumento da violência
policial, contudo, não resultou na redução de todos os crimes violentos: houve
queda nos homicídios – tendência que vem sendo registrada desde 2015 –, mas
houve mais casos de estupro, feminicídio e latrocínio.
O estilo Tarcísio de conduzir as polícias é
aprovado por 53% dos brasileiros, com a aprovação subindo para mais de 60%
entre os moradores do Sudeste. Nunes, que contou com o apoio do governador em
sua campanha de 2024, tenta agora recuperar o atraso na área da segurança após
um primeiro mandato com poucos avanços.
O prisômetro foi instalado na véspera do
carnaval deste ano, para alardear prisões feitas em blocos de rua. A Defensoria
Pública criticou a medida, argumentando que os foliões têm direito a se
manifestarem livremente sem a vigilância da prefeitura. No início deste mês, as
câmeras também começaram a ser instaladas em ônibus.
Prisômetro foi instalado pelo prefeito na
véspera do carnaval deste ano
A Defensoria atua em duas ações que contestam
o programa por possíveis violações a direitos fundamentais e à Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD). Também questiona a ausência de regulamentação legal e
o uso de pregão eletrônico na licitação, apesar da complexidade do sistema, que
exigiria um projeto com estudos de impacto. As ações ainda estão em tramitação.
“Em nenhum momento, a Defensoria recomenda
institucionalmente que prisões decorrentes de mandados judiciais deixem de ser
cumpridas com o auxílio da tecnologia. Defende, no entanto, que sua aplicação
ocorra com transparência, controle e respeito aos direitos de toda a
população”, diz a instituição.
O Tribunal de Contas do Município chegou a
suspender o programa por possíveis danos à LGPD, mas voltou atrás após a
prefeitura prestar esclarecimentos.
O programa conta hoje com 25 mil câmeras, com
a promessa de chegar a 40 mil até 2028. A licitação foi cheia de idas e vindas,
com questionamentos das empresas participantes, e acabou sendo vencida pelo
Consórcio Smart City SP – que tem uma das empresas participantes acusada de
envolvimento em casos de corrupção – ao custo de R$ 9,8 milhões por mês. Além
disso, a prefeitura também recebe imagens de cerca de 5 mil câmeras de
vigilância de empresas privadas.
Há poucas informações sobre como é feita a
proteção de dados pessoais e como o sistema evita vieses raciais – já que os
programas costumam ser treinados em pessoas brancas e tendem a dar mais erro na
identificação de pessoas pretas ou pardas. A Prefeitura apenas garante que o
programa segue protocolos rígidos e tem aprovação popular.
Um levantamento do Panóptico, monitor de
novas tecnologias na segurança pública, do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania (Cesec), identificou que há 376 projetos que usam reconhecimento
facial no Brasil atualmente, monitorando mais de 82 milhões de pessoas.
Ao mesmo tempo em que a tecnologia mira os
rostos de cidadãos 24 horas por dia, Nunes ainda não tem nenhum plano para
colocar câmeras corporais nos agentes públicos da Guarda Civil Metropolitana –
mesmo já tendo sido alvo de inquérito pelo Ministério Público.
Fonte: Por Amanda Audi, da Agencia Pública

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